Batatas fritas

Gosta de batata frita, gosta? Que bom, é só o que temos. Faz tempo que só se tem batatas. Outro dia, sei lá, dois meses, dois anos, coisa assim, sei lá, ouvi no rádio que as importações de carne estavam suspensas. Engraçado, deram como se fosse novidade; fazem quatro anos, quatro anos que não se importa carne! Trigo, frutas, suíno, viraram artigos de luxo. Batatas! Batatas tem a vontade, dois, dois anos ou dois meses, sei lá, que só se tem batatas. O reino das batatas ou... batata ordem e progresso, logo será nosso slogan.

"...seu tanto, tanto como se fosse meu, e hoje te busco e não te encontro" , Lourdinha, amiga de risos e choros, Lourdinha é dessas pessoas que a vida só te manda uma vez. Nunca haverá duas Lourdinhas na vida de uma só pessoa. A vida é tipo o Oráculo de Delfos, sabe, o que perguntou a Sócrates quem era o mais sábio dos homens. Lourdinha é um Oráculo. Só há um Oráculo de Delfos, um só Sócrates, entende? Pois sim. Lourdinha, minha amiga Oráculo, certa vez me disse essa linda frase "seu tanto, como se fosse meu, e hoje te busco e não te encontro"

Por causa dessa frase, escrevi um poema:" seu tanto, como se fosse meu, e hoje te busco e não te encontro. Eu que procuro seu rosto na multidão perdida. Na multidão perdida de meu coração. Não posso. Não posso minha perdida multidão, minha humanidade, perder nos labirintos, nos labirintos da solidão". Um poema sem sentido, eu sei. Mas todos os poemas são sem sentido. Se forem poemas de amor, pior, porque, além de serem sem sentido, são ridículos, não? Não concorda? Diga isso ao Poeta. Qual? Ora, ora, não conhece, não conhece o grande poeta lusitano, o Camões, depois de Camões. O poeta dos heterônimos. O que fez Poema em Linha Reta " Nunca conheci quem tivesse levado porrada... E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil". Ora, ora, quem saberá escrever poemas tão belos e profundos? Quem consegue dizer aos homens o que a alma sente? Só o poeta. Essa voz amplificada das dores e das alegrias. "Coloque no vaso a flor que deixei sobre a mesa"

Só temos batatas. Gosta de batatas fritas? Que bom, nossa especialidade. Temos as melhores batatas. Já fomos especialistas em bananas. Sim! Um dia fomos quase uma república. Uma república de bananas. Mas aí deu bicho. Bicho da banana, foi um golpe, um golpe muito grande. Os negócios ficaram fora dos trilhos por muitos anos, vinte e hum, se não me engano. Foi tão ruim, tão... fora de qualquer previsão séria, que atrapalhou tudo. Teve gente que, por se opor ao bicho, à praga que deu no bananal, teve gente que sumiu, gente que foi embora, sei lá, tentar recuperar, tentar retomar o que tinha perdido. Dizer ao mundo que o bicho, a praga da banana, é perigosa. Que ela mata toda a lavoura.

Tudo muito estranho. Tudo num descompasso, num desequilíbrio, tão impróprio, tão improvável que acontecesse, tão... tão...fora de propósito, de previsão. Triste. Triste como um dia de outono, um dia sem flores no jardim, sem folhas nas árvores, sem sabiás, tudo tão cinza, tão nublado.

Hora de dormir. Hora de se recolher. Hora de... pensar, talvez?

Talvez pensar ainda seja possível. Pensar, talvez, possa ser a única salvação, a bóia salva-vidas, quando o que se tem são só batatas. Ah, quem saberá, quem se atraverá, quem virá em socorro, como um super-herói, tipo esses que salvam o mundo no minuto final, e coloca as coisas no lugar? Será possível? Não. Nunca será possível. A realidade, diria meu avô, "a realidade é a pior e a melhor das coisas na vida do ser humano. Todo o resto é maquiagem". Às vezes penso: meu avô era Sócrates, não sei, mas penso. Hora de dormir. Hora de dormir e sonhar, quem sabe, talvez sonhar com Sócrates, meu avô Argemiro, quem sabe, talvez. Hora de dormir.

Recolhidos no próprio pensar, os casais não se amam, e se se amarem, se amem no silêncio do pensamento. Não sei. Não sei, talvez, e só talvez, dirá, a moça da quitanda, só temos batatas, nada além de batatas. As importações de carne estão suspensas. Não temos carne, só batatas, as importações estão suspensas.

E se..., não sei, e se...e se...por conveniência, sim por simples convivência, sim, só por capricho e conveniência, sem qualquer razão, por simples capricho e conveniência, não se importa carne porque se produz batata em excesso. Reparou que não se fala nada sobre índice? Reparou? Pois é!? Por que não se fala mais em índice? Tudo sem nenhum propósito. Tudo, ardilosamente, aparentemente, muito bem articulado. Não sei. Não tenho certeza, mas... não sei. Só temos batatas. Outro aviso. Não aguento tanto aviso de "só temos batatas".

Tudo mais miúdo, mais contado. Os índices não dizem mais nada, não existe mais índice, mas é notável. Só quem tem olhos vê que tudo está miúdo. As pessoas não sorriem como antes. Risos contidos, quase mudos. Risos tímidos... medrosos, talvez? Não sei.

A rua estava deserta. Um ambiente quase de Blade Runner. Um ambiente fumacento, gorduroso, fedido. Um ambiente difuso, sem qualquer familiaridade, sem qualquer possibilidade de contentamento, de reconciliação. Tudo tão deserto, cinza, ar pesado, fedido. O dia amanheceu assim, Blade Runner. É estranho, quer dizer, não tão estranho, mas não havia medo. O medo de ser descoberto, tão verdadeiro, tão vivo em Blade Runner, que, talvez, e só talvez, por isso, o medo de ser descoberto, do escondido que não mais é, por si, e talvez, por si, não permite outro caminho senão... seguir. Seguir com todas, e com tudo, que se possa imaginar. Não, não há portas salvadoras, não há escadas secretas; não. Estranho, aquele dia, tão parecido, e tão diferente de Blade Runner, me despertou. Talvez o sono que me impus como meio, ou fim, nunca sei, disse a moça do romance sobre a mesa, talvez o sono, meu sono, tenha a benção, ou, a repulsa, do céu. Talvez o céu não exista, talvez seja uma miragem, sabe, tipo, no deserto. Não sei; nunca sei, disse a moça do romance tão logo o barco partiu.

Notícias desencontradas . Dá vontade de rir. Toda notícia que vem do governo é desencontrada. Não faz muito tempo, dois anos, dois meses, não sei, nunca sei, o rapaz da livraria, jovem estudante de letras, o jovem da livraria desapareceu. Saiu no jornal "jovem da livraria desaparece e foi visto depois das dez ao sair do bar na zona central" Só disse isso. Mas não disse que o rapaz foi visto cercado por quatro homens da segurança e que depois desapareceu. Estranho, mas não muito, que notícias do governo são desencontradas. Quem quer a verdade? A verdade, a verdade é a primeira virgem estuprada quando tudo que se busca é o desfalque, o camuflado, o que engana, o desleal. Pense, pense um minuto que seja, e se tudo fosse revelado? E se tudo fosse estampado em letras garrafais: Eis a verdade, a mais pura verdade, vocês foram enganados. Não há céu, não há inferno. Tudo não passa de um grande e belo romance. É possível. É possível que a verdade seja revelada. É possível e desejável, que o grande e belo romance seja posto à prova e, quem sabe, todos àqueles e àquelas que buscaram escancarar a verdade, quem sabe, sejam, todos e todas redimidos. É possível e desejável.

Governo anunciou que a produção de batatas alcançou índice trinta por cento acima da produção do ano anterior. Porém, não revogou decisão de não importar carne e, para agravar a situação, e agradar os financiadores de campanhas, disse que o excesso de produção terá subsídio. Que, por necessidade de recursos, tão escassos, disse, trinta por cento serão remanejados da saúde e educação. Acrescentou, ainda, que para não haver perda da produção por excesso de oferta, fará estoque, que, para o próximo ano, pensa em soluções para que não se produza excesso. Sobre a importação de carne, se limitou a dizer que por ora estudos estão sendo feitos.

O fim da história, o fim anunciado com estardalhaço, mas...o que isso quer dizer, ou melhor, o que queria dizer? Pergunta sem resposta, talvez, uma possível. Seria o fim da história o fim do mundo antes pautado sob o signo da guerra fria? E o fim da história significava o surgimento de um novo homem, guiado por princípios adversos daqueles no mundo bipolar?

Não se sabe; só conjecturas, nada mais que conjecturas. Mas...que novo homem é esse? Não se fundou uma nova civilização, o contrário, tudo se tornou tão monetário. Homo sapiens x Homo econômicus. Capitalismo industrial, mercantil exploratório transmutado, capitalismo de vigilância.

Batata frita. O preço de uma batata frita é isso. Tudo precificado. A vida, os sonhos, o sorriso, as lágrimas, tudo precificado. Capitalismo de vigilância, negócio e poder, poder direto sobre a vida. Betata frita.

Gosta de batatas fritas? Que bom, é só o que temos, é nossa especialidade.

Capitalismo de vigilância, batata frita, vida, sonho, sorriso, lágrimas, preço, batatas fritas, nossa especialidade.