O CAOLHO DA CASA VELHA

Estávamos felizes por estar morando numa casa bem novinha, onde tudo fora planejado para o nosso conforto. Contudo, podíamos desfrutar também da nossa antiga casa, que ainda estava em bom estado e ficava no quintal da nova casa.

A velha casa tinha vários salões bem grandes, os quais serviam de depósito para coisas de pouco uso, como as quinquilharias do meu avô, os seus instrumentos de caça e pesca. Em especial, aquele espaço era excelente ainda para realizarmos as nossas brincadeiras de final de semana. Ali, eu e meus primos, que moravam naquela redondeza, brincávamos de skates, patins, cordas, jogos de montar e trilhas de bicicleta, do tipo tigrão, que, por ter um guidão mais alto, facilitava as manobras em pequenos espaços. Típicas brincadeiras de quando não havia celular.

Naquela noite, cheguei mais tarde da rua e fui guardar minha motocicleta na casa velha. Entrei devagarzinho, como de costume e, quando fui dar as costas para sair, fui surpreendida com a sensação de não estar sozinha. Senti, naquele momento, um forte cheiro de suor, que mais parecia cheiro de enxofre e ouvi uma respiração ofegante, que me dava a impressão de um déjà-vu ou de algum filme já visto. Andei assistindo muitos filmes do tipo Sexta-feira 13 por esses dias – pensei rápido tentando fugir da situação.

Logo passou uma cena na minha cabeça e, com ela, a certeza de que eu teria de agir. Saí dali antes que eu paralisasse. Até então eu nunca tinha tido medo de coisas sobrenaturais. Então, naquele dia não seria diferente.

Fui saindo sem fechar a porta, sem correr, nem tampouco gritar. E, assim, fiz até alcançar certa distância, quando me senti mais segura. Fiz o percurso numa velocidade quase de atleta e consegui chegar a outra casa num salto, mais precisamente no quarto dos meus avós.

Eles se sobressaltaram, visto que já tínhamos vivido um susto por aqueles dias, com um ladrão “pé de chinelo” que adentrou no nosso quintal, contudo, houve certo controle da situação à medida que eu ia narrando o fato.

Após o impacto, meu avô levantou-se rapidamente da cama e combinamos ali mesmo, de forma bem rápida e estratégica, como faríamos para agir, a partir da nossa casa para a casa velha.

E assim o fizemos, com bastante habilidade. Enquanto meu avô abria cautelosamente a nossa janela que dava para a casa velha, eu focava a lanterna de modo que encandeasse quem tivesse naquele espaço da casa e a minha avó orientava nos tranquilizando. Conhecíamos tão bem aquele lugar que saberíamos calcular, até no escuro, a localização de quaisquer coisas ali dentro. Também, eu sabia dizer com precisão, o local onde eu tinha sentido “aquela sensação”.

Prontamente, com sua espingarda em punho, meu avô deu dois tiros para a direção planejada. O intento era somente o de assustar quem estivesse ali, mas tão logo os tiros foram disparados, pudemos ouvir objetos caindo pela casa e um ser bastante atrapalhado tentando se esconder ou evadir se por entre aquela bagunça que ele mesmo fazia. Foi possível observar que o mesmo tinha os cabelos grandes e amarelos como o fogo e um olho só, mas que reluzia como ouro, emitindo uma intensa luz de volta, o que supus ser por conta do foco da lanterna. Percebemos, ainda, que o mesmo era bastante peludo, gemia como um bicho e que, ao ser ferido, suas roupas, embora muito encardidas, deixavam ver as manchas de sangue naquela calça enorme, que se assemelhava a um saco de juta amarrado pela sua cintura.

Seguiram-se, então, cenas terríveis presenciadas por nós. Misturando-se àquela coisa estranha correndo em desespero pelo quintal, iam as roupas do varal que o mesmo arrastava. Por estar encandeado pela luz da lanterna, em um dado momento, o mesmo não percebeu um balde com óleo vencido que minha avó havia deixado ali para fazer sabão e, na pressa, o trapalhão derrubou o mesmo se encharcando todo com o produto. Ao sair correndo para se safar do flagrante, ele teve de pular o muro e deixar pedaços de sua própria vestimenta nos arames daquela estrutura, bem como, pelos e pedaços de pele.

Galinhas, patos, marrecos e outros bichos domésticos que criávamos ali, até então estavam quietos, mas com os tiros e o desajuste daquela figura, assustaram-se e houve um grande alvoroço.

Minha avó pedia cautela, enquanto o meu avô dizia que aquilo era coisa do outro mundo, que ele jamais imaginara ver uma criatura tão bizarra. Eu estava em êxtase, imaginava-me fazendo parte de um cenário de filme de terror, mas ao vivo e em cores. Eu não sabia se abraçava meus avós ou se rezava. O pensamento mais forte era a interrogação do que seria, na verdade, aquela criatura. Um ET, um lobisomem, uma mutação genética? Quem poderia responder? Será se ele trouxera algum recado de outra dimensão? O que a criatura queria comunicar ou realmente desejava? Melhor seria, no entanto, se pudéssemos esquecer aquele momento de assombração. Mas, seria possível? Uma coisa era certa, eu não estava sozinha, tinha a presença dos meus avós como testemunha ocular.

Ao sentir que estávamos livres do perigo, fechamos bem nossas portas, apagamos as luzes e ficamos orando baixinho, enquanto minha avó nos lembrava de que precisávamos ser mais previdentes. Já o meu avô nos fazia refletir sobre um dito popular que diz: “Um dia é da caça, o outro do caçador”. Hoje foi do caçador. O danado do bicho que não identificamos ser o quê, fuçou o terreiro, mas agora foi se ter com o raio que o parta.

Quanto a mim, depois daquele susto, lembrei-me de outro provérbio que diz: “O seguro morreu de velho”. Devemos ter a sabedoria e a precaução para evitar e/ou saber lidar com situações inusitadas como aquela.

Depois, o que eu mais queria era que o dia amanhecesse logo e que eu pudesse sair feito uma louca para contar aquela bravura para os meus primos. Mas será que eles iriam acreditar? E se não, penso que pouco faria diferença, eu queria mesmo era poder desfrutar outras experiências com os meus avós-heróis. Curtir cada aprendizado e um dia poder contar para os meus filhos e netos as minhas histórias, que certamente irão ficar nas minhas mais doces lembranças, ou em um livro de memórias para eternizar a saudade que certamente me encherá os olhos em busca de cenas de um tempo por nós vivenciados.

Luzinete Fontenele
Enviado por Luzinete Fontenele em 04/10/2021
Reeditado em 06/10/2021
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