O CHAPÉU

Ontem eu comprei um chapéu. Que tolice. Hoje ninguém usa mais chapéus. E o pior que eu nem sei porque o comprei, não preciso de chapéus. Não tenho o hábito de cobrir a cabeça com um acessório. Mas o chapéu falou comigo quando eu passava pela vitrine. Eu pude ouvir. Eu sei, vocês vão me achar louco. Chapéus não falam, é claro que não. Mas se eu digo que o chapéu assobiou e fez um estampido alto, é porque eu quero que acreditem em mim. Todavia, relendo essas palavras, tenho pena do idiota que num futuro insondável, em que não existir sequer a poeira dos meus ossos, vier a pegar nesse diário, abri-lo e ler as maluquices aqui escritas.

Passei a usar o chapéu diariamente e o hábito criou raízes profundas e começou a incomodar. Sentia-me mal quando não usava o chapéu, ao dormir ou ao tomar banho. Era como se me arrancassem o coração e consequentemente a minha vida fosse se esvaindo numa contagem regressiva, até que o depositasse novamente sobre a cabeça.

Meus amigos faziam piadas, riam, tentavam me dissuadir a parar de usar. Mas com o tempo, quando perceberam que não mudaria de ideia, pararam com as piadas e digo que pararam até de se importar, de me chatear com isso.

Assim como acontecia comigo, o chapéu também só se articulava e ganhava vida quando eu o usava. Diferente de quando o vi na vitrine, sem um “possuidor”. Mas não me atentei para isso na hora.

Escutava-o o tempo todo. Dizia-me coisas de chapéus, que são sobre o clima, se vai chover ou fazer sol e também coisas sobre os filósofos e sobre os pensamentos das pessoas. Sim, os pensamentos. Isso é curioso e rende boas risadas. O chapéu lia os pensamentos de pessoas que também usassem chapéus. Foi por isso que eu comecei a frequentar lugares onde as cabeças eram cobertas por eles. Tinha a praça central, onde os aposentados iam jogar dominó aos domingos e também a igreja, e os bingos, não posso esquecer dos bingos.

Mas eu não me divertia com tais pensamentos. Eram tediosos e quase sempre eram sobre netos, animais de estimação e plantas. Mimar os primeiros, alimentar os segundos e regar os terceiros, de modo que isso também passou logo e o tédio da vida voltou, sem nenhuma emoção nova a não ser escutar os relatos do chapéu sobre algumas honoráveis cabeças às quais ele cobriu.

Relatou-me então o chapéu certa noite sobre isso. Um assassinato. Ele que nunca mencionou episódios atrozes que o envolvessem, agora resolveu entrar nessa questão. Quem sabe percebesse meu tédio e as horas que passavam devagar em sua companhia. Se invenções suas ou não, eu não sei. Mas esse chapéu, segundo seu próprio relato, andou na cabeça de um pistoleiro mexicano do século XIX, o qual matou treze índios, nove norte-americanos e dois cavalos. Era um ladrão, procurado em cinco estados e que sempre conseguia escapar. Noutra história o presunçoso chapéu contou-me que adornou a cabeça de um oficial da cavalaria do exército japonês, e que este apaixonou-se por uma gueixa e a raptou da casa em que esta trabalhava, acordando de manhã na cabana para onde a levara, surpreendido com a sua própria arma apontada para si e a sua amada usando seu chapéu, com um sorriso diabólico no rosto. Foi a última coisa que ele viu na vida. E também me contou esta, sobre esse inglesinho morador de rua que roubou o chapéu de um mendigo e passou a matar e roubar mendigos desde então. Tiveram tantas outras histórias e essa reflexão pertinente que agora me afligia, de que também eu me tornaria um assassino como todos os outros que usaram o chapéu antes de mim.

Foi uma resolução firme que tomei ao lançar longe o chapéu, que ficou caído num canto do quarto. Eu não poderia deixar que um acessório da indumentária humana fosse o responsável pelas minhas ações, ou pior, aceitar que esses pensamentos transtornados que passaram a ocupar meu cérebro enfermo me induzissem a acreditar que tal objeto fosse a ignição que acionasse um instinto assassino que de outro modo residiria adormecido para sempre em mim.

Por outro lado, as coisas para mim começaram a mudar para melhor depois que abandonei o uso do chapéu. Meu convívio social evoluiu e meus modos acabrunhados e aspecto apático transformaram-se. E esse novo comportamento, que afastava os antigos amigos, aproximava novos. Essa extravagância e um vocabulário as vezes ofensivo, portentoso, fizeram-me aproximar das mesmas pessoas às quais eu sempre senti indiferença e insegurança.

Foi numa festa onde minhas novas aptidões de figurão popular puderam ser colocadas em prática e pela primeira vez, sem gaguejar ou trocar as palavras, tive uma conversa agradável como o gênero oposto. Chamava-se Albertina, mas todos a chamavam de Tina. Perita na arte da fanfarronice, esta que eu estava ainda em lua de mel. Grosseira, com gestos bruscos e palavreado obsceno.

– Sou só eu que estou achando essa festa um saco? – Disse ela ao sentar-se na minha frente, virando ao contrário a cadeira em que se sentara.

– Eu sempre acho um saco festa de figurões da alta sociedade que tomam champanhe e conversam sobre coisas que só eles se acham inteligentes o suficiente para entenderem, mas não passam de observações maçantes de como os pós modernistas são incompreendidos pela grande massa, por exemplo.

– É, – ela disse, e deu um sorriso, pegando uma taça de champanhe da bandeja do garçom que passava. – Você parece legal. O que faz num lugar como esse?

– Sei lá. Vim com um amigo. Nunca tinha vindo em festas assim. Fiquei curioso. Saber o que acontece. Sabe?

Comecei a ficar mais à vontade com ela. Seus modos que antes me chocavam, agora até me faziam rir. Não haveria outra forma de acabar aquela noite sem ela na cama. E foram momentos quentes e inesquecíveis. Eu me apaixonei por ela naquela noite. Que burrice.

O oficial japonês passou a apoderar-se dos meus sonhos e todas as noites me fazia companhia, fazendo-me muito mal e causando aversão à Tina, que ao mesmo tempo eu amava com todas as forças e da qual eu relutava em me afastar.

Ela só não pode encontrar o chapéu, nunca. Eu não posso vacilar, pensava. Tudo ficará bem. Não terei o mesmo fim que ele. Foi burro. Em algum momento descobriu sobre o chapéu e deixou-o de bobeira em casa sabendo do risco.

O tempo passava e nossos encontram eram diários. Eu parecia um adolescente apaixonado. Tinha encontrado a felicidade, o amor. Mas o chapéu, que é traiçoeiro e não perdoa ninguém, começou a impor as suas vontades e pensamentos sujos, como se fosse o diabinho no ombro esquerdo.

“Ela quer lhe roubar” – “Não te ama, só quer ser bancada por você” – “Não me admira se um dia você ter uma surpresa. O amante dela lhe rouba ou mata” –“Ela não presta. Não presta”!

Tudo isso, junto com algumas atitudes verdadeiramente suspeitas dela. Fizeram com que eu passasse a duvidar da sua conduta e de suas intenções. Passei a seguir ela e descobri que de fato ela tinha um amante e eles se encontravam todos os dias.

Disposto a matá-la, a esperei em casa um dia. Ela demorou mais do que o normal e nesse dia eu não a segui. Nem precisava, pois agora sabia onde ela estava e com quem. Ela abriu a porta e me encontrou em pé, ao lado da cama, com a arma apontada pra cabeça dela. Segurava uma cesta com frutas e uma garrafa de vinho. Deixou cair ao me ver. Assim como uma lágrima. Ela não falou nada, nem teve qualquer reação também. Só ficou ali, parada.

Depois de um tempo sem decidir se atirava ou não eu também comecei a chorar e inconformado com o que o chapéu me levaria a fazer eu o arranquei da cabeça e o joguei longe. Ele caiu na cama e eu atirei nele. Um tiro que atravessou aquele pedaço demoníaco de merda. E eu cai. A vista ficou turva e minhas forças se extinguiram.

Disseram que acordei do coma por milagre. Se passou um ano desde aquele episódio em que atirando no chapéu, a minha própria cabeça recebeu o tiro. Foi o que a enfermeira me disse. Tina, segundo a mesma enfermeira, permaneceu do meu lado durante três meses. Todos os dias ela ia e voltava. Às vezes passava a noite. Aquela mulher que eu julguei que tramava contra mim, talvez só tivesse o pecado da promiscuidade, mas me queria bem.

Graça, a enfermeira, me encantava com sua presença. Passávamos muito tempo juntos afinal e ela também apreciava a minha companhia. Ela me contou ainda sobre Tina, que no dia em que fomos atendidos no hospital, ela estava descontrolada, dizendo para todos a louca história que eu tinha atirado no chapéu, mas que o tiro também acertou a minha cabeça, como se duas balas ao mesmo tempo fossem disparadas.

Ela foi presa preventivamente, mas logo foi solta. Os peritos logo concluíram que o tiro não poderia ter sido disparado por ela da posição em que ela estava. E logo após o tiro, pelo que a enfermeira relatou, um bando de curiosos cercou a casa e chamaram a ambulância e a polícia e a seguraram ali por precaução.

O fato é que não se podia provar que Tina atirou em mim, assim como também não se podia, diante de todas as evidências, afirmar que eu atirei em mim mesmo. O caso foi encerrado, sem ser concluído e até hoje se fala sobre isso.

Hoje eu caminhei. Pela primeira vez levantei da cama. Olhei pela janela e vi um homem pedindo um taxi. Antes que ele entrasse eu reparei no chapéu que usava e ouvi de novo aquele assobio horripilante que me alertou para o futuro desgraçado de mais um coitado amante de chapéus.