Olho-de-Bruxa

Eu nasci com um olho de cada cor, coisa que o mundo civilizado chama de heterocromia, mas minha avó chamava de olho-de-bruxa. Ela era rezadeira, sempre me enchia de patuás e mandingas, até que ela morreu e as coisas começaram a acontecer. Um vulto aqui e ali. A menina que todo dia me chamava pra brincar no quintal, mas não estava lá. A simpática velhinha na cadeira de balanço da sala que se balançava sozinha de madrugada... Eu achava que todas aquelas coisas eram absolutamente normais, falava delas pra minha mãe, que dava um sorriso condescendente para uma criança com imaginação fértil demais.

Porém nem todas as coisas eram tranqüilas de se ver. Quando meu pai “saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou” minha mãe ficou daquele jeito: não comia, não dormia, não tomava banho. Minha tia veio para ajudar, e dormia no mesmo quarto que eu. Foi quando eu comecei a perceber que a luz da casa estava desaparecendo: primeiro comecei a acender as luzes, mesmo de dia, e a ter medo de dormir com a luz apagada. Depois, mesmo com as luzes acesas, a escuridão permanecia, escorrendo levemente pela casa em direção a algum lugar, como se levada por uma correnteza invisível. Foi quando eu percebi que aquela coisa estava indo para o quarto da minha mãe; e quando eu cheguei até lá eu vi: bem no meio, onde deveria haver o peito dela, havia um buraco oco, para onde a escuridão flutuava e sumia. Eu, estranhamente, não me assustei: eu fui até minha mãe, lá parada naquela cadeira, e a abracei tão forte! Eu tinha medo que aquele buraco sugasse ela para sempre, para longe de mim. Ela então chorou de leve e me abraçou também, e a escuridão em volta dela parou de se mover por alguns segundos. Depois daquele dia eu passei a cuidar dela todos os dias. O buraco foi diminuindo, mas nunca mais fechou. Até hoje eu vejo aquele buraco pequenino lá, que às vezes volta a crescer.

Quando eu fiz 17 anos eu vim morar na casa da minha tia quando passei no ENEM. O ritmo aqui em São Paulo é completamente outro, às vezes me assusta. Eu achei que a cidade seria mais bonita, pra falar a verdade me decepcionei com tanta pichação, sujeira e gente sofrendo nas ruas. Tenho vontade de voltar pra minha cidade, mas é preciso ser forte e me adaptar. Quando eu cheguei na faculdade fiz amigos, e isso é muito bom. Giovanna fez pra mim um instagram e a Renata me usa como cobaia pra treinar fotografia. Disse que o mundo tinha que me conhecer, com meu olho verde-castanho, e realmente as pessoas no Instagram gostam muito das minhas fotos.

Naquela noite ia ter uma “virada cultural”, como elas chamaram, e eu fui com elas. Renata ia aproveitar para tirar várias fotos também. Chegando lá me encantei com tudo aquilo: eu nunca tinha visto tanta gente junta, todos alegres, a música pulsando no nosso corpo todo. Tinha uma música eletrônica muito boa, comecei a dançar, como todo mundo. A música parecia não ter fim, parece que tudo aquilo durou vários dias.

Fechei meus olhos, me balançando ao som da música, e de repente eu me vi no meio de uma floresta muito densa, com um rio largo passando perto. E então eu vi o primeiro sinal de que algo estava errado: havia vários pequenos animais mortos na margem, com as moscas se fartando de seus corpos. Descendo a lenta correnteza do rio, o corpo de um índio boiava com marcas de tiro, e logo atrás dele vieram vários outros corpos, um atrás do outro, lentamente... E o rio que era límpido começou a ficar todo vermelho com a enorme quantidade de sangue que vazava daqueles corpos... e os corpos nunca tinham fim. Depois ouvi um grito após o outro, e várias cenas: pessoas de todas as épocas baleadas, esfaqueadas, homicídios, suicídios, quedas... vi gente queimada viva, vi claramente a cena de um rapaz despencando de vários andares com o corpo todo em chamas.

Meu corpo todo tremia e doía, minha cabeça parecia que ia se partir ao meio de tanta dor, e o meio da minha testa ardia como se um cigarro tivesse sendo apagado na minha pele. Mas no meio daquela confusão pulsante de corpos ninguém percebia que eu estava me contorcendo, e não dançando. Foi quando eu vi aquele animal enorme parado olhando para mim. Parecia um cervo descomunal, branco, com fogo no lugar dos olhos e nas suas galhadas. Ele ficou olhando pra mim por muito tempo, eu não conseguia desligar meus olhos dele. Meus olhos ardiam, mas eu não conseguia sequer piscar, até que em algum momento ele simplesmente se virou e andou. A multidão sem nem perceber abria espaço para ele passar, e eu fui atrás, eu sentia que devia ir atrás.

O animal foi se afastando da festa até chegar num canto mais vazio e estranho debaixo de um viaduto. Eu fiquei um pouco mais atrás, com medo de me afastar muito da festa. Ali havia várias pessoas, umas deitadas, outras fumando, outras conversando e brincando. Apareceram dois homens altos, de boné e coturno, e começaram a falar com aquelas pessoas lá do viaduto. De repente o tom de voz aumentou e todos foram ficando mais agitados, até que um dos homens altos puxou um revólver e começou a atirar naquelas pessoas à sangue frio. Então eu senti nos meus pés a correnteza se mover: o rio de sangue correndo novamente. Os corpos daquelas pessoas boiando para longe... e a correnteza parecia querer me levar também. Foi quando eu tropecei e caí, e os homens altos me viram e começaram a vir na minha direção.

O grande animal, porém, veio até mim e se curvou para que eu subisse e eu o fiz, como se já soubesse fazer. Ele correu velozmente para longe dali, atravessando uma avenida movimentada, e atrás de mim eu ouvia tiros. Eu só baixava a cabeça e rezava para acordar... Em algum momento, porém eu ouvi: uma freada e uma batida, e então os homens altos já seguiam seu destino no rio de sangue junto com aqueles que tinham acabado de matar. O Grande Cervo parou para que eu desmontasse, assoprou em meu rosto e sumiu como se jamais tivesse existido. Não era minha hora de me juntar à Grande Correnteza.

E desde então, não volto mais no Anhangabaú...
Dara Pinheiro
Enviado por Dara Pinheiro em 13/07/2020
Reeditado em 02/11/2020
Código do texto: T7004273
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