Poeira em alto mar

Nesta casa, seu moço, tinha gente. É verdade. Se não, tinha pra que construir? Se tá ali é porque tinha. Mesmo que hoje pareça que não, que desde sempre foi morada de vazios e de mofo, nessa casa tinha gente. Foi num tempo muito antigo, no tempo das embarcações grandes que passavam por aqui, levando peixe até o lado de lá, perto daquela serra que parece a cara de um boi. Ali, também tinham casas, mas o governo descobriu que tinha ouro e aí já viu… derrubaram. Colocaram umas máquinas grandes assim que pareciam bestas-feras das histórias de Trancoso e engoliram tudo. Cidade, então, tem mais não.

Mas nessa casa aqui, ó, tinha gente. Contam que era uma família de pescadores humildes, que pegava uns peixes mágicos que de noite nadavam por cima da água na lua cheia. O pessoal não estranhava esse fato porque, de tanto ver, deixa de espantar. E né não? Pensa na neve. Eu já vi. No primeiro dia é a coisa mais diferente do mundo, aqueles flocos brancos parecendo farinha descendo do céu. Mas depois da terceira, é neve. Só neve. Os pescadores, apesar do nome, nunca venderam esses peixes. "Se vender, que graça tem?", dizia o pai. "E também, tirando a boniteza, só tem osso, e ainda duro, dá nem pra comer frito!" completava a mãe. De forma que o povo sabia que nas noites de lua cheia, se espiasse bem, veria os peixes nadando no céu e se jogando na água.

Era bonito. Era bem bonito. Eu não cheguei a ver. Não era do meu tempo. Quem me contou foi minha avó. E só depois de eu insistir muito. Lembro até hoje os olhos que ela botou quando contava. Parecia que tava vendo a coisa… e quando a gente ouvia a voz dela, parecia que o mundo se fazia ali na nossa frente. Vocês de hoje não entendem isso. O jornal já conta, já mostra e ainda enfeita. Mas pra saber das coisas, era só pelos de fora e pelos antigos que nos diziam de uma época diferente.

Os peixes nadavam no ar. Nadavam, não voavam. Nadar é diferente, tem que empurrar, puxar e essas coisas. Voar é se equilibrar. Aí depois voltavam pra água.

Um dia, esse casal teve uma filha chamada Maria dos Anjos. O casal acabou pondo esse nome porque tinham certeza de que essa menina não viveria muito. No dia em que ela nasceu, aconteceu algo diferente. Os peixes, que nunca nadaram fora do mar, acabaram entrando dentro da casa pela janela e saindo pela porta, indo e voltando. A mãe, que nunca me disseram o nome, grávida de 8 meses, olhou aquilo espantada, até que um peixe trouxe na boca um rosário de pérolas e jogou no colo dela. Daí, dizem que ele não lembrou de mais nada, só se lembrou quando a menina já tava no seio dela, sugando até o que não tinha pra viver, enquanto na mão segurava o rosário que o peixe havia trazido. Disseram, “Ou nasceu pra ser feliz, ou nasceu pra sofrer e fazer outros felizes, ou não vai viver muito”. E como ela era magrinha de dar pena, acharam que não ia viver muito. E Maria dos Anjos ficou sendo essa criança de vésperas.

Acontece que, como tudo que é especial às vezes assusta, essa menina cresceu e adquiriu o dom de falar com os peixes. No começo o povo estranhava que ela ficava lá parada só fazendo uns sons com a boca, mas depois perceberam que, aonde ela gesticulava, os peixes iam. E assim, o nadar dos peixes no ar passou a se tornar um espetáculo lindo de se ver. Era Maria dos Anjos fazer um som, e eles se juntavam, era fazer outro, e eles se separavam, esse outro aqui e eles ficavam em linha reta. E o povo foi vendo aquilo e se afeiçoando com Maria dos Anjos, ou Anjinha, como chamaram depois. E os peixes, que sempre estiveram lá, passaram a ser os peixes de Anjinha e a casa, a casa de Anjinha. Até a praia passou a se chamar a praia de Anjinha.

E Maria dos Anjos foi crescendo. Não morreu como os pais achavam, mas acabou se irmanando tanto aos peixes, que aprendeu a desfalar a língua da gente. Pra ela, era mais fácil pedir uma coisa aos bichos que às pessoas. Seus pais viram aquilo e acharam que era coisa ruim que botaram nela, porque o diabo pode se esconder no ouro e a gente achar bonito. Chamaram uma benzedeira. Nada. Chamaram uma rezadeira. Nada. Fizeram o terço das seis horas. E nada servia. Cada vez mais Maria dos Anjos perdia a língua da gente.

Até que um dia passou por lá uma senhora simples, com aspecto cansado, segurando uma bengalinha e com um olhar bondoso. Pediu pra entrar na casa e descansar um pouco e perguntou aos pais de Anjinha se não podiam, pelo amor de Deus, arrumar algo pra ela comer. E como eram pobres, disseram que sim. A velhinha sentou-se no batente da casa e viu Maria dos Anjos sentada perto da praia enquanto falava com os peixes e brincava com eles. A velhinha não estranhou aquilo, pelo contrário, aquilo lhe parecia a coisa mais natural do mundo. Foi andando até perto da criança e ficou perto dela, olhando o céu, enquanto a lua se desenhava atrás das nuvens.

Os pais apareceram e viram aquela cena e chamaram as duas pra comer, Maria dos Anjos, parecia que não ouvia, e ficou lá. A mãe se desculpou com a velhinha e explicou que, por algum acaso, a menina vinha desaprendendo a falar e só ficava junto aos peixes. A velhinha, então, pediu para a mãe mostrar o rosário de pérolas. Esta se espantou, pois quase ninguém sabia desse rosário. A velhinha, então, respondeu: "Essa é uma menina de despedida. Faz tempo que eu ouvi falar delas, mas essa é a primeira que eu vejo na minha frente”. A mãe ficou confusa. A senhora respondeu que às vezes o anjo responsável pelo tempo sabe que uma coisa muito bonita está para acabar e que vai trazer sofrimento, por isso, ele pede a Deus que envie uma criança que torne esses dias mais alegres e que marque com alegria esse fim das coisas. “Você recebeu um rosário de pérolas, não é? Foi um presente do anjo para vocês”. A mãe sorriu com os olhos lacrimejantes. Nesse momento a velhinha, pôs a mão no rosto da mãe, como se ela mesma fosse a sua filha e disse: “Mas lembra, filha, essa é uma criança de adeus”. As duas sentaram para comer ali no batente da casa e mais tarde veio o pai e Maria dos Anjos. Enquanto isso, os peixes nadavam e se jogavam na água.

Até que um dia Maria dos Anjos sumiu. Conta-se por aí que ela saiu nadando em um cardume numa noite de lua cheia. Outros acham que de tanto falar com os peixes, aprender com os peixes, acabou se transformando em um peixe também e saiu pelo mundo nadando no ar e se jogando na primeira água que encontrasse. O fato é que não se viu mais a menina e a mãe, apesar de seu coração já ter a resposta, não cessou de chorar à beira do mar esperando os peixes que não haveriam mais. Seu pai pai andou muitas e muitas léguas perguntando pela filha, sem resposta. Decidiu achar que ela se afogou e enterrou o umbigo que ele ainda guardara da sua filha amada.

Mas tem outra versão dessa história. Essa, dizia minha avó, era a verdadeira, mas nunca me falou o porquê dela ter tanta certeza disso. Ela só sabia.

Ela contou que os dias se passaram e Maria dos Anjos continuou em seu ensimesmamento, apenas brincando com os peixes. Os vizinhos lhe davam oi, os barqueiros lhe davam oi, e ela só olhava e continuava lá. Até que um dia a mãe estava lavando roupa e ouviu uma voz bem meiga a chamando, quase um sussurro alegre: “Mãe!”. Ela se virou e viu Maria dos Anjos flutuar no ar, nadando junto aos peixes. Parecia um quadro. Os peixes brilhavam como nunca haviam brilhado antes. Como estava linda! Seus cabelos flutuavam como ondas em uma praia e ela sorria, sorria…

“Mãe, a senhora sabia que tem um rio que anda ao contrário?”

Não. A mãe não sabia. Mas seu coração sim. Ela era uma criança de despedida. Apertou o rosário em seu peito e apenas rezou uma Ave-Maria. Baixinho, como quem não quer incomodar. E então Maria dos Anjos falou: “Eu volto na época das flores, mãe”. E saiu nadando rumo ao infinito.

A partir daquele dia a mãe nunca quis sair da casa, ou do alpendre. Sempre abraçada ao rosário, rezando as contas de sua sua saudade.

Desde então o mar foi secando como que puxado por esse rio que corre ao contrário. E a casa ficou aqui por muito tempo… muito tempo. Suportando as ondas agora de poeira e vendo os barcos ficarem na terra. Esperando…

esperando que o deserto se torne flor para a volta de Maria dos Anjos.