VINDE IRMÃOZINHOS! - (Contra-contos #01)

VINDE IRMÃOZINHOS!

Aristóteles fitava os demais que pareciam examinar o ambiente e talvez a si mesmos, a maior parte deles fechada em si filosofando, naturalmente. Não eram todos eles pensadores, filósofos, sábios?

Jamais os increpariam de serem homens de ação. Ali se encontravam em bom número, mas não se conheciam entre si. Barbudos e glabros, claros, bronzeados e negros, em todas as estaturas, alguns com aleijões corporais, a mais díspar variedade imaginável de trajes – menos alguns praticamente despidos, um deles, Osiris tendo apenas um pano na virilha.

Haviam passado a vida terrena procurando entender–se a si, aos outros, à natureza e a Realidade Suprema – e ainda não sabiam muito. Transpondo barreiras de tempo, fenômeno ilusório e atribuível à inciência humana, ali se achavam sob comando de força maior, tirados do merecido descanso.

Foi o mais inspirado e místico, talvez, quem percebeu o que se passava e se pôs a falar. Haviam-no chamado Krishna na Terra onde vivera, recebia de algum lugar, alguma coisa ou alguém a incumbência de dar sentido à reunião estranha na qual as pessoas não se conheciam e haviam sido postas no mesmo ambiente. Qual o fito? Não se importavam muito.

–Amigos, irmãos – principiou ele, todos se voltaram cortês e pensativamente para o primeiro a falar – estamos reunidos porque surgiu uma emergência. Somos todos pensadores, procuramos a verdade, o conhecimento.

Falava pausadamente e isso permitiu que o barbudo Aristóteles erguesse a mão, no braço a alça da túnica branca. Voltaram-se para ele, o orador Krishna silenciou e o fitou também.

–Chamei filósofo quem procura o conhecimento, a sabedoria. Organizei palavras gregas para isso, foram consagradas pelos homens, pelos soberanos, pelos sábios e pelos deuses. Pura inspiração, embora eu buscasse um termo pelo qual consentiria ser chamado, jamais aceitaria me intitularem “sábio”. Apenas procurava a Verdade, não permitiria me equipararem aos verdadeiros sábios... se os houve.

Entreolharam–se, calmos e lúcidos. Alguém se apresentava como sábio, isto é, aquele que sabe, conhece a Verdade? Diante do silêncio geral, todos a procurarem algum sábio completo e nenhum a se proclamar como tal, Aristóteles concluía:

–Vede, pois, não há sábios entre nós. Mas filósofos, quem procura ainda o conhecimento da Verdade, a sabedoria, o conhecimento.

Krishna podia prosseguir:

–Eu me identifico inteiramente ao conceito. Também procurei e procuro ainda a Verdade, a sabedoria. Embora obrigado a aceitar a corte e veneração dos homens comuns, entre eles o povo simples, os nobres, guerreiros, soberanos e sacerdotes. Chamaram–me Krishna naquele planeta. Amigos, irmãos, algo me diz para nos identificarmos.

–Chamei-me Aristóteles – o barbudo de manta deu o exemplo, erguendo a mão em saudação romana.

–Platão, mestre, teu discípulo – afirmou outro, dirigindo–se de modo respeitoso ao primeiro, que não o parecera reconhecer.

–Demócrito – apresentou–se outro togado – Vivi na Grécia.

–Sidarta Gautama – tranquilamente declarava outro mais.

–Jesus de Nazaré. Vivi onde chamam Palestina. Mas viajei muito.

–Arthur Schopenhauer – afirmava ancião de carranca, pessimismo irradiando do semblante carregado.

–Friedrich Wilhelm Nietzsche – apressou–se a dizer homem ainda jovem, bigodes imensos e bastos cabelos, como provocando ao nome anterior do mestre pessimista e inimigo das mulheres – terminei louco, não suportava mais a Weltschmerz o Unwertung alle Werte, os eflúvios do ewige Weiblich. Sonhava com o Ubermensch, sonho ainda, ele virá um dia ao mundo. Será o epítome da mais santa loucura sadia.

Pareciam todos respeitá–lo no que dizia, alguns assentiam.

–Thomaz de Aquino – resmungou outro.

–Immanuel Kant.

–Osiris.

–Hegel, como me conheceram.

Os nomes se sucederam, apresentavam–se assim, não havia pressa nem tempo, era para se identificarem aos demais. Faltava alguém, todavia.

Todos se voltaram para ele, que de olhar baixo o erguei surpreso. Quanta luz irradiavam seus olhos! Eram duas estrelas, simultaneamente dois buracos negros, fim e principio da vida universal.

–Francisco de Assis – confessou humildemente aquele que acariciava o cão rafeiro deitado aos seus pés, no ombro lhe pousara um pardal. Faminta, a ave parecia ter encontrado alimento bicando–lhe as dobras do surrão imundo e esfarrapado.

–Somos todos filósofos, portanto – prosseguiu Krishna quando o último erguera a voz, parecendo fazê-lo com esforço, preferia guardar silêncio, a augusta assembleia o esmagava. Só falara quando todos se haviam voltado para ele como a lhe cobrar a identificação.

Descartes soltava muxoxo, as atenções se voltaram.

–Tenho dúvidas de que alguns devessem achar–se aqui – pomposo como sempre, crítico acérrimo, homem da Razão ainda então.

–Pelo visto, irmão, algo ou alguém assim determinou. Quem somos nós para medir forças com outras maiores?

–Eu trabalho ativamente na revisão da minha obra definitiva sobre a Razão e fui interrompido – explicava o gaulês.

–Tua razão parece impedir que enxergues coisas maiores – comentário em voz dulcíssima de acordes melodiosos, vindo do humilde Assis.

Em resposta ganhou novo muxoxo, René enfiou-se mais na cadeira, não lhe dedicou sequer o olhar.

William Shakespeare ergueu-se. Mestre dramático, em passadas visivelmente teatrais adiantou-se e se pôs à frente de todos, ergueu o braço como se tivesse na palma da mão alguma coisa à qual falava:

–Ser ou não ser, continua sendo a questão. Entre o céu e a terra, Horácio, existe muito mais do que imagina tua vã filosofia!

Um repelão e o bardo de Strattford-on-Avon dirigia-se aos presentes, abarcando-os com largo gesto de mão e braço:

–Senhores, tende a certeza de que foram cobrados os ingressos? Não se pode viver apenas de fantasia e teatro, há estômagos e familiares a nutrir e vestir!

–Calai-vos e voltai a sentar – Descartes fazia a advertência em voz sibilante, devia estar realmente aborrecido. – Quanto mais cedo isto terminar, mais cedo poderei voltar ao trabalho.

Krishna retomava a palavra:

–Fomos reunidos para deliberar, pois o planeta onde estivemos se acha em crise e requer atenção. Trata-se de cuidar um pouco daqueles pobres semelhantes, ainda presos aos elos materiais, que não se conseguem desprender de tal plano/planeta por não adquirirem a porção mínima necessária de luz para se livrarem de sua atração. Pensai, senhores...

Abarcava a augusta assembleia com olhar cheio de compaixão.

–A nosso tempo fizemos tudo por proporcionar a libertação a tantos quantos pudessem e quisessem. Ainda sabendo que a maioria jamais o conseguiria, devíamos espalhar a mensagem para chegar compadecida aos poucos companheiros capazes de ouvi–la, ao menos ouvi–la, tentando então entende–la e divisar o caminho, a Verdade...

–Tao – murmurou o ancião chinês de olhos amendoados, outro assentia concordando, o mesmo lhe ocorrera. Na visão de todos surgiam traços rasgados de pincel, em linhas e formas agradáveis.

–Tentei e fracassei – afirmou Jesus, coçando a palma da mão onde a cicatriz não desaparecera por completo. – Consegui apenas mostrar aos mais percipientes que o caminho por mim tomado não era, em absoluto, o caminho a tomar. Acreditei que tudo que se assemelha a seres humanos o fosse, isto é, humanos

Sentia–se novamente crucificado, as lágrimas desciam pelas faces, os demais o fitavam entre compadecidos e contristados. Poucos sorriam.

–Não acreditei e não aceitei que o Medo e seu filho dileto, o Egoísmo, fossem tão soberanos das mentes mais fracas, pedi demasiado a tantos, que não tinham forças! Levei–lhes o Amor como fonte mágica de saúde e antídoto ao veneno do medo, mas só o souberam perceber alguns, também temerosos e, portanto, egoístas. Tentei, todavia! – e o afirmava com doçura e vigor simultâneos.

–Na Grécia sempre soubemos que os homens são incapazes – comentava Platão – por isso cultivávamos os deuses, nossos deuses entre divinos e humanos éramos nós mesmos, os poucos que sabiam, podiam viver e obrar fora do plano rasteiro da massa humana. Não à toa cultivamos a ideia aristocrática e mesmo entre os que assim se julgavam, por mera questão de nascimento, por terem nascido de homens ilustres e verdadeiros semi–deuses tal se julgavam, não sabiam que a força terrestre não assegura à nascitura algum qualquer direito, ele não o recebe por nascimento, tem que adquiri–lo por esforço e mérito. Entre nós muitos padrearam filhos – assentiam muitas cabeças – e sabemos que costumam ser um fracasso, a despeito de nossa semente e nosso exemplo – mais assentimentos ainda.

Jesus o fitava com espanto.

–De fato, mesmo entre meus apóstolos muitos fraquejaram, eu não lhes podia confiar cargas além das suas forças. Como embrulharam tudo que eu disse e preguei...! Puseram em meus lábios palavras e imagens que eu não usei e esconderam outras...! Principalmente determinado imbecil – e se punha novamente irado como certa feita, no templo do seu Pai – modificou tanto meus ensinamentos! Chamam cristianismo à mixórdia feita do que ensinei, por que não são mais coerentes e o chamam “paulinismo”?

Sidarta Gautama sorria de leve, sempre manso e benévolo.

–Tínheis de aprender vossa lição – observou – E como dissestes, ficou marcada uma direção.

O dramaturgo sentia o palco faltar–lhe à intimação cartesiana, mas desde quando um leão atende ordens? Voltou ao palco de antes, diante de todos.

–Não haveis respondido, nem cogitado sobre minha propositura! Ser ou não ser? Continua sendo a questão. Devemos cobrar ingressos?

–Senta-te e fica quieto – René mudara deliberadamente o tratamento – ou me atraco contigo e assim saímos ambos de aqui, eu para meu trabalho e tu para teus bastidores e ingressos.

Os demais sorriram, apenas Schopenhauer continuava taciturno, mas se fazia ouvir agora:

–A questão fundamental é essa, porém enunciei melhor. É dizer NÃO à vida, negá-la, assim nós subtraímos as forças gravíticas daquele planeta idiota, cheio de mulheres, reino delas.

–Como se chamou tua Xantipa? – indagou zombeteiro Sócrates, sempre nas perguntas, sempre maiêutico.

–Abit anus, obit ônus – retorquiu azedamente o pessimista, só então com leve sorriso, o máximo que se permitia. – E não penseis que detesto mulheres por me agradarem homens. Tenho-lhes ojeriza, a todos eles.

–Disfarçais muito bem vosso amor à humanidade e à Vida – era apenas um murmúrio de Assis, mas naquele ambiente os murmúrios se viam compreendidos por todos. Só ele não o percebia, não enunciara as palavras com intenção de ser ouvido nem mesmo pelo mais próximo. Sempre desligada das coisas materiais essa criatura!

–A propositura tem pleno cabimento, é claro – reconhecia Kant. – Ser ou não ser, eis a dúvida. Dúvida da qual nos livramos, ao menos para consumo externo e assim asseguramos nossa vida material, mas permanece sempre. Eis que me encontro novamente em dúvida.

–Quando eu puder terminar meu trabalho, aclararei de vez a questão – prometia Descartes – Se me permitirem trabalhar, pelo visto!

Os olhares gerais se voltaram para ele, de tal maneira que até os pensamentos se tornavam perceptíveis, não apenas os murmúrios. René percebeu, calou–se, prometeu parar de reclamar e falar em seu maldito trabalho. Não criava juízo?

–Ainda digo que alguns não deveriam estar aqui – sentenciou, mas para surpresa e alegria geral, acrescentava: – Talvez eu mesmo!

–A dúvida, portanto, constitui o fundamento final da Realidade, do Conhecimento e da Sabedoria – enunciava o chinês, um deles – digo–o para podermos mais uma vez examinar–lhe a fundo a essência.

Formou–se pesado e denso silêncio, ninguém o rompeu, imersos nas profundezas da dúvida. Após algum tempo, Krishna retomou a palavra:

–Eloquente silêncio, irmãos. Será este reino, onde nos encontramos, o próprio reino da dúvida?

–Uma teoria – concordou Hegel. – Sempre as formulamos, não é mesmo? Especializamos em formular teorias, assim como o lavrador se especializa em criar carneiros, a mulher em parir e assegurar a chegada de outros ao planeta, vindos do microcosmos.

Assentiram todos, quase todos eles. Assis continuou afagando a cabeça do rasteiro, o pardal dava saltos em seus ombros e cabeça, fora valentemente pousar no espaldar da cadeira de Schopenhauer, mas bastou o olhar do velho e a ave mudara de ideia, voltava a se abrigar no surrão esfarrapado e imundo de Francisco. Ali chegado, emitiu um chilrado de satisfação e boa vontade ao carrancudo pessimista.

–Podeis ao menos dedicar vossa atenção ao que estamos examinando? – indagava agora com certa doçura e ainda teatralidade o bardo, dirigindo–se ao esfarrapado filósofo que parecia atentar apenas para os animais.

Bacon levantou–se, trêmulo de raiva, indicador trespassando o compatriota àquela distância entre eles.

–Cala–te, saltimbanco ! Queres a vergonha de Albion?

Assis voltava a erguer o olhar manso e surpreso.

–Sempre estou presente – explicou, sílabas que eram notas musicais, de indescritível doçura – Mesmo quando não me querem.

–Nossa reunião, entretanto, tem a ver com o dilema em que se encontram os seres do planeta do qual saímos, mas deixamos nossos ensinamentos – prosseguiu Krishna – trata–se do mesmo dilema encontrado por lá quando lá estivemos. Nada parece ter mudado, cogita–se em eliminar do orbe aquelas formas de vida por irremediavelmente perdidas, experiência gorada, viveiro inútil de mazelas.

Assis deixava de afagar o cão, o pardal saltava para o alto de seus cabelos desgrenhados e sujos, o santo se erguia atarantado, fitando ao redor. Jesus o imitava, abria novamente os braços onde as marcas das chagas voltavam a sangrar.

–Pai, não o permitais! Estou pronto a dar novamente minha vida, sangue e sofrimento por aqueles infelizes! Pai, não me falteis nesta provação suprema! – suplicava Jesus, voz dulcíssima, diáfana a túnica inconsútil.

Formara–se burburinho entre os presentes, era momento de agitação.

–Não estamos tão desligados do planeta, pelo visto – observou maliciosamente o filósofo de Jena. – Ainda há de surgir por lá o Uebermensch a justificar toda a insânia daquele orbe.

Sócrates tinha perguntas que não o eram, afirmações assim veladas.

–Julgais estarmos livres? Nada mais temos com aquelas criaturas? Podemos deixa-las perecer quando acreditamos nelas, em algumas ao menos? Tu, Demócrito, podes falar?

O outro parecia imerso em pensamentos agitados, mas logo prorrompeu:

–Se de mim depender, atomizo quem se atrever a tocar naquela gente! Farei o que estiver ao meu alcance para seguirem vivendo! Dou minha vida dez, cem, mil vezes pela bela Terra e sua gente estúpida! – chorava agora.

O silêncio seguinte foi carregado, Krishna voltou a rompê-lo.

–Trata–se, irmãos, de salvar ou deixar perecer esse orbe e a vida nele contida, haver ou não continuação para esse orbe, onde a maioria esmagadora que tem de passar por ele não o consegue, falta-lhe força para se alçar após cumprir seu termo, mesmo nas encarnações sucessivas.

–Encarnações? – bradaram alguns.

–Não aceito tal ideia! – asseverava um deles, mais indignado que os outros.

No silêncio seguinte e predisponente a debates, mais uma vez a musicalidade vocal se fazia ouvir!

–Estarão presos ao orbe por amor a ele, por isso. Na verdade, não querem tê-lo perdido, amam aquele planeta, não o querem deixar. Não é por medo que assim se comportam, é por amarem demais o planeta azul e belo...

Percebia-se no ar a estupefação geral. Haveria gente capaz de amar indefinidamente um orbe ao qual poucos – algum? – desejaria voltar? Mas Demócrito caia em si, reconhecia com sua coragem, sempre bem dotado dela.

–Pode ser. Pode ser, mesmo! Eu não me importo em voltar e padecer outo termo, outra vida por lá. Não o quero desaparecido e exterminado, guardo-lhe amor completo, total, imenso! Não o permitirei! – e desferia golpes no ar como a enfrentar inimigos mil vezes mais fortes, na audácia de quem luta contra forças maiores, contra um fim inevitável, mas assim mesmo, endemoninhado com os pares de amantes haviam lutado em sua Grécia, nas Termópilas, em ocasiones homéricas.

Schopenhauer o fitava em singular misto de inveja e desdém.

–Tivesses tua Xantipa e não estarias tão apegado assim – já se intimizavam, o tratamento evoluíra. – Vejo agora que tenho isso a agradecer àquela megera – referia-se evidentemente à ex-esposa – ou seja, por meio dela pude alçar-me e afastar-me de lá. Criou-se para mim uma dúvida, a ideia não me agrada! – bramia agora, furioso.

Assis sorria mansamente. Alguns se tinham valido de mulheres e filhos para se encontrar e evoluir, não todos. Havia muito mais a amar naquele orbe, além de mulheres, homens e filhos. O rafeiro continuava a aceitar seus afagos, o pardal tinha a companhia de duas outras aves que haviam surgido e também lhe beliscavam o surrão. Um leão se aproximava arredio e desconfiado, o medo à assembleia de visões humanas fora vencido pela ânsia a arrastá-lo àquela criatura singular.

Krishna fitava paisagens e imagens parecidas às nuvens terrestres, lembrava saudoso as águas em cascata, rios e riachos mansos e bravios nas enchentes, a vegetação, pôr-do-sol e arrebol luminosos, o canto dos ventos fazendo ciciar a folhagem, os animais em seu habitat intacto, o rugido musical do tigre que apresara um ser vivo e finalmente ia saciar a fome por algum tempo... As tempestades, as noites tenebrosas ou luminosas...

Aristóteles e Platão reviam as velas pandas das embarcações majestosas, ora singrando mares ora calmos, ora tempestuosos do Mediterrâneo, as costas ilhoas de tal rendilhado em sua amada terra. Os gritos dos marinheiros, o canto das gaivotas. Jesus se absorvia nas imagens, sons e odores dos jardins e desertos de sua época. Os chineses contemplavam mais uma vez diante de si os rostinhos infantis dos recém-nascidos, tanta promessa...

Aos pés de Assis o leão fitava um ponto perdido no horizonte eterno. Por onde estariam as duas crias e a leoa que as gestara, após amor tão bravío?

Foi prolongado o silêncio, todos fitavam seus horizontes e cenários distantes ressurgentes agora à memória.

–Irmãos, vossa decisão é aguardada – Krishna voltava a consultá-los, trazendo-os de volta das recordações, apenas Schopenhauer parecera aferrado ao momento, relanceando o olhar pelos demais e partilhando suas visões, ninguém retribuíra, pareciam todos ausentes. Era quem mais sofria; aquele idiota adorado por leão, cachorro e pássaros murmurara a verdade. Sofria intensamente, sabendo que deles dependia o orbe nauseabundo. Não iam tomar uma providência? O que diriam em seguida, que atitude tomariam? Dilacerava-o uma aflição nunca sofrida quando incorporado a um casco sofredor e limitado, homem no orbe amaldiçoado, ao qual insultava. Era dizer NÃO, e pronto! Terminaria aquilo de uma vez, o sofrimento o torturava de maneira indizível, sentia-se pavorosamente.

Krishna se voltou devagar para ele, os demais o imitaram, apenas Francisco de Assis se manteve ocupado, de novo imerso na atenção aos animais.

–Irmão Arthur, coube-vos a incumbência de decidir. Todos nós acompanharemos vosso voto.

Sofrimento inaudito! Jamais alguém passara por tamanha tortura! E todos o percebiam claramente, muitos começavam a chorar de modo viril, sabendo e sentindo isso.

Aos soluços entrecortados, em pé agora e caminhando a esmo, em um e em outro, inteiramente cego, os brados vieram roufenhos:

–Deve viver! Tem de viver! VAI VIVER! – eram gritos lancinantes, neles se continha todo o sofrimento do orbe, de outros orbes, de todos os orbes. – Retorno para lá, lutarás ao meu lado, Demócrito? – voltava-se para quem gesticulara inutilmente sem armas, implorando e súplice ia ter com ele, ajoelhava-se diante dele,

Demócrito o abraçava tomado de delírio, retalhado pela dor.

Os demais caminhavam, já em pé desde muito, e vinham entre tímidos e sôfregos ter com os dois, estendiam os braços pondo as mãos nos seus ombros.

Demócrito e Arthur se voltavam devagar, viam formando com eles toda uma legião de braços e semblantes de companheiros para a luta. Mas sentiam a falta de alguém, faltava um!

Pardal, aves, rafeiro e leão haviam sumido. Acenando-lhes da distância, Francisco se afastava, seguia na frente, mostrava o caminho. Antecipara-se a eles, a música das suas sílabas lhes chegou, apesar da distância.

–Irmãozinhos, estão-me chamando, preciso ir.

–Espere por nós, imbecil! – e o alemão velho voltava a rugir.

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Valpii-860507-790819

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VINDE IRMÃOZINHOS!

Forma parte da Coletânea CONTRA-CONTOS, de Affonso Blacheyre, (1928-1997), cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do primeiro dos contos da coletânea,.

(editado por Gabriel Solis.)

Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 26/12/2022
Reeditado em 15/06/2023
Código do texto: T7680152
Classificação de conteúdo: seguro
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