O Rato e o Queijo

Enquanto farejo este imenso pedaço de queijo - quase do meu tamanho por sinal -, meu caro leitor deve estar a pensar que trata-se de uma fábula comum com uma moral no final. Contudo, esta trata-se na realidade de minha indignação para com a raça humana em relação à inteligibilidade de nós roedores.

A pergunta que faço é a seguinte: pensam os humanos que nós, roedores urbanos, não evoluímos?

Sou um gentil - modéstia à parte - roedor, pertencente da espécie de rattus rattus, habito as bocas de lobo e permeio entre as sarjetas que a vida me permite. Aprendi a ler com os descartes de jornais e livros que defrontava sempre nos entulhos e nas tubulações. Sabemos que o ser humano - por gabar-se de ser racional, não é racional o bastante quando descarta lixo nas valas e depois sofre com as enchentes. Eu, por também ser vítima desses, sobrevivi várias vezes a proteger-me da força das águas.

Entretanto, o que eu quero sumarizar aqui é o propósito deste reclame: como ousou este humano a colocar este queijo cheio de veneno no meu caminho? Por que diabos testar minha capacidade de reflexão? Achou ele que eu viria aqui, cheiraria e abocanharia esta comida toda? Creio que os humanos - prováveis leitores deste relato - desmerecem e invalidam a capacidade dos ratos de pensar.

Embora muitos homens sejam comparados a nós - em questão de caráter, de resiliência a situações de divergência -, penso eu que dificilmente parecemos nós.

Por várias vezes peguei-me a ler Schopenhauer e consegui conjeturar um pouco o que é a essência humana. Nem as leituras de A Náusea e de A Metamorfose foram-me tão fortes quanto o desespero da alma do filósofo alemão. A angústia humana acometeu-se-me fortemente. Até hoje, com a lembrança de As Dores do Mundo... Aposto que este humano jamais leu Schopenhauer.

Recordo-me também de O Queijo e os Vermes - que, este últimos, sem querer desmerecê-los, devem sim também pertencer à mesma essência humana. Ginzburg que perdoe-me usá-lo como forma de ataque, mas será que os homens saíram do queijo? É essa a essência humana: uma projeção da coagulação do leite? Afinal, o sangue do mamífero coagula. Eis o que sou: um rato reflexivo. Não um filósofo roedor. Nego constantemente a verdade. Só asserto axiomas.

Portanto, caro humano, se por acaso pensas que abocanharei este queijo, esteja certo de que sim: não aguento mais minha existência. Fá-lo-ei em razão de meu desespero, em razão de minha falta de esperança, de ímpeto, de vontade de continuar. Eis o que sobra de tudo o que fui, de tudo o que sou. Eis o que sobra: o fim.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 18/06/2023
Código do texto: T7816762
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