A segunda chance

A segunda chance

Alexandre Santos*

– Por que você demorou tanto? – Otávio perguntou tão logo Luciana chegou à sala de espera.

A pergunta era completamente fora de propósito, pois há pelo menos dois anos eles estavam separados. Vale dizer que nunca houve um casamento. Na realidade, fora mais do que isso. Embora estivessem impedidos de formalizar a relação por razões da vida, eles estiveram juntos por mais de cinco anos, desfrutando intensamente as delícias do amor, enfrentando os rigores da convivência entrecortada, sempre brigando e amando como se não houvesse um amanhã. Estranhamente, Luciana estava alegre, parecendo ter superado os traumas da longa separação. Ao chegar, ela brilhou o sorriso apaixonado de sempre e não se esquivou do beijo de Otávio. De sua parte, sem demonstrar qualquer receio de serem vistos juntos em público, Otávio tomou Luciana pelas mãos e, como um menino enamorado, gritou o amor que sentia por ela para que todos pudessem ouvi-lo. Mesmo esquisito – havia alguma coisa de errado naquilo tudo –, o reencontro foi ótimo. Em poucos minutos, como se o desenlace jamais tivesse ocorrido, Otávio e Luciana namoravam abertamente, andando de braços dados e trocando arrulhos e beijos como adolescentes apaixonados. De repente, num salto, como num filme truncado, Luciana e Otávio caminharam pela ponte-finger e embarcaram juntos no avião da Air France. Outro corte e eles estavam lado a lado em confortáveis poltronas da classe executiva. Beijos, beijos e mais beijos. O tempo passava e, como eternos namorados, homem e mulher aproveitavam a companhia um do outro rumo a Paris.

Foi quando veio a catástrofe.

Depois de um violento sacolejo, a voz do comandante sacudiu o alto-falante.

– Senhores passageiros, por favor, atentem para os sinais de apertar os cintos. Comissárias venham à cabine com urgência.

Enquanto o avião balançava como um touro bravo, as aeromoças largaram o que faziam e correram para atender ao chamado. Não demorou.

– Senhores passageiros – a voz falou novamente –, lamento informar que estamos atravessando uma zona de extrema turbulência. Vamos rezar para que a aeronave suporte... – o comandante não terminou a frase. O bólido mergulhou no vazio, caindo 10.000 metros instantaneamente.

O avião não chegou a explodir ou espatifar na imensidão escura das águas oceânicas. O momento que a aeronave começava a se desfazer em milhões de pedaços foi interrompido bruscamente. Uma voz grave ecoou o sistema de som do aeroporto, avisando que o embarque do voo AFF 447 da Air France começaria a seguir.

Otávio acordou angustiado.

Sem resistir ao cansaço, dormira a sono solto na sala de espera. Agora, estava alarmado. Já sem saber se deveria ou não embarcar naquele voo, Otávio mirou a galeria e, como em déjà vu, viu a chegada apressada de Luciana na sala de embarque. Empurrado por uma força interior, correu em direção a ela.

Assustado com as coisas que só ele sabia, Otávio foi direto, quase rude. Sem um cumprimento sequer, tomou Luciana pelas mãos:

– Vamos para casa – disse, simplesmente.

O reencontro não foi exatamente como Otávio desejava. Foi muito diferente daquele vivido há poucos instantes. Ao contrário daquilo que o sonho fizera parecer, a intimidade deixara de existir há tempos e, surpresa com a atitude do ex-namorado, Luciana reagiu enfurecida.

– Me largue – se desvencilhou num safanão – você está pensando o quê? Depois de todo este tempo, você aparece do nada e fala como se fosse meu marido. Ficou doido, seu Otávio?

Só então ele atentou não ser mais namorado de Luciana e, pior: não dispor de nada para justificar a atitude intempestiva – só tinha o sonho, nada mais. Desesperado, decidiu apostar na confiança que sempre tiveram um no outro.

– Luciana – falou nervoso –, não tenho tempo para explicar nada. Sei apenas que não devemos embarcar neste voo. Você precisa confiar em mim.

Deu trabalho. Não foi fácil convencer a ex-namorada a desistir de viajar naquela noite. Rapidamente, a fila avançava rumo ao guichê de acesso ao finger e Otávio não parava de falar. Luciana jamais tinha visto seu antigo namorado daquele jeito: quase descontrolado. Finalmente, convencida de que deveria haver alguma razão muito séria para fazer Otávio agir daquela forma, Luciana tomou a decisão mais importante da sua vida e desistiu de embarcar.

– Espero, Otávio, que você tenha alguma coisa importante para falar – desafiou, olhando o fundo dos olhos do ex-namorado.

Otávio tomou a mão de Luciana – que, desta vez, não reagiu – e, para surpresa do despachante, deixaram a fila de embarque. Sem trocar uma única palavra, sempre de mãos dadas, ganharam o saguão e foram para o mezanino. Um restaurante. Um lugar tranquilo. Um canto para conversar. Era tudo o que precisavam. Embora disposto a contar, tim-tim por tim-tim, a visão que o fizera lutar desesperadamente para não embarcarem naquele avião, Otávio estava mais interessado em abrir o coração e confessar o amor renovado que nele aflorou quando, no sonho daquela noite, estiveram juntos. Tantas coisas a falar. Tanto tempo a recuperar. Tanta vida para viver. Embevecido pela voz, pelo cheiro, pela presença do passado que se fazia presente e se, dele dependesse, se faria futuro, Otávio chegou a esquecer o sonho maluco. Trocavam o primeiro beijo quando veio a correria. Indiferente ao amor que se renovava no mezanino, a edição extraordinária da televisão anunciava o desaparecimento do airbus A330 que fazia o voo AF 447 para a Paris. Uma explosão de choro os fez mais juntos e, juntos, Luciana e Otávio souberam que o avião no qual viajariam separados mergulhara no oceano Atlântico levando 228 pessoas para a morte.

(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural