Freud explica

Encontrou-se com Sigmund Freud. Isso mesmo. Eu não vou explicar, Freud explica.

— Prazer em conhecê-lo, eu sou Sigmund Freud, e estava aguardando a sua chegada. A sua existência, que já venho observando há alguns anos, confirmou algumas de minhas teorias e me deram luz para novas descobertas... Você conviveu com pessoas que se afastaram da realidade algumas vezes, e que tiveram em crise, com atitudes e comportamentos fora dos padrões normais estabelecidos pelo meio social, mas sempre perdoou palavras, atitudes, fatos, revelações, ofensas, levando em conta o seu amor e cuidados em relação a essas pessoas. Você só ouvia o que vinha de bom. Às palavras tempestivas, você era um para-raios e qualquer tempestade para você nunca era em mar aberto, mas em copo d’água, fácil de acalmar e reverter.

Enquanto havia uma grande estranheza à realidade reconhecida, essas pessoas sentiam-se bem, estando a seu lado, pois você, além de entendê-las, nunca se cansou em valorizá-las, defendê-las, ajudá-las e protegê-las. No meu ponto de vista - continuou Freud - não é necessário opor a loucura à normalidade. O que está na loucura está de certa maneira também no inconsciente de cada um e são distúrbios resultantes de conflitos entre Id e realidade. Ao mediar essa luta, o ego fracassa e acaba sendo arrancado da realidade, para um mundo de fantasias que tenta satisfazer o Id. Então, a psicose passa a ser um delírio que preenche a cratera que surgiu na convivência entre o Ego e o mundo externo.

Você sempre ajudou, através do respeito, da atenção, do amor e da proteção a fortalecer o Ego, dá-lhe um norte para o caminho de volta à realidade, e isso sem se utilizar da reclamação, do cansaço, da bronca, da falação, do fardo, da autoridade. Você sempre aplicou a metodologia da aceitação, da transformação contínua, da dialética, da não superioridade, da igualdade, da afirmação, da leveza, da fidelidade.

Não há nada melhor para uma pessoa que está em conflito com a realidade que sentir que alguém acredita nela, que alguém a apoia e sente firmeza no que ela fala, mesmo que essa coisa tenha sido sem sentido, pois de prática em prática a pessoa vai evoluindo na confiança em si mesma, e vai voltando ao mundo real. É muito bom saber que alguém lhe é fiel, o aceita como é, o escuta, (escuta com feedback, monoliticamente), o entende robustamente.

“— Não somos apenas o que pensamos ser.” – Continuou o pai da psicanálise: “Somos mais; somos também, o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos...Sem querer”

— Eu que o diga! Estou sentindo isso na pele, agora, pois cada vez que me belisco, sinto o beliscão. Acho que vivi até aqui o que qualquer ser humano comum poderia ter vivido, e eu menos ainda, porque não tive a oportunidade de ter uma boa escolaridade, só a básica......

— Escolaridade? - Riu Freud - “Só a experiência própria é capaz de tornar sábio o ser humano.” – E continuou:

— Você foi sempre muito modesto, simples, reservado, calmo. Mas você foi muito mais que um alfaiate, muito mais que um comerciante, muito mais que um marido, muito mais que um pai, muito mais que um amigo, muito mais que um avô ou bisavô. Você foi imenso porque nunca quis nada em troca. “Os Cães amam seus amigos e mordem seus inimigos, bem diferente das pessoas, que são incapazes de sentir amor puro e têm sempre que misturar amor e ódio em suas relações.” – Você, não. Nunca mordeu ninguém porque nunca teve um inimigo sequer, e nas suas relações, você só teve amor pra dar. O ódio tem ódio de você, porque nunca você deu bolas pra ele. Então, por essas e outras, eu fiz questão de conhecê-lo, pois você é um ser humano melhorado, uma esperança para a raça humana, uma exceção.

— Eu sou apenas o que penso ser: ou seja, ninguém.

— Pois esse é o “x” da questão. Você pensa que é ninguém, mas não é; ao contrário, você não é qualquer um.

— Se fui mais, não lembro. Se sou mais, não acredito.

— E não se lembra, porque nunca achou que fosse. Na realidade, você é muito maior do que o quê pensa, acredite, porque a sua maior bagagem e o seu maior legado é o amor. Você sempre foi sadio a vida inteira, porque amou; “quem ama, não adoece”.

— Eu sempre fui o mesmo, igual desde menino. Nunca mudei meu modo de ser e de viver. Mas as pessoas mudam conforme a idade, a maturidade, e a gente vai aprendendo e nunca para de aprender. Conforme a gente avança na idade, mais tem segurança no que diz, no que pensa, no que fala, no que quer, no que acredita. Mas tem uma coisa inexplicável, a essência do ser, da áurea, ou sei lá o quê, a nossa, eu diria, identidade espiritual, essa, não muda. Não sei por que nunca mudei. Sempre fui o mesmo, o tempo todo, acreditável, confiável, claro, transparente, tranquilo. Você pode me explicar?

— “Quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda.”

— Ah! Como eu sempre tive prazer por estar vivendo, mudar, pra quê? Até em relação a meus amigos foi sempre assim: eles me influenciaram e eu os influenciei, mas tive poucos que escolhi a dedo, todos bons...

— Acho que isso foi por causa de seu caráter, sempre muito forte, inabalável, pois “O caráter de um homem é formado pelas pessoas que escolheu para conviver.”

— Nunca tive nada fácil, mas sempre me senti forte e capaz de carregar o peso de meu próprio fardo. Desde a infância até hoje, tudo foi sempre muito difícil, mas nunca perdi a fé, a esperança, a dignidade e a alegria de viver.

— Isso ocorre, porque “Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro.” – Disse Freud e prosseguiu: “Um dia, quando olhares para trás, verás que os dias mais belos foram aqueles em que lutastes.”

— É verdade. Para mim, foram os melhores momentos da minha vida, os das dificuldades. Lutei muito, mas com ferramentas inofensivas. Sempre fui manso, pois sempre achei que o homem valente é o homem manso. Já me fiz de besta para evitar conflitos ou discussões que não levariam a nada, já tomei prejuízos, me prejudiquei para beneficiar os outros, mas nunca perdi minha autoestima. Nunca me arrependi de nada e nada ficou pra trás. Sempre fui feliz e sou feliz com muito pouco, comigo mesmo, com as pessoas, com o mundo. A minha melhor companhia pra mim é a minha mesma, e dessa forma, torno-me boa companhia para quem precisar. Eu gosto de minha paz, calma e da tranquilidade que me invade.

— Ah! Você sabia que bem antes de minha época Erasmo de Rotterdam disse mais ou menos isso que você está falando? Você já leu Erasmo de Rotterdam?

— Não nunca. Não sei nem quem é.

— Ele publicou um livro, “O Elogio da Loucura”, em 1509 e disse:

“— Aquele que conhece a arte de viver consigo próprio, ignora o aborrecimento.”

— Ah! A coisa mais difícil do mundo era eu me aborrecer ou reclamar de alguma coisa. Eu sempre fui, também, feliz, mas tem gente que me achava um mentiroso, principalmente aqueles ou aquelas que tinham um diploma superior, mais estudo, mais bens, mais cargos e mais dinheiro que eu, e me criticavam porque a vida toda sempre me viram na mesma, sem nunca descer demais nem subir tanto. Sempre estive ali, trabalhando e vivendo à meia escada. Só não entendo até hoje porque essas pessoas se achavam mais felizes, superiores e melhores, se conheci tantas que eram analfabetas, só tinham a roupa do couro pra vestir, trabalhavam com a enxada, tinham os calos das mãos como diploma e eram felizes? Como isso se explica?

— Isso ocorre sempre porque “A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.” - Inclusive, continuou Freud - já dizia há alguns milênios, Aristóteles: “A felicidade depende de nós mesmos” ou Marcus Aurelius: “A felicidade de sua vida depende da qualidade de seus pensamentos.”

— Já vi pessoas reciclando lixo sem uma sandália para pôr nos pés, mas de uma clareza, de uma dignidade, de uma firmeza e beleza incríveis. Sempre dei valor, atenção e sempre tratei com muito respeito essas pessoas...

— Uma coisa também muito positiva, foram as suas palavras que confirmaram e consagraram minha teoria terapêutica... Você sempre disse palavras de incentivo, de amor, de encorajamento, e de certezas, afinal, “Podemos nos defender de um ataque, mas somos indefesos a um elogio.” Muito me admirou, e eu venho acompanhando, a sua forma de entender as pessoas e de responder não só com as boas palavras, mas de ouvi-las... Ouvir é algo muito difícil. Saber ouvir é uma arte, um poema. Dessa forma, às vezes e sem dizer nada, só em ouvir o outro, muito já foi feito por alguém, e isso é amor.

— Eu nunca gosto de dizer tudo o que penso, mas sempre gosto de pensar em tudo o que digo, antes e depois. Aliás, depois não adianta mais.

— Ah! Isso é aristotélico, sabia? - Explicou Freud e continuou - “O homem é dono do que cala e escravo do que fala.”

— Sabia nada! Isso eu aprendi no dia–a-dia.

— Outra coisa admirável foi a sua valorização ao ambiente familiar. – Disse Freud - A sua presença era sempre algo iluminado: palavras, poucas, ações infinitas: paciência, mil ouvidos, bons exemplos.

— “Por trás de um grande homem tem sempre uma grande mulher” - Isso sempre vai valer, você dizia – Continuou Freud - E o que é ser um grande homem? Para você, não era ter e sim, ser. Ser alegre, feliz, conviver bem com a família, fazer daquele lar um lugar especial, agradável, seguro, bom de viver. “Os casais se preocupam tanto em construir uma casa jogando tudo dentro que esquecem de construir um lar, e jogam tudo fora” – você dizia. Também tinha um outro ditado que passava sempre para seus filhos. “Há muitas bocas que falam e poucas cabeças que pensam. Seria bom que todos pensassem antes de falar”. E completava: “as palavras são como um cavalo a galope numa estrada de chão... Depois de ditas, já foram, já levantaram poeira. Por isso, é muito bom ter cuidado com as palavras, pensar antes de falar qualquer coisa. As palavras têm um grande poder, efeitos e consequências.”

— Isso era o pensamento seu, sendo que isso já existia, você sabia?

— Não, nunca soube disso.

— Ou seja, você não sabia que a sua intuição e sabedoria dialogava com o que eu estudei há mais de cem anos... Você nunca leu Sigmund Freud, não foi?

— Nunca.

— Mas veja uma de minhas frases – Disse Sigmund Freud, o pai da psicanálise - “A ciência moderna ainda não produziu um medicamento tranquilizador tão eficaz como o são umas poucas palavras boas.”

Às vezes, em determinadas situações de conflito, você só fazia ouvir e ficava calado. Muito calado. As pessoas ao seu redor pensavam que você estava com raiva, ou não concordava com aquilo por não emitir nenhuma opinião; apenas fazia gestos com a fisionomia do rosto, ou no máximo, dizia. “É...” Ou “Não é mole não.” E só.

Freud também lhe passa a explicar isso:

“— Existem momentos na vida da gente, em que as palavras perdem o sentido ou parecem inúteis, e, por mais que a gente pense numa forma de empregá-las elas parecem não servir. Então a gente não diz, apenas sente.” Você era a verdadeira arte de falar palavras boas e encorajadoras. Um dia, você disse a seus filhos:

— “Por trás de uma grande mulher, tem sempre uma grande mulher, ela mesma, pois os homens, ou melhor, os maridos, são difíceis de entendê-las.”

Dizia, contrariando os machões - O homem calmo, que cede, que anima, que não proíbe a mulher de fazer nada, que não fica no pé dela, encostado e sufocando-a, que não reclama, que a deixa à vontade para ser feliz e fazer o que quiser, conquistar os seus sonhos, que compartilha os afazeres domésticos, que escuta e age, um homem que troca fraldas, que participa na educação dos filhos apoiando as broncas e sem tirar a autoridade um do outro...

Mas isso tudo só deu certo comigo, dizia, pela relação de confiabilidade. O casal tem que ser verdadeiro em tudo. Sempre um falar a verdade para o outro. Essa relação de confiança evita ciumeiras, e faz com que cada um cresça e se desenvolva, pois ninguém gosta de ser manipulado, bitolado, tolhido, barrado ou dominado.

— Isso sempre vai valer, você dizia. E o que é ser uma grande mulher? Eu, Freud, nunca foi capaz de entendê-las, é tanto que um dia escrevi: “Nunca fui capaz de responder à grande pergunta: o que uma mulher quer?”

Mas você, ao contrário, - continuou Freud - fez-me mudar de ideia hoje em dia... Para você, embora a mulher goste de ter, ter casa arrumada, ter móveis, ter eletrodomésticos, ter muitos sapatos, perfumes e roupas, este ter é necessário para o bom funcionamento do lar e satisfação pessoal. Mas ter o necessário, sem desperdícios. Mas a mulher também precisa ser. Ser mulher, ser feliz e não apenas ser dona de casa. Ela quer ter também confiabilidade na relação, um homem pra chamar de seu, ter segurança afetiva e financeira. Você respondeu minha pergunta.

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* Esse texto é uma das várias histórias contadas no livro "A Viagem de Cristal" de Osman Matos, publicado em 2017 pela Amazon.com nos formatos e-book e impresso.