A LENDA DA CASCATA VÉU DE NOIVA (Compilação livre de conto popular)

Tio Arcido andava meio aborrecido, caminhando de mãos nos bolsos, não sabia nem porque estava assim. Tia Nica, que conhecia muito bem o companheiro, somente de olhar para ele, chiava de lá, entre um apertão e outro que dava à massa do pão de milho:- Homem do céu, ajeita essa cara...

- Me deixa, muié.

- Vai dar uma volta na pedreira; desamarra esse burro.

- Humm... – resmungava o velho Arcido, amassando o fumo na palma da mão, para logo ajeitá-lo na palha de milho em calha, que mantinha dobrada entre os dedos da mão esquerda.

- É... Vou dar uma volta.

Tio Arcido saiu e começou a caminhar lentamente, morro acima, em direção à pedreira, onde alguns homens talhavam grossos blocos de pedra, fazendo grandes rebolos, separando as lajes de arenito. Tio Arcido chegou e logo os serranos se assanharam.

- Buenas, Tio Arcido, disseram em coro, entre risos...

- Buenas! – Resmungou o velho, sentando-se numa pedra.

- É verdade mesmo aqueles causos que o pessoal conta por aí sobre o tal índio Bici?

- Claro, ué! – respondeu secamente Tio Arcido, tentando encurtar a prosa.

- Então conta aí, seu Arcido. A gente sempre quis saber direito essa história.

E enquanto os homens martelavam a pedra, cinzelando com cuidado, Tio Arcido se abancou sobre um rebolo e, já se sentindo mais alegrinho, começou a matraquear.

- Essa história é coisa de muito tempo atrás, é do tempo em que uma tribo de índios guaranis morava lá pra perto do Painel, pros lados de Lages e São José do Serrito. O cacique daquela tribo é que se chamava Bici, e era um homem muito valente, caçador destemido; um guerreiro com quem ninguém se metia. Bici era um chefe muito respeitado por sua tribo e também pelas tribos vizinhas.

A fama de Bici corria toda essa redondeza de Urubici.

- Mas Bici tinha alguma coisa a ver com nossa cidade?

- Tinha, sim, mais tarde a cidade de Urubici adotou esse nome por causa dele. Mas essa é outra história...

- Continua, Tio Arcido!

Pois bem, como ia dizendo, a fama de Bici cruzava essas montanhas de norte a sul e, como ele era solteiro, as indiazinhas daqui sonhavam em poder casar com ele.

Aqui mesmo, em Santa Terezinha, habitava outra tribo dos índios Kaiowá Guarani, e a filha do cacique, que se chamava Ñnca Zurita, ouvira falar muito de Bici, e pediu a seu pai que promovesse uma festa, e convidasse Bici para participar, para que pudesse lhe declarar seu amor.

O pai da Ñnca Zurita gostou da proposta da filha, pois imaginou sua tribo fortalecida ao se juntar à do valente Bici. Ñnca Zurita ficou imensamente feliz com o apoio que o pai demonstrava e começou a preparar a grande festa do encontro com seu futuro marido.

Ñnca Zurita era uma índia muito bela, seus longos cabelos negros desciam-lhe pelas costas como uma cascata iluminada. Seu rosto assumia um brilho todo especial quando sorria, destacando seus olhos negros e rasgados. Ñnca Zurita, por sua beleza e importância dentro da tribo era muito cobiçada pelos guerreiros mais valentes.

O longo e frio inverno que assolara Urubici naquele ano deu lugar à mais estuante primavera. A época era muito propícia para a realização de uma festa de casamento, pois, como era costume, as tribos se visitavam na primavera.

O pai de Ñnca Zurita mandara dois de seus melhores homens, com presentes, até à tribo de Bici para convidá-lo para uma festa, na qual conheceria sua noiva e poderia com ela se casar. Bici recebeu o convite com grande alegria e concordou, prontamente, pois também já ouvira falar da beleza e dos dotes de Ñnca Zurita e desejava conhecê-la.

No dia marcado, chegou Bici com toda a sua tribo, ornado com os melhores adereços, com as plumas mais vistosas e os cavalos mais fogosos. A recepção não poderia ser mais calorosa. As duas tribos firmaram ali os laços de uma profunda amizade.

Os caciques se abraçaram e Bici conheceu, finalmente, a bela Ñnca Zurita, que se apresentou finamente enfeitada, preparada que foi durante um ritual secreto, do qual participaram todas as mulheres da tribo. O encontro foi emocionante e o amor entre os dois nasceu à primeira vista. Bici e Ñnca Zurita passaram aquele dia juntos, brincando e participando da grande festa das duas tribos irmãs. Já ao fim do dia se despediram e Bici partiu com sua gente, prometendo voltar na data marcada para o casamento.

Casariam no verão, na próxima lua cheia. Os Kaiowá festejaram pelo resto daquela noite, abençoados pela deusa Lua, que brilhava feliz no céu azulado de Urubici.

Na mesma tribo de Ñnca Zurita, porém, havia um jovem guerreiro que a amava profundamente, mas que nunca havia podido declarar seu amor pela bela filha do cacique. Este jovem se chamava Caumã. Ñnca Zurita nunca lhe dera qualquer esperança de namoro, pois amava Bici, e, por isso, Caumã vivia infeliz e amargurado.

O desespero de Caumã foi crescendo e chegou ao ponto de fazer com que ele jurasse: - Eles não vão se casar! Não vou deixar! Nunca irão se casar.

O dia da festa do casamento foi se aproximando e Bici partiu novamente de casa com sua tribo para encontrar a bela Ñnca Zurita e com ela se casar. Traziam muitos presentes.

Na tribo dos Kaiowá os preparativos para a festa agitavam todo mundo. Muita caça, muito peixe seco estava preparado, muitas frutas foram colhidas, pinhões e guloseimas da serra. Toda a aldeia estava enfeitada com taquaras em arco e muitas flores. Tudo estava pronto para a festa.

O dia amanheceu radiante, o céu azul e iluminado pelo sol de verão completava o ar de festa. Urubici estava engalanada, à espera do feliz e valente noivo.

O coração de Ñnca Zurita, porém, estava inquieto. Conversou com o pajé, e este se manteve sério e cabisbaixo todo o tempo, anunciando que algo terrível poderia acontecer.

O pai de Ñnca Zurita, ao vê-la assim tão angustiada e, já preocupado, pois o noivo não chegava, enviou dois de seus guerreiros mais rápidos ao encontro de Bici.

Algumas horas depois voltaram os dois homens, atiraram-se ao chão em prantos, e contaram, entre soluços, que Caumã havia preparado uma emboscada e que Bici havia sido morto à traição.

Um grande clamor se levantou então em toda a tribo. Os ornamentos da festa foram arrancados, as comidas jogadas ao chão. O choro e os gritos das mulheres podiam ser ouvidos ao longe. As lágrimas empaparam o solo urubiciense.

- Maldito Caumã! – gritavam os homens.

- Que morra Caumã!

Um grupo deles partiu em perseguição ao traidor e lhe deu a mesma sorte que havia infligido ao jovem Bici. Mataram o traidor.

No auge de seu desespero Ñnca Zurita embrenhou-se na mata e desapareceu por entre os pinhais. Fugiu para longe dos Kaiowá, deitou-se sozinha sobre um monte, justamente no local onde Bici havia sido assassinado, e chorou, chorou muito... De tanto desconsolo a bela Ñnca Zurita desfaleceu e morreu ali mesmo, partindo para junto de seu amado.

A noite então caiu sobre a bela índia e a lua, que surgia prateada, teve pena da pobre moça, recolheu seu pranto e o transformou num cristalino riacho, depois transformou Ñnca Zurita num enorme bloco de basalto, brilhante e negro como seus cabelos. Suas lágrimas escorreram sobre a rocha e formaram um grande veio d’água, que corria pela pedra. Ali nasceu uma cascata chamada Véu de Noiva.

Até hoje esse imenso monumento da natureza testemunha o amor eterno de Ñnca Zurita por Bici.

Jonas Tadeu Nunes
Enviado por Jonas Tadeu Nunes em 16/06/2023
Reeditado em 16/06/2023
Código do texto: T7815465
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