Manequins

Eu já passei da idade das loucuras, sabe? Ainda, às vezes, ainda me dou a algumas escapadas. Sim é importante não se perder na velhice.

Não faz tempo, eu me vi de frente a uma vitrine. A manequim parecia uma namorada esquecida. Uma namorada tão bonita, tão amorosa, tão ela mesma, que ao ver a manequim, pensei "é tão parecida com ela". Saí. Não gosto de cultivar lembranças.

Nas ruas, as pessoas nas ruas, as pessoas andavam apressadas. Andavam como se o tempo fosse acabar, como se tudo não durasse mais que um minuto.

As pessoas não se olhavam, não havia olhos uns nos outros. Pareciam pessoas absortas num redemoinho mental, sabe? Pareciam zumbis. Sensação estranha, senti um calafrio, senti o suor, o medo, sei lá, senti a espinha molhada. As pessoas tinham o mesmo rosto, a mesma tristeza, a mesma bondade. Nossa! Parecem tanto com ela. A mesma ancestral busca por algo não descoberto. A busca por um princípio, por uma reconquista ou conquista, sei lá, sabe? A busca por uma espécie de Santo Graal, não sei.

Rostos tão queridos, tão familiares, tão amigos que tentei ver em cada um algo que fosse meu. Pensei, será possível isso, será que há algo por descobrir? Mas o quê descobrir? Saí.

Seguir a loira de vestido vermelho. Seguir a loira era necessário, eu não sabia o caminho do metrô e no café vi quando ela disse que ia pegar o metrô, então, seguir a loira era necessário.

Na banca de jornal, apenas fragmentos de vidas nas manchetes. Nada mais triste que manchete de jornal. Não dizem nada, nada dizem, mas paralisa quem tem tempo de ler manchete de jornal. Manchete de jornal, vidas estampadas para a alegria e satisfação alheia. Manchetes, pedaços de vidas, vidas sedentas de vidas alheias. A banca de jornal não me despertou interesse, seguir, mas, seguir pra onde? Saí.

Desisti de ir ao metrô. Desisti de continuar algo que nem eu mesmo sabia o que era. O dia estava constituído de uma atmosfera que lembrava Ensaio Sobre a Cegueira, do mestre Saramago. Era estranho, mas não muito. As pessoas tinham o mesmo rosto rústico que me fez pensar no primeiro homem. O primeiro homem, o Homem primevo; o que inaugura a busca, a tristeza, a solidão.

Bonito e estranho. Esse paradoxo me foi apresentado por Genival. Professor de filosofia e um metafísico ao exagero, meu amigo metafísico, digo, Genival, me apresentou essa questão: é possível algo ser bonito e estranho? Sim, claro, respondi. Não acho, completou meu amigo. Acho que o estranhamento está justamente no que não é bonito. Como, continuou meu amigo, como é possível algo ser bonito e estranho. Bonito agrada aos olhos. O estranho, afasta, você não acha? Discordo, respondi. Silêncio. Outro café, pedimos.

Resolvi que ia seguir a pé. A pé é possível ver as pessoas, suas fisionomias, seus apressados passos. Desde criança, sempre gostei de ver como as pessoas andam. Desenvolvi uma teoria que consiste em afirmar que do modo como uma pessoa anda é possível saber como ela é. Uma pessoa, por exemplo, que anda ereta, passos firmes, com a planta dos pé toda em contato com o piso, me sugere ser uma pessoa decidida, independente, autônoma. O contrário, uma pessoa de passos titubeantes, sonso, que pisa como quem pisa em ovos, parece uma pessoa insegura, frágil. É só uma teoria, nada sério. Mas resolvi seguir a pé. Andar de metrô não possibilitaria essa experiência.

Outra loja, outra vitrine, outro manequim. Igual ao outro, esse se parece muito mais com a namorada esquecida. Incrível. Até a pinta na bochecha, do mesmo lado direito, como isso é possível!?

Em minha direção uma turma barulhenta. Não consigo me concentrar no livro que acabo de abrir. Incrível, horrível, como as pessoas não respeitam o ambiente. Falam como se falassem no estádio de futebol. Lembro, não faz muito tempo, estava num batizado, chegou uma turma. Invadiram a cerimônia com tanto estardalhaço, com tantos gritos, que o padre, e convidados, chamou a polícia. Às vezes penso que o pecado, ou a virtude, da juventude, está justamente nessa irresponsabilidade, nesse hedônico modo de viver. Carpe Diem! Viva o presente! Não guarde para amanhã sua porção de felicidade pra hoje.

Mas...mas o que dizer quando o que se tem são só impressões, simples impressões que não dizem nada, não respondem às mais simples perguntas. A manequim, a manequim da vitrine, da segunda vitrine, ela tão mais parecida, tão doce e tão mais insegura, que não podia deixar de pensar. Não podia esquecer, não fazia tanto tempo, tempo suficiente pra esquecer, não, não havia esquecido. Assim, as pessoas nas ruas, apressadas e sem se olharem, como zumbis, seres dispostos, ou nem sei se tão dispostos, seres, pessoas apressadas como se o tempo acabasse no próximo minuto. Sensação estranha, mas era isso que me acontecia. Enfim, continuei a caminhar. Não tenho pressa. Preciso caminhar. Preciso seguir. Outro café.

Paro noutro café. Não entro. Está cheio e não gosto de ambiente saturado. Tenho, quer dizer, não sei se tenho, acho que tenho, repulsa por ambiente saturado. Tenho verdadeira alergia de ambiente cheio. As pessoas não falam, gritam. Ninguém ouve nada. Uma verdadeira réplica da torre de Babel. Saio.

Sigo. Talvez encontre outro café menos cheio. As ruas estão um pouco mais vazias. É tarde de outono. Incrível como nessa época parecem se vestirem quase da mesma forma, quase o mesmo figurino. Estranho, estranho como tendemos a sermos tão iguais. As ruas estão mais vazias, já disse isso, por que repetir? Não sei. Ignoro a razão, se é que existe alguma.

Resolvo seguir. Um novo café, talvez, e só talvez, apareça e eu entre, não sei, vai depender do quanto estará lotado.

Estranha sensação. Enquanto sigo, tenho a nítida sensação que olhos, olhos alheios, olhos que ignoro, porque não os vejo, tenho a estranha sensação de que olhos alheios me olham, me vigiam sem que eu os possa ver. Isso me fez pensar: e se é isso mesmo, e se somos vigiados, o tempo todo vigiados por olhos que não os vemos? E se o comportamento de zumbis não for sintoma de algo que só alguns (os mais suscetíveis, talvez) expressam? Será, outra pergunta me ocorre, e se esse comportamento for algo programado, algo planejado como experiência para um sistema universal de controle? Questões, essas e tantas outras; decido seguir. Sigo pelas cada vez mais vazias ruas,cada vez mais frias.

Outono, prenúncio de inverno, detesto agasalhos. Uma mulher passa. Linda, sensual. Veste um belíssimo conjunto vermelho. Duas peças, uma saia com leve corte à altura dos joelhos, uns 15 cm, talvez e um tailleur, igualmente vermelho.

Um táxi parado toca uma belíssima música francesa; lembro da namorada esquecida. Acho que hoje acordei saudosista, não sei; sigo, talvez outro bar, outro café, talvez, vai depender do quanto estará cheio.

Um prédio abandonado. Antes de ser ocupado por pessoas sem moradia e expulsas como bandidos (a propriedade privada é uma religião), ali tinha sido uma prestigiada escola. Inovou quando trouxe o método de um renomado educador. Não demorou muito para vozes conservadoras se juntarem a grupos com ideias e ideais extremos. A escola foi atacada. Os pais, receosos com a segurança, tiraram seus filhos.

No muro de um prédio do outro lado da rua, uma frase "não se engane, Capitalismo de Vigilância, você é o produto", em seguida, " rebele -se". Sigo. Sigo com mesma sensação de estar sob olhos alheios. 1984. Por que, isso agora, pensar em "1984"? Não sei. Mas 1984, me veio como um alerta, talvez, não sei. Será que hoje é 1984 com outra cara, com uma nova tinta? Não sei. 1984. Por que pensar nisso agora?

Pessoas zumbis ou... zumbis pessoas, já nem sei mais se há diferença, passam como tudo, ou nada mais, tivesse outra razão de ser. Passam tão apressadas, tão em si mesmas, que, penso, se um meteoro caísse agora, nesse instante, nem perceberiam. Continuariam suas vidas, suas trajetórias e escolhas como se nada tivesse acontecido. Isso, a mesmice como uma nova ética ou... seria estética, quer dizer, como uma maneira de se mostrar a vida como uma pintura. Isso, conduzir a vida como se tudo, isto é, o mundo fosse uma grande galeria.

Outro café. Depois de caminhar e ainda com a sensação de que olhos alheios nos vigiam, outro café. Um pouco mais vazio, porém, e talvez por isso, um tanto sujo. Já passam das dez da noite, as ruas quase desertas. Pessoas passam com medo e com pressa. Todos e todas são suspeitos. Numa época onde a nova pedagogia é a do hedônico, do narcísico e nada mais, o que pode esperar senão pessoas apressadas e com medo. Sensação estranha. Tenho cada vez mais a nítida sensação de estar sob constante vigilância. Parece que a cada passo dado, um par de cem olhos me seguem. Olho para o céu. Não vejo a lua. No lugar um gigantesco olho, cada vez maior, domina todo o espaço. Nas ruas pessoas zumbis.

No café, um velho discute com a atendente o preço da macarronada, mesmo informado que lá não servem refeições. Numa mesa ao canto, uma senhora de meia idade, anuncia que vai se casar tão logo o noivo chegue, faz cinco anos que ela espera, avisa a moça do caixa, com um largo sorriso. Desisto do café. Sigo não sei pra onde, sigo, com a sensação de que olhos alheios me vigiam.

Ir para o metrô. Mas onde está o metrô, me pergunto. Ninguém ao lado para perguntar, mas se tivesse, de que adiantaria, ninguém para, estão com pressa. A mulher de vestido vermelho, não, não é mais possível, faz tempo que ela foi pro metrô.

Estou perdido. Não tem escapatória; dormirei na rua, na rua das pessoas zumbis.