O orientador

- Martel? Como o general franco que derrotou os mouros na batalha de Poitiers?

Encarei o professor Brandom com embaraço; eu não sabia quem havia sido esse Martel. O catedrático, cachimbo apagado pendendo do canto da boca, me encarava com os óculos na ponta do nariz, aguardando uma resposta. Sobre a escrivaninha do seu pequeno escritório na universidade, pilhas e pilhas de livros empoeirados - e um crânio humano, que não parecia ser uma réplica.

- O meu Martell é com dois "l" - respondi finalmente, dando-me por vencido.

- Muito bem, Louis Martell com dois "l", - prosseguiu ele, bem-humorado - quem lhe recomendou meu nome como orientador?

- Herman Barkle, estudante de paraquímica; aluno do professor Rosenburg.

Brandom colocou o cachimbo sobre um dos livros, aparentando estar em dúvida quanto a usá-lo.

- Rosenburg... - comentou, testa franzida. - Ah, sim, lembrei quem é; rapaz promissor.

Naquele momento, imaginei que estivesse se referindo a Herman Barkle, já que o professor andava pela casa dos 70 anos e muito próximo da aposentadoria.

- Bem, vou lhe dar um encaminhamento para Amos Mayfield, secretário da administração - decidiu-se, abrindo uma gaveta da escrivaninha e dele retirando um bloco de papel amarelado cujas folhas possuíam um monograma floreado na parte superior. Puxou uma caneta-tinteiro do bolso do paletó de tweed e escreveu algumas linhas com uma letra digna de um médico.

- Aqui está - estendeu-me o papel. - Depois que preencher a papelada, pode voltar aqui para começarmos a trabalhar na sua tese.

- Muitíssimo grato, professor Brandom - repliquei, estendendo-lhe a mão, que apertou com satisfação.

Olhei para a folha; o que estava escrito ali, não lembrava qualquer alfabeto humano conhecido.

- Amos Mayfield, o senhor disse? - Indaguei, em tom dúbio.

- Na administração - respondeu, balançando a cabeça. - Pergunte lá, sabem quem ele é.

- Claro, claro - acedi, sem muita convicção. Dobrei a folha, guardei-a no bolso do casaco e despedi-me de Ian Brandom.

* * *

- Amos Mayfield - repeti, para as duas funcionárias atrás do balcão da administração. - O professor Ian Brandom mandou falar com ele.

A chefe do setor, Cicely, olhou para a subordinada, Kate, e depois para mim.

- Sei quem é; mas ele não trabalha aqui.

- Aqui não é a administração da universidade? - Indaguei, intrigado.

- É. Mas Mayfield trabalha no arquivo morto - afirmou Cicely, aproximando-se do balcão. - O professor Brandom lhe deu um encaminhamento?

- Sim - repliquei, retirando o papel do bolso do casaco. A funcionária ajeitou os óculos para examinar o bilhete, depois virou-se para a subordinada.

- Veja só - disse, exibindo-o pinçado entre o polegar e o indicador. - Se vir algum desses, pode mandar para o Mayfield.

Kate apenas balançou afirmativamente a cabeça, sem dizer palavra.

- Mais fácil encontrar Mayfield lá depois das 10 da noite - acrescentou Cicely, olhando para o relógio elétrico na parede da sala; eram 21:45 h.

- Funcionário dedicado - declarei com ironia; o sujeito provavelmente me faria perder o último ônibus da noite para fora do campus.

- Ele é - replicou Cicely, me lançando um olhar severo por cima dos óculos.

* * *

Arquivo morto.

Compreensivelmente, o setor funcionava no porão da reitoria e, às 10 h da noite de uma sexta-feira, parecia completamente deserto. Mesmo assim, bati duas vezes na porta de folha dupla, com uma placa de latão ostentando o nome afixada na mesma.

- Um momento - respondeu uma voz abafada vinda lá de dentro.

Pouco depois, uma das folhas abriu-se e Amos Mayfield apareceu por inteiro; era um homem idoso e encurvado, cabelos brancos compridos, terno preto de aparência surrada.

- Boa noite, senhor Mayfield, vim a mando do professor Ian Brandom. Sou Louis Martell.

Ele me olhou de cima a baixo; depois, estendeu a mão engelhada em minha direção.

- O papel - requisitou.

Entreguei-lhe o bilhete ilegível do professor. Ele pareceu ler, sem qualquer dificuldade.

- Ah, sim. Ele te aceitou como orientando? - Inquiriu.

- Sim.

- Vou precisar preparar a documentação - replicou, guardando o papel num bolso do paletó. - Volte na segunda, às 22 h.

Agradeci e dei boa noite a Mayfield. Ele apenas fez um aceno e fechou a folha da porta na minha cara.

Sujeito estranho, pensei, enquanto subia as escadas de volta ao térreo; mas estava aliviado por tudo ter acabado de forma tão rápida.

[Continua]

- [16-05-2021]