O aparato voador

Descobri a caixa numa limpeza do sótão; era de madeira, longa e pesada. Aberto o fecho, deparei-me com uma armação de bambu e seda verde, que aberta, revelou-se como um par de asas, parecendo algo desenhado por Leonardo Da Vinci. Desci com elas, para mostrar à minha mãe; ao vê-las, ergueu os sobrolhos.

- Eram do seu bisavô paterno, Matteo - declarou finalmente. - Seu pai conta que, quando ele era menino, o velho Matteo costumava usar aquele penhasco a cavaleiro da cidade como trampolim, e voava pelas vizinhanças, assustando as pessoas.

- Se ele realmente conseguia voar, por que perder tempo com brincadeiras idiotas? - Questionei.

Minha mãe suspirou.

- Não eram brincadeiras - admitiu. - As pessoas não sabiam que era ele, e fugiam, apavoradas.

- Ele poderia ter se identificado - repliquei. - Gritado: "ei, eu sou Matteo"!

Minha mãe abanou negativamente a cabeça.

- Estas asas te dão mais do que um voo planado - explicou. - Você se transforma em outra coisa... uma coisa que voa.

- Que tipo de... coisa? - Indaguei, apreensivo.

- Seu pai nunca soube explicar bem - ponderou minha mãe. - Mas, vamos dizer que cada um via algo de que tinha medo... com asas. Foi aí que seu bisavô parou com a história dos voos, por mais que gostasse da atividade.

- Por causa da repercussão negativa - intuí.

Nova negativa de minha mãe.

- Os primeiros aviões estavam sendo construídos, e logo se tornaram uma arma de guerra. Seu bisavô não queria ser confundido com o que quer que fosse, lá em cima, e metralhado por algum piloto apavorado.

Balancei a cabeça, decepcionado.

- Compreendo.

E depois, erguendo os olhos para minha mãe:

- Mas será que ainda funcionam, depois de tanto tempo guardadas?

Minha mãe me fez jurar que jamais voltaria a pegar naquelas asas, e depois ordenou que as recolocasse onde as havia encontrado; caso contrário, teria que me explicar com meu pai. Obedeci, a contragosto.

O último brilho da seda verde ao ser guardada de novo na caixa, lembrou-me das escamas coloridas das asas de uma borboleta; ou, quem sabe, as escamas de um dragão. Cada um via o que queria nelas, e eu estava certo de que nalgum momento vindouro, despertariam apenas beleza, não mais medo.

E então, eu estaria pronto para seguir a rota do meu bisavô pelos céus sobre a cidade.

- [14-09-2022]