Pará- ná e suas Encantarias- Velha da Mata

Fim de tarde frio naquele sábado de outono. Ventava muito na cidade alta do sul, convidando o calafrio da coluna vertebral, arrepio gelado no pescoço. Na estrada as folhas secas alaranjadas e vermelhas pairavam em espiral. Já era hora de ir para casa, pela estrada estreita que adentra a mata aberta. Há uma distância de dois quilômetros e meio do trabalho, um tanto longe para quem anda a pé, mas nem tanto para quem pode voar. A passos curtos, segui na estrada, o cheiro de terra e folhas molhadas inundaram meu sistema límbico, trazendo aquela sensação gelada de liberdade. Pensando em nada e ao mesmo tempo em tudo, continuei minha caminhada pela estrada de chão batido.

Passava por três encruzilhadas antes de chegar em casa. Na primeira sempre me impressionava com uma casa amarela de janelas brancas, grandiosa, mas simples ao mesmo tempo. No jardim havia folhagens vistosas, pedras brilhantes faziam um caminho até a porta de entrada. Nunca vi ninguém lá.

Segui meu caminho na estrada. Perto da próxima encruzilhada tinha uma pequena nascente, coisa bonita de se ver, embora a ponte seja velha e não muito atraente, aquele pequeno córrego compensa toda a paisagem. Na primavera a sua volta se enche de flores brancas e lilás, num contraste com os ipês coloridos aos arredores. Paisagem única.

Dali avista-se a ponta da Araucária mais antiga da região. Pelo caminho todo se vê araucárias, mas aquela da última encruzilhada antes da minha casa, era de fato a mais atraente, deve de ter ultrapassado os séculos, porque é enorme, tanto de altura quanto de largura. Suspeito que guarda muita história. Gosto de chegar perto dela e tocá-la, sentir sua vida e seu cheiro, e assim o fiz, quero protegê-la enquanto viver.

Quando soltei minhas mãos da Araucária senti um arrepio estranho nas costas, de relance vi alguém passar e me virei para ver melhor, uma mulher toda coberta de trapos estava me olhando, como sou míope, cheguei perto para descobrir esse mistério. Seu rosto, pelo menos o que deu para ver por entre os cabelos, era de cor de canela, talvez metade para cima pintado de vermelho, nunca vi ninguém assim. Ela me olhava fixamente, com um olho só. Agoniada com o suspense, puxei assunto.

"Olá, nunca te vi por aqui". Ela deu uma gargalhada enorme, e apoiada numa bengala, caminhou em minha direção dizendo:

"É que eu não sou daqui, eu vim de lá do Norte."

"Quanto ao Norte?" minha curiosidade fez-me perguntar.

"Olha minha filha, bastante ao Norte. Eu vim de lá da ponta da Amazônia."

"De bem longe mesmo. Eu gostaria muito de conhecer sua terra"

"Mas eu não tenho terra, eu vivo na terra, vivo da terra, vivo para terra, eu sou a terra"

"Que interessante! Aqui temos esse costume de falar dessa forma. Compramos ou alugamos um pedaço de terra para morar e chamamos de nosso. Mas também falamos que é nossa cidade, nosso bairro, nossa casa..." Ela me interrompeu num tom um tanto nervoso, aumentando seu tom de voz levemente.

"Homem branco que acha que pode ser dono da terra. Mal sabe que ele que pertence a terra e no fim a terra o devora, como deve ser."

"Não havia pensado assim" Refleti e disse: "Que maneira fascinante de viver! Pode me falar um pouco mais?"

"Se você me der um pouco de tabaco e café, podemos conversar mais. Agora eu vou-me embora. Me encontra aqui amanhã às 6:00 da manhã ou às 6:00 da tarde."

"Às 6 da tarde. Como é seu nome?" Mal terminei a pergunta ela gargalhou, colocou a mão na boca e assobiou alto e estridente, momento em que uma coruja passou em minha frente e pousou no galho da Araucária. Num segundo olhei para a ave e quando tornei olhar para a mulher, esta já havia sumido.

Fiquei perplexa. (Como foi que uma senhora aparentemente manca andou tão rápido a ponto de sumir?) Caminhei para casa e a coruja me acompanhou. Era um ser apaixonante. Presença poderosa, misteriosa e selvagem. Que bicho bonito! Me senti encantada com a sua presença.

Ah como é bom chegar em casa! Abri o portão de madeira pintada e imediatamente meu gato, Simon, apareceu, tão curioso. Quase que a coruja o pega, mas ele foi rápido e eu não deixaria levá-lo. Não sei se ela conseguiria carregá-lo, é muito pesado.

Parti para o banho, chuveiro pequeno demora a esquentar, coloquei um pé pra testar a água, ainda não estava boa, mas não podia ficar ali para sempre, fui colocando a cintura devagar e o corpo todo ouriçou-se. Um dia frio no outono, já marca que o inverno está por chegar. Lavar a cabeça ou não lavar? Melhor lavar. Meu cabelo escorria a tintura vermelha recém pintada que quando chegava na minha mão dava para ver cada linha desenhada do meu destino ou não destino.

Sempre gostei de quiromancia, embora não fosse expert, é um mundo que me fascina. Como pode linhas da nossa mão continuarem mudando? Pelo menos minha linha da vida é longa e forte, apesar de dividir-se em duas, sei lá o porquê. Quanto mistério numa mão. Uma vez um senhor na estrada me disse que tenho um poder muito especial. Que minha mão pode levantar qualquer miserável, mas que também pode derrubar. Fez bem ao meu ego, porém me deixou confusa. Como se levanta um miserável em sofrimento e porque iria querer derrubar alguém? Descobri mais tarde, mas contarei mais adiante.

Terminei o banho reflexiva e ansiosa pelo que a senhora da estrada iria me contar. Ela pediu café e fumo. Café eu tinha, mas fumo, não sabia nem onde encontrar. Teria um pouco de trabalho, por uma boa história.

Acordei primeiro às 6h da manhã, mas como de praxe, a cama pedia mais 10 minutinhos. Que sono gostoso, 10 minutos passam rápido. Levantei-me, alimentei o Simon, arrumei meu cabelo em um rabo de cavalo, cabelo curto sempre fica arrepiado na ponta, tudo bem, é estilo. Vesti meu uniforme todo preto, um blazer vermelho, tênis para a caminhada e saí.

Enquanto abria a porta percebi uma carta, juntei, olhei e, sem nome e sem endereço "Depois eu vejo!", Caso contrário me atrasaria, gosto de ser pontual, não sou do antes e nem do depois. Hora marcada é hora marcada. Então guardei a carta na mochila marrom, a única que tenho.

No caminho eu planejo meu trajeto. "Onde vou encontrar tabaco?".

"Tabacaria!" respondi a mim mesma e continuei. Onde tem uma tabacaria? Lembro de ter passado por uma, mas não recordo onde ou quando. Talvez eu deva mudar o caminho até o trabalho, pegar outra rua. E assim o fiz. Andei pela rua que passa pela loja de vestidos, passei pelo corpo de bombeiros, pela casa assombrada (era de dar arrepios), farmácia, posto de saúde, loja de construção, pela conveniência de bebidas e finalmente lá estava ela, a tabacaria (sabia que já tinha passado por ela).

Entrei na loja e o cheiro de tabaco misturado com cheiro de incenso era bem forte, confundindo meus sentidos. (Até que alguém fosse me atender fui olhando o que tinha por lá). Chapéus, velas, cachimbo, tabaco, ervas secas, charuto, cigarro, narguilé, essências, carvão, placas de madeira escritas "Bem vindo", algo curioso é que também tinha uma placa escrito Bem Vinde" e outras com mensagens engraçadas, incenso, incensários, estátuas de variadas religiões, sinos normais e sinos de vento, pequenos vitrais de parede e muito mais. Bem variada essa tabacaria. Achei que encontraria só tabaco e cigarros.

Por de trás de uma cortina de fitas, saiu a atendente, cabelo preto alisado, a boca escura do cigarro, olhos pretos brilhantes, porém cansados. Perguntou-me o que precisava. Lhe disse que tabaco. "Vai precisar de um cachimbo", afirmou ela. "Tudo bem, vou levar". Passando pela porta a mulher pediu para que lesse a carta assim que possível. "Foi você que me mandou esta carta?" Questionei e ela ficou num silêncio sepulcral (Que mulher estranha e triste. O que será que se passa em sua vida?) Não tive tempo de questionar outra vez, eu estava quase me atrasando para o trabalho. Paguei, peguei meu pacote e saí apressada.

Minhas pernas estavam cansadas, eu não podia andar mais depressa e nem mais devagar. Era o que eu podia. E assim fui, quadra por quadra até ver a porta da Loja dos Sonhos, na qual eu trabalhava.

Cheguei a tempo, faltando um minuto para o horário. Deixei minhas coisas no armário, fui até a cozinha, tomei um café, e me recolhi para minha sala. A supervisora nem me notou quando entrei.

O tempo não passava, queria logo que desse seis horas para conversar com a senhora da estrada. Quase esqueço da carta.

Era um envelope branco, aparentemente reciclado. Fechado com um adesivo de caderno, no formato de uma seta. Abri vagarosamente, puxando com cuidado o adesivo, sem danificar a carta. Havia uma folha arrancada de caderno, ainda com as marcas do espiral. A mensagem não estava muito clara, a letra de quem escreveu não era das mais legíveis. Com esforço, creio que entendi. Dizia que se ela perguntar, "Quem quer?", jamais poderia responder. Questão de vida ou morte.

Ela quem? Quem quer o que? Será uma brincadeira? Esse negócio de vida ou morte, parece coisa de filme. Esta mensagem só aumentou minha inquietação.

Estranho meu estômago. Sensação de estar caindo ou de ter levado um susto. Um peso em meu peito. Pensava se a carta não era uma zoeira das meninas do trabalho. Fiquei lembrando sobre o que a mulher da tabacaria disse. Ela parecia ter tanta convicção, (é doida, com certeza! Foi ela que escreveu a carta, é óbvio).

Encontrei no armário da minha sala, uma caixa estampada com girassóis, guardei para empacotar algum presente do próximo aniversariante do mês. Mas senti que esse era o momento de usá-la. Amassei um papel branco para forrar a caixa, coloquei o tabaco e o cachimbo. O meu coração dizia para por um bilhete. Nessa hora até esqueci da carta sinistra. (O que poderia escrever para uma pessoa estranha e fascinante: "É uma honra lhe conhecer"?) Acabei não escrevendo nada. Espero que ela apareça ao encontro, afinal para que outra coisa iria servir um tabaco e um cachimbo?

Finalmente hora de ir para casa, no meu caso, ir para o encontro com a senhora misteriosa. Levanto da cadeira e me estico inteira, sentindo cada músculo. Pego minhas coisas no armário, e saio às pressas. Na rua aperto mais os passos, sem perceber. A cada esquina um embaraço no estômago. Chegava arrepiar, mas não era de frio. Fiquei encabulada com aquela carta estranha. (Que brincadeira de mau gosto!).

Quando espantei-me, percebi que estava indo pelo caminho errado, andei cinco quadras a mais (que situação). Tive que fazer outro caminho. Não queria me atrasar. Precisava andar 15 minutos mais rápido. Comecei a planejar o trajeto. Pensei (aqui apresso o passo ao máximo que der. Chegando na estrada de terra, posso correr).

Percebo que o céu estava ficando cinza. Olhei para cima: "Só falta chover!" (Melhor correr agora mesmo) Logo então obedeci meus pensamentos, mas não aguentei muito tempo, diminuí o ritmo até voltar a caminhar. Não podia parar, apesar de sentir minha boca seca e minhas mãos geladas.

Cansada e esbaforida, consegui ver a estrada de chão. Estava quase chegando. Ainda faltava 5 minutos para às seis da tarde. Mas não conseguia andar mais rápido. Descansei um pouco diminuindo o passo, e tornei a andar mais rápido. Foi quando escutei uma voz cantando, uma melodia melancólica "Matinta Pereira de tardinha vem buscar, o tabaco que ontem a noite eu prometi. Queira deus ela não venha me agoirar, queira Deus ela não venha me agoiraaar".

Logo vi uma mulher descendo a estrada em minha direção. Era a mulher da tabacaria. Nem me olhou nos olhos. Estava muito estranha. Cara de assustada, parecendo que viu um fantasma. Com os braços cruzados protegendo as laterais, como se estivesse com frio. Tentei cumprimentar, mas ela parecia não ter me notado.

Faltavam dois minutos para a hora combinada. E recém tinha chego na ponte. (Vai dar tempo), pensei (só se for correndo). Me pus a fingir que era atleta novamente e com sorte cheguei no horário. Ela ainda não estava lá.

Vi num canto perto da cerca de arame farpado, um cachimbo e uma latinha de sardinhas aberta. Olhei para todos os lados e não vi ninguém. Afastei os galhos secos da Araucária e sentei para esperar. Coloquei um pano azul estendido ao meu lado. Separei a garrafa de café, coloquei os dois copos de plástico e o presente ao lado. Estava tão distraída arrumando o local que quando olhei para frente a mulher já estava lá sentada, me olhando por entre os cabelos. "Que susto!" Na hora me veio a memória da carta e da mulher da tabacaria.

Ela gargalhou imediatamente. Parecia risada de bruxa que a gente vê nos desenhos animados. E perguntou: " Eu te assustei, ou foi a sua cabeça perturbada?".

"Minha cabeça perturbada" respondi sorrindo. Nos servi o café e lhe entreguei a caixa.

Ela cheirou a caixa antes de abrir. Encostou a língua para experimentar. Apoiou no chão e a abriu. Com as pontas dos dedos pintadas de vermelho, pegou o tabaco e colocou no cachimbo, o acendeu que nem vi como. Pareceu até magia:

"O que tu queres pedir pequena?" (estranhei essa pergunta).

"Combinamos de nos encontrar aqui ontem..."

"Isto eu lembro" Falou depois que esbaforiu uma nuvem de fumaça em meu rosto.

"A senhora ia me falar sobre sua maneira de viver".

"Menina tola, mas valente". Novamente fiquei confusa com a fala dela.

"Então, está bom o café?" Ela somente baforejoua mais fumaça e grunhiu como se fosse um bicho protegendo sua comida.

"Como você vive lá no norte?"

Ela replicou: "como tu vives aqui?"

"Não tem mistério, trabalho para sobreviver. Em troca do meu trabalho, ganho dinheiro e posso comprar meu alimento."

"Eu também faço uns trabalhos"

"Mas você trabalha com o que?"

"Com o que me pedirem e se eu quiser fazer eu faço. As vezes, sem me pedirem e sem eu querer, preciso trabalhar também (que confuso, pensei, melhor trocar de assunto). E enquanto eu pensava, ela grunia e soprava fumaça.

"Ontem você disse que vive para terra, vive na terra que é a terra. Como é isso?"

"Como tu não sabes? Não sentes o mesmo? Fiquei reflexiva, sem entender ainda . (Deve ser uma questão mais natural, natureza animais, ela usa muitas metáforas, sou lenta pra entender essas coisas, enfim, paciência, afinal ela é uma mulher idosa).

"Acabou filha?" Nesse instante, um barulho de galhos secos chamou sua atenção. E ela me disse cochichando.

"Não se meche e fica quieta!" Obedeci e esperei.

Poucos tempo depois o barulho de galhos secos chegou mais perto. Ela ficava virada para o lado oposto a mim. Observando silenciosa.

Uma serpente, nos surpreendeu com sua passagem. Eu congelei quando reconheci qual era a serpente que rastejava até nós. Era uma Cascavel. Esta cobra é muito comum na região. Mas mesmo caminhando diariamente na estrada, nunca ocorreu de deparar-me com uma.

Estava com medo. O que me intrigava era a postura da mulher junto com o comportamento passivo do animal e isso estranhamente me deixou tranquila. A cobra passou muito próximo e mesmo assim não se fez em nenhuma vez agressiva. Um momento único. Acho que nunca mais vivenciarei tal situação. Em minutos a cobra sumiu no meio do mato e a senhora tornou a baforar..

"Isso foi incrível! Como foi que ela passou pela gente sem sequer assustar-se, sem balançar o seu famoso chocalho, sem fazer nada?"

"Eu falei com ela."

"Como você falou com ela?"

"Com o olho." Tentei decifrar como foi que a cobra viu os olhos dela com o cabelo tapando a cara toda. (Como assim falou com o olho?). Após o evento surreal, indaguei:

"O que veio fazer no Sul?"

"Procurar uma arara azul." Soprou mais uma vez a fumaça em meu rosto, e minha rinite começou a dar sinais de reclame.

"Mas lá no Norte não tem arara azul?"

"Uma que não está lá..."

"Ela está por aqui? A velha misteriosa bufou, grunhiu e não respondeu.

"Espero que a encontre. É um bicho muito bonito" falei olhando para o céu pois já estava noite e ensaiando talvez um temporal. Em contraste com as nuvens que se reuniam, a lua crescia linda e brilhante, quase cheia. Como da outra vez, num segundo, olhei para o lado, ela já não estava lá.

Um relâmpago clareou o céu seguido de um trovão, hora de ir para casa, já era tarde (como o tempo passou tão rápido?) Juntei as coisas que tinha levado e quando levantei o pano e o sacudi, uma linda pena azul pairou no ar caindo lentamente na terra. A peguei do chão e guardei na velha mochila. Lembrei que a mulher procurava por um tipo de arara azul. Parece que está mesmo por aqui.

Indo para casa, com receio do temporal, escutei um grito de um pássaro, parecia que estava longe. Em seguida, um vento muito forte fazia as árvores dançar, eu podia jurar que escutei alguém correr. Mas não vi ninguém.

Quase chegando, parecia que aquele grito me acompanhava, como um eco em meus pensamentos. Dessa vez escutei novamente e como suspeitei, eram sim, gritos agudos com um pouco de rouquidão. Lembravam araras, corvos, corujas ou sei lá o que...atentei-me ao que parecia dizer...

"Queeem queeer?", "Queeeem queeer?" Àquilo insistia...

Autoria:

Mayara Luiza Borges- Tululu.

Canção Matinta Perera de Waldemar Henrique