O Cavalo Selado

No meu mundo, há a bifurcação do destino, a qual todos os seres sentenciam os seus caminhos. Ao seguir ruma a esta, encontrei um ancião no trajeto. Ainda desconhecendo a natureza dos trajetos, a um senhor indaguei acerca do melhor caminho a se tomar:

-O da direita, ele me disse, o da direita há a bonança, há o sublime, há pastos nos quais o silêncio repousa e a felicidade paira sobre as águas.

-E a esquerda? O que há lá?

-Não, meu filho, nunca siga por este caminho, lá há o poder, a corrupção, o poder pela corrupção e a corrupção pelo poder. Jamais seguireis o caminho dos nefastos, dos que traem, dos que mentem e dos que são corroídos pelo verme da perversidade.

-A direita seguirei, agradeço o sábio conselho.

No prosseguir da jornada, cheguei à bifurcação a qual recebi a destra orientação. Tinha dificuldades para prosseguir, o corpo sentia os limites do cansaço, o sono já pesava sobre minhas pálpebras. Observei que havia uma árvore cuja estrutura sugeria repouso. Adormeci.

Ao amanhecer, levantei disposto como nunca, o sono não só revigorou o meu corpo como também meu espírito aventureiro. Pronto para seguir o caminho da direita, observei que uma senhora vinha em minha direção:

-Olá amigo viajante, disse ela.

-Olá senhora, respondi.

-Segues pelo caminho da esquerda?

-Não senhora, recebi instruções para tomar o direito.

-Compreendo. Fazes bem, mas te peço uma coisa, perdoe-me a inconveniência deste pedido, mas leva-me pelo caminho da esquerda, são 10 minutos a cavalo. Sabes... sou idosa e me custa muito percorrer este trecho a pé.

Os olhos vividos diziam-me a verdade, considerei sua debilidade, os perigos do caminho, a preocupação da família... pobre alma, ao seu pedido, cedi.

É costume meu andar selado, sempre temi ficar impossibilitado de ajudar ao me deparar com situações dessa natureza.

Concordei, a convidei a subir sobre mim e a levei ao seu destino, ela agradeceu e se despediu.

Voltei lentamente, sentia-me bem, boas ações sempre causaram regozijo em minha alma, perdido em meus pensamentos, retornei à bifurcação.

Mais uma vez, pronto para seguir o caminho da direita, reparei que um senhor vinha até mim.

-Oh meu filho, segues o caminho da esquerda?

-Não, senhor, vou pela direita.

-Peço perdão pelos maus modos, mas te suplico que me leves pelo caminho da esquerda. A cavalo não demorará nada, e sobre tu, que és forte, afirmo que não tomará 10 minutos do teu tempo.

Os mesmos pensamentos que me convenceram a levar a senhora, argumentaram a favor do velho, cedi.

Convidei o velho a subir sobre minhas costas, o que o mesmo fez com demasiada habilidade, enfim... o levei ao seu destino.

Ao retornar à bifurcação, lá havia outras pessoas e o ciclo se repetia, todos necessitados, sob privação, com os olhares e as palavras carregadas de verdades.

À noite, quando minhas forças quase se extinguiam, uma última pessoa suplicou para que eu a levasse em minhas costas ao seu destino, dessa vez, advoguei em favor, discorri acerca do dia, aleguei dores no corpo, aleguei exaustão. Todavia, não resisti aos tais olhares e as tais palavras de verdade, novamente, cedi.

O trote se tornou pesado, mais pesado, insuportavelmente pesado. Cedi.

A mulher que jazia sobre minhas costas, desceu e seguiu para o seu destino. Nesse momento, reuni todas as minhas forças em um só grito:

-Ajuda-me, não consigo retornar neste estado.

-Se te ajudaste, não chegarei em meu destino. Para realizar meus desejos, preciso seguir sozinha.

-Se tu estavas apta para seguir teu caminho sem mim, por que me convencestes a levar-te?

- Ora, vi um cavalo selado, com certeza me custaria menos alcançar meus objetivos sobre tu do que com minhas pernas, não pude evitar essa oportunidade. Foi mais forte que eu, desculpe, faz parte da minha natureza.

Estas foram as últimas palavras que ouvi antes da exaustão me tomar a consciência.

Despertei, a dor oprimia meu corpo e os arrependimentos, meu espírito. A memória de cada ser que montou sobre mim naquele dia era um alfinete que inflamava a minha alma. O ódio incendiava meu espírito por completo. A vingança badalava o meu coração, em meio a pensamentos impuros, regressei.

Conforme retornava, as trevas da noite dominaram meu espírito. Sozinho no caminho da humilhação, fazia promessas obscuras:

Os homens jamais subirão sob minhas costas, antes desejaram estarem sob meus pés.

E a sela se desatou.

Os homens jamais me olharão de cima para baixo, antes curvarão suas cabeças diante mim.

E eu comecei a andar sobre duas patas.

Os homens jamais me convencerão a servi-los, antes acatarão meus desejos perante a minha dissimulação.

E minha aparência se tornou humana.

Os homens jamais me enganarão, antes farão das minhas palavras as de um profeta.

E minha linguagem se aprimorou, me tornei hábil na arte do falsear.

Ao chegar a bifurcação, encontrei um cavalo selado repousando, o esperei acordar, pedi para que carregasse a caminho da esquerda e ele... cedeu.

Luiz do Paulista
Enviado por Luiz do Paulista em 12/07/2020
Reeditado em 14/10/2020
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