Não há coelhos a serem seguidos

Cansado de máscaras, decidi me desrealizar. Segui um coelho branco, confiante na experiência desse mamífero. Não importava com o buraco sem fim desde que eu caísse de mim. Notei que não havia nem bicho nem cor. Seguia, na verdade, a mim: seguia, é verdade, a mentira. A mentira embriaga.

No paraíso mentiroso, encontrei um desses de olhos fechados.

- É cego? .

Não respondeu.

- É surdo?

- Não sou cego. Quanto a surdo, não sei. Talvez eu escute demais a ponto de não ouvir.

- Onde estão seus olhos?

- Comigo. E estão bem abertos. Vejo tudo e tudo é maravilhoso.

- Maravilhoso? E quanto às mortes?

- Não há mortes.

- Mas o vírus?

- Quê?! O que você faz aqui?

Não soube responder. Sussurrei, tímido, constrangido:

- Estou cansado da realidade.

- Mas aqui é a realidade.

- Acredita nisso?

- Acredito, porque foi dito.

- Então, basta dizer?

O homem se abaixou e, sem abrir os olhos, encheu as mãos de areia. Levou a areia à boca e a engoliu. Com sorriso de saciedade, retomou o diálogo:

- O que disse?

Eu quase não o ouvi. Apenas pensava na irrealidade da areia que sacia a fome, de remédios que curam o incurável, de vacinas que transmutam gentes em répteis... Tudo tão plano no mesmo plano de Terra plana.

Acordei de mim e contemplei, lúgubre, a realidade, o mundo. A tristeza me alegrou por me saber triste. Ouvi de mim: “Se chora é porque sente. Se sente é porque vê. Morre de fome quem se alimenta de areia. Morre e mata os outros. Maquiar mentiras não dissipa dores, mortes e vírus. O som não cessa quando se tampa os ouvidos”.

Despedi do coelho branco que não cheguei a conhecer. Coloquei a máscara e deixei o braço nu à espera da vacina.

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 23/12/2020
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