O fantasmagórico Circo dos Horrores da Madame Megera

No meio do caminho, entre uma velha cidade à margem de um rio e um cemitério de almas penadas, jaziam os restos de um circo abandonado. Ninguém sabia ao certo como ou quando ele havia surgido, mas ali estava, resistindo há gerações. Armações enferrujadas ainda mantinham suspensa uma lona esfarrapada. Cartazes desbotados usados para anunciar os espetáculos ainda podiam ser encontrados espalhados pelo denso matagal que crescia ao redor.

Os moradores mais antigos da região contavam que o circo era amaldiçoado e sofrera várias tentativas de incêndio enquanto ainda estava na ativa. Uns diziam que os incêndios eram provocados por sua excêntrica proprietária, uma tirana maníaca que gostava de ver o circo pegar fogo. Certa vez, em uma noite de lua cheia, a proprietária e todos os que estavam próximos a ela foram consumidos pelas chamas e, a partir de então, suas almas aprisionadas ao circo passaram a perambular penitentes pela propriedade. Segundo a lenda, a cada noite de lua cheia, toda vez que um facho de luar descia por entre os rasgos do toldo e iluminava o picadeiro, materializavam-se os espíritos dos artistas que insistiam em reapresentar-se, repetindo sempre a mesma programação para uma plateia de viajantes que por ali passassem. Quem já havia visto as aparições se apresentarem dizia que o local era mal-assombrado porque os fantasmas eram muito deprimentes, e, por isso, ao invés do circo ser bem assombrado, era mal-assombrado mesmo, e, como as atuações eram horrorosas, o lugar passou a ser chamado de Circo dos Horrores.

Pois foi bem em uma noite dessas sob a fria luz do luar que as lendárias assombrações vieram a manifestar-se mais uma vez para um pequeno público de curiosos. Primeiro, um cavalo manco materializou-se, marchando cabisbaixo em círculos pela arena. Em seguida, de pé sobre o cavalo, com chicote na cinta, vestindo um desgastado fraque roxo e com uma máscara quebrada cobrindo parcialmente o rosto, surgia, envolta em uma aura sulfúrica, sua fantasmagórica domadora. Após algumas acrobacias desajeitadas, a arrepiante aparição desceu de sua montaria e dirigiu-se à arquibancada com gestos espalhafatosos.

– Meu público! Venho orgulhosamente apresentar a vocês, reles mortais, as atrações do meu circo! Este é meu cavalo Mordomo, o Bronco! – anunciou, estralando seu chicote para o velho equino, que abaixava a cabeça toda vez que sua patroa falava. – Mordomo, dê a patinha! Agora sente! Agora role no chão! Mordomo, traga-me uma água com gás! Ai, Mordomo! Essa luz atraiu uma joaninha voando sobre meu palco! Espante-a daqui!

Mordomo aprendera a obedecer a todos os comandos, mas ele não era um cavalo nascido para o espetáculo. Antes de ser levado para a arena, Mordomo, que nem se chamava assim, vivia desprezado em uma humilde fazenda. Certo dia, quando a dona do circo pairava por ali em busca de serviçais, começou a cobiçar o cavalo: seu pelo moreno, sua crina preta ondulando sobre o pescoço, seu jeito bruto, ideal para o trabalho pesado. Não era de falar e só sabia relinchar e dar coices, mas a dona logo viu que poderia domá-lo em troca de libertá-lo de sua antiga fazenda. Assim, tragou o pobre animal para seus domínios, onde o emasculou e daí passou a chamá-lo de Mordomo.

A dona do circo também tinha um nome, e um rosto, mas durante sua enigmática carreira dedicada às variadas e ocultas artes circenses, ela se exibia por meio de diferentes apelidos e utilizando-se de diferentes máscaras. Histórias antigas diziam que desde criança ela já queria ser o centro das atenções e a artista preferida de seu severo diretor. Sua primeira atuação burlesca quando menina fora o de Mimosa, a Palhacinha Rancorosa, papel em que tentava fazer malabarismo com bolas coloridas e equilibrar-se em um monociclo, mas ela nunca conseguiu aprender a pedalar direito, pois era muito desequilibrada, e, como também era desorientada, ao invés de fazer malabarismo como deveria, acabava arremessando a bola para trás, despertando muitas risadas da plateia e até mesmo dos artistas mais sérios. Com o orgulho ferido, jurou que nunca mais faria papel de palhaça. A partir de então, Rancorosa decidiu que atuaria como domadora e que seria dona do seu próprio circo e, como era desequilibrada e desorientada, passou a dedicar-se por toda sua vida às artes obscuras e sinistras.

Assim, em algumas programações ela atuava em sua tenda como a vidente Messalina e atendia a seus clientes fazendo sempre previsões catastróficas que nunca se realizavam. Para quem não gostasse dessa interpretação, ela rogava pragas ainda mais catastróficas, mas que também nunca se realizavam. Às vezes ela era Mimi, a Fadista Cricri, ocasião em que interpretava uma cantora melancólica que vivia repetindo os mesmos fados de autopiedade. Outra de suas mais famosas atrações era a sessão de truques de ilusionismo com Morgana, a Maga dos Espelhos, ocasião em que os visitantes podiam se ver em variados reflexos distorcidos por um conjunto de espelhos mágicos que eram mostrados a eles. Mas essa era uma atração que afetava a própria apresentadora, pois ela vivia interrompendo a sessão para ficar admirando seus próprios reflexos distorcidos. Outra programação corriqueira era a da Mona Metralha, atração em que ela se utilizava de seus cachorrinhos adestrados que gostavam muito de ladrar em nome da dona. Outra apresentação com animais adestrados era a da Mary Mafiosa, quando ela enviava suas mosquinhas para espionar os espectadores e sussurrar a ela de volta os segredos deles. Já em outras exibições, ela atuava como Medeia, uma vampira que seduzia e se alimentava da alma de criancinhas, ora como a medonha Medusa, atração em que ela contorcia o rosto e prometia paralisar qualquer um apenas com seu olhar petrificante. Por vezes, ela atuava como Mala Malévola, uma bruxa com o poder sobrenatural de invocar pragas infernais, e, às vezes, ela agia como Marimbondo, o Hediondo, atração em que ela prometia usar seu poder mental de envenenar a mente das pessoas. Então, ninguém sabia ao certo qual era o verdadeiro nome da dona do circo, pois ela era tanto Mimosa, quanto Morgana, Mimi, Messalina, Medeia, Metralha, Mafiosa, Medusa, Malévola ou até Marimbondo. O fato é que ela era mais lembrada por seu papel mais recorrente, o de Megera, a Madame Fera, que era quando ela submetia seus criados com coleira e chicote e por vezes incendiava tudo ao redor só porque gostava de ver o circo pegar fogo. Foi assim que o público começou a dizer que aquele era o famigerado Circo dos Horrores da Madame Megera.

– Mordomo, carregue isso! Agora conserte a arquibancada! E agora...!

– Ai, meu joelho! – bufou o cavalo.

– Murmurou alguma coisa, Mordomo?

– Não, minha furiosa comandante.

– Pois então, continue me obedecendo em silêncio! Não admito ser contrariada! Não ad-mi-to! Agora dance! Agora balance o rabo! E agora agradeça à plateia e descanse um pouco! Eu disse um pouco! E agora, meu público, venho apresentar a vocês a minha atração principal! – anunciou.

Em seguida, Madame Megera retirou suas sapatilhas de couro e deu dois passos para trás. O público curioso voltou a atenção para os calçados que agora remexiam-se. Aos poucos, um vapor branco elevou-se do interior e bigodes pontiagudos começaram a tremular para fora de cada sapato. Em seguida, narizes enxeridos projetaram-se, farejando ao redor. E de dentro de cada sapatilha saiu uma criatura peluda e esguia de olhos avermelhados e dedos amarelados.

– Apresento orgulhosamente a vocês... – iniciou a dona do circo, sendo interrompida pela algazarra das criaturinhas, que passavam a lamber com uma língua preta as solas dos sapatos de sua patroa.

– Eu a-do-ro lamber a sola dos sapatos de nossa majestosa dona! – guinchou uma das criaturas.

– Mas eu passo mais tempo lambendo a sola da dona do que tu! Na moral! – replicou a outra.

Megera lançou sobre eles um olhar paralisante de desaprovação.

– Como eu ia dizendo, eu apresento com orgulho a vocês... – novamente sendo interrompida, desta vez porque a dupla começou a brigar sobre quem gostava mais de lamber e quem passava mais tempo lambendo a sola da dona.

– CHE-GA!! – rugiu a apresentadora, desta vez estralando seu chicote na arena. – Eu não admito que me desobedeçam! Não ad-mi-to! Não foi assim que adestrei vocês! Eu exijo respeito! Sirvam direito ao meu circo ou não irão mais viver debaixo dos meus pés! Lembrem-se! Submissão, submissão, submissão!

– Sim, minha odiosa comandante! – consentiram as duas criaturinhas, voltando-se para os espectadores.

– Agora sim! Apresento orgulhosamente a vocês meus ratinhos adestrados!

O casal de roedores fazia de tudo um pouco. Se sua domadora assim ordenasse, eles equilibravam-se na corda bamba, pulavam em um pé só ou jogavam torta na cara um do outro.

Apesar de serem apenas ratos interesseiros muito parecidos que gostavam de visitar os esgotos e de viver espremidos nas sapatilhas de sua dona, cada qual buscara performar o papel que lhe parecesse mais conveniente.

Da dupla, o rato foi o primeiro a se vender para o circo pois sempre sentiu atração por picadeiros. Tentou de tudo para ser famoso. Forçou uma carreira em cabarés, fez parte de uma trupe de pulgas, mas os truques que ele mais gostava de fazer eram o de engolir espadas e atravessar o anel de fogo. Madame Megera não aceitava que seu rato de estimação engolisse espadas e atravessasse anéis de fogo, mas ela fingia aceitar só para que ele não a abandonasse, fugindo para outro circo. Esse ratinho nem se achava mesmo um rato, tinha mania de grandeza e vivia pensando que era uma formosa ratazana que um dia seria uma grande estrela dos palcos, mas, como tinha um talento medíocre, só era chamado para fazer pequenos papeis de figurante em uma cena aqui, em uma peça ali, em troca de restos de queijo gorgonzola. Inconformado, certo dia tentou se lançar desesperadamente ao estrelato com um número de rodar o bambolê equilibrando-se em uma tora flamejante. Terminou ficando queimado e com o traseiro encalhado no bambolê, que nunca desentalou dali. Desde então ele vivia se queimando por onde quer que fosse, viveu para sempre encalhado e continuou só fazendo pontinhas como figurante. Assim, o ratinho passou a ser conhecido e apresentado como: Mofado, o Figurante Encalhado.

A ratinha, por sua vez, nunca soube o que queria ser na vida e vivia se rastejando por botecos ou passando as tardes estatelada na beira do lago, vegetando sem fazer nada e sem pensar em nada. Como não sobreviveria como mendiga, precisava ser mantida por algum dono, então servir ao circo pareceu lhe cair bem. Mas, como não tinha talento algum, nem imaginação, nem criatividade, nem iniciativa, nem a metade do cérebro de um camundongo, nem sabia fazer qualquer coisa de útil, resolveu que iria se vestir de macaca de realejo e que dançaria conforme a música que sua dona tocasse e que viveria fazendo imitações. Assim, ela foi sendo apresentada como: Molenga, a Macaquinha Capenga.

E em meio a piruetas e acrobacias para agradar a patroa, os ratinhos iam conversando.

– Madame Megera, você viu o ensaio que fiz ontem correndo atrás do próprio rabo? – perguntou o ratinho Mofado, todo saltitante.

– Ah, eu estava muito ocupada arrastando minhas correntes e pranteando pelo éter – chiou friamente.

– Então você não me ama?

– Não me rebaixo a esses sentimentos altruístas. Mas e você? Você me ama?

– Claro que amo, minha gatinha diabólica, minha devoradora, senhora absoluta do meu coração! - respondeu o esparro.

– Apenas me ama? Não me adora também?

– Claro que a adoro, minha impiedosa deusa babilônica soberana e absoluta!

– E o quanto você me adora?

– Por toda a eternidade multiplicada pelo infinito elevado ao infinito, minha incestuosa rainha das trevas!

– Essa bajulação é razoavelmente aceitável. Tome esta migalha de pão seco.

– Vindo de Vossa Maleficência, essa migalha é o manjar mais saboroso do mundo! - agradeceu o ratinho queimado.

– Pô! Só ele vai ganhar suas migalhas? E eu? – preocupou-se a ratinha Molenga, enquanto tentava desajeitadamente dar uma cambalhota.

– E que oferenda você tem para me dar em troca? – sondou a apresentadora.

– Aí, eu posso te entreter inventando e espalhando boatos maliciosos sobre a vida das pessoas da cidade quando fico xeretando por trás das portas ou espiando por debaixo dos bueiros.

– Bem, não é tão perverso e covarde como eu gostaria, mas como o mínimo é o máximo que você consegue fazer, tome esta outra migalha de pão seco.

– Caraca, moleque! Uma migalha inteira! Isso é que é vida! - vibrou.

E enquanto se esbaldavam com o banquete, os espectros continuavam trocando fuxicos nefastos.

– Já viram aqueles artistas que trabalham no circo da cidade vizinha? – comentou um.

– São uns babacas doentes frustrados falsos infelizes invejosos muito ridículos! Não têm moral nenhuma para falar dos outros! Todo mundo sabe disso! – concordavam.

– Já viram aquelas almas penadas que chegaram ao cemitério? – comentou outro.

– São uns babacas doentes frustrados falsos infelizes invejosos muito ridículos! Não têm moral nenhuma para falar dos outros! Todo mundo sabe disso! – concordavam.

– Já viram como estão as pessoas aleatórias vivendo suas vidas por aí? – comentou outro.

– São uns babacas doentes frustrados falsos infelizes invejosos muito ridículos! Não têm moral nenhuma para falar dos outros! Todo mundo sabe disso! – concordavam.

– E por onde será que tem andado o Outro? Nunca mais ouvimos falar dele! – cochichou a rata de rua.

– Ele é um babaca doente frustrad... Ei! Nós não falamos mais do Outro – empertigou-se o figurante encalhado.

– Como assim? Nós ainda falamos do Outro. Só não podemos falar que ainda falamos do Outro – replicou a macaca bisbilhoteira.

– CHE-GA!! – berrou Megera, ajeitando a máscara que estava caindo do rosto. – Eu não admito que vocês fiquem falando que nós não podemos falar que ainda falamos do Outro.

– Sim, minha perturbada comandante! – consentiram.

O Outro do qual eles falavam que não podiam falar que ainda falavam sobre ele era um dos antigos achados da dona do circo que ela havia levado para participar de seus espetáculos. Um dia, enquanto vagava pelo bosque reclamando da vida e da morte, reclamando que as pedras, a natureza, o universo e tudo o mais não lhe davam a atenção que ela exigia, Megera encontrara um ninho com um ovo. Ela levou o ninho para sua tenda até que do ovo nasceu um passarinho.

– Um pintinho amarelo! - exclamou a dominadora assombração, já determinando qual deveria ser o papel do filhote no circo. – Você será Martírio, o Pintinho Expiatório!

Enquanto fazia suas encenações assombrosas por aí, Megera deixava o filhote sozinho no ninho, engaiolado em um canto escuro de sua tenda. Um dia, quando retornava de uma de suas mórbidas exibições, ao guardar sua máscara na prateleira junto às outras, ela reparou a gaiola aberta e o ninho vazio. O filhote aprendera a se libertar e a voar pela propriedade e pudera descobrir todos os seus segredos e revelar todos os seus truques ocultos. Megera sentiu medo, um medo frígido que só não era mais frígido do que sua própria alma.

– Bem te vi! – cantarolava o filhote, que, afinal, não era um pintinho amarelo, era um bem-te-vi que acabara de pousar na entrada da tenda. – Bem te vi! Bem te vi! Bem te vi sem tuas máscaras! Bem te vi maquinando teus truques de ilusionismo, inventando tuas falsas profecias para seduzir os desavisados. Bem que vi que não tens poder algum senão o da enganação. Bem que vi que este teu circo é na verdade um circo dos horrores! Jamais serei uma atração de teus espetáculos! – cantarolou o insubordinado bem-te-vi, alçando voo para bem longe antes que a madame pudesse agarrá-lo.

Megera não se conformava que um de seus achados tivesse descoberto seus truques e a tivesse visto sem suas máscaras, descobrindo seu verdadeiro rosto cheio de feridas. Mas de tudo o quanto ela não admitia na vida e na morte era que seus achados pudessem viver livremente e em paz depois que ela os tinha aprisionado, afinal, achava que tudo o que ela achava deveria ser parte das atrações de seu circo. Durante muito tempo ela perseguiu obsessivamente o pássaro por onde quer que ela o ouvisse e lhe armava arapucas mirabolantes sem sucesso. Usou desesperadamente todos os sortilégios que havia desenvolvido em sua tenebrosa carreira. Tentou petrificá-lo com seu olhar de Medusa. Tentou agourá-lo com suas catástrofes de Messalina. Tentou espioná-lo com suas mosquinhas de Mafiosa. Tentou caçá-lo usando seus cachorrinhos de Metralha. Tentou chantageá-lo com suas pirraças de Mimi. Tentou envenená-lo com seu ferrão de Marimbondo. Tentou desvirtuar sua imagem com seus espelhos distorcidos de Morgana. Enviou suas mosquinhas de Mafiosa para espioná-lo. Tentou sequestrar-lhe os filhotes com seus embustes de Medéia. Até conjurou suas pragas vingativas de Malévola. E ao longe, sempre que ela ouvia o canto livre do bem-te-vi ela ouvia assim: "Bem te vi! Bem te vi sem tuas máscaras! Bem que eu vi! Bem que eu vi! Bem que eu vi que tu não passas de uma tétrica aparição! Não adianta vires com teus truques de araque, pois contra mim são todos em vão! Sou um pássaro livre que voa alto, nunca me verás em uma prisão! De teu hospício de horrores faz tempo que me livrei! Minha vida eu sigo em frente, jamais regredirei! Vai pagar tua penitência, ó, alma penada! Ou o melhor para ti é que sejas exorcizada! Ou nem mesmo isso é preciso mais, pois todos de ti logo se esquecerão! Por isso eu canto com um sorriso e em paz: Vade retro, assombração!"

A partir de então, Madame Megera proibira permanentemente que os outros artistas sequer pensassem que era possível deixar de ser uma atração de seu circo, que era possível voar dali. Não se podia falar sobre isso, não se podia sequer falar que não se podia falar sobre isso.

– E agora, vamos, meus mascotes! Me agradem! Me agradem! - ordenava a horripilante dona do circo, tremendo e erguendo os braços em gestos exagerados, como se estivesse se desequilibrando em um monociclo e estivesse arremessando uma bola para trás.

– Sim, minha desnaturada comandante! – continuavam.

– Não é o suficiente! Eu quero que me agradem mais! Mais! MAIS!

E enquanto os ratinhos cansavam-se em novas peripécias procurando desesperadamente os aplausos dos espectadores e o olhar de aprovação da insaciável patroa, iam percebendo que seu público vinha diminuindo cada vez mais. Até a plateia que costumava assistir pacientemente às mesmas encenações parou de comparecer na arquibancada.

– As pessoas não ligam mais para nossas exibições! Será que estão enjoando de nossas atuações repetidas e decadentes? – cogitou o ratinho engolidor de espadas.

– Esses reles mortais que enjoam de nós e não nos reconhecem nem nos valorizam são todos ingratos! – bufou a domadora, ajeitando a máscara, que vivia sempre caindo.

– Então eu também vou decidir que eles são muito ingratos! – repetia a ratinha estrupícia coçando a cabeça, tentando extrair algum pensamento, não que houvesse algum.

– Mas não sobrou quase ninguém na plateia! Como assim? Isso é inadmissível! Desse jeito ninguém mais irá querer assistir às nossas encenações – prosseguiu o rato, tentando em vão desencalhar o traseiro enquanto rebolava.

– Esses reles mortais que não nos compreendem são todos inferiores e não têm toda essa nossa incomensurááável cultura! – exclamou Megera.

– Então eu também vou decidir que os outros não têm essa nossa cultura! – reprisava a macaquinha de imitação.

– Mas o tempo está passando e logo iremos desaparecer para sempre e ninguém se lembrará de nós! Quando é que eu irei desencalhar e serei finalmente uma estrela de sucesso? Já se passaram décadas e décadas e eu continuo encalhado, queimado e nunca deixei de ser um insignificante figurante de aluguel! – lamentou o desapontado roedor.

– É mesmo! E quando é que eu serei finalmente qualquer coisa? Já se passaram décadas e décadas e eu continuo sendo uma estrupícia que não sabe fazer nada de útil e até hoje nunca deixei de ser uma estabanada macaca de imitação! – reclamou a descoordenada ratinha, esparramada no chão, tentando se levantar.

– Meu eterno figurante Mofado! Minha eterna macaca Molenga! – respondeu Madame Megera. - Como ousam falar assim comigo depois de todo o sacrifício que fiz para vocês passarem por mim? Eu os acolhi, alimentei, adestrei, acorrentei, castrei, pisei, esmaguei, sufoquei! Fiz tudo isso por vocês! Sabem quanto custou cada coleira? Sabem quanto custou esse chicote? Sabem quanto custa-me cada migalha? Nunca, jamais, JA-MAIS falem assim comigo de novo! E agora parem já com essa frescura de sonhos de realização! Lacaios não têm que querer, lacaios têm que obedecer! Vocês querem ter sucesso? O maior sucesso de vocês é viverem sufocados e esmagados sob meus pés! – confortou gentilmente.

– Ah, então já somos um sucesso! Viva!! Somos um sucesso!! – vibraram.

– Mas eu tenho muito, muito, muito mais sucesso do que você! – inferiu o ratinho, dirigindo-se para sua parceira de sola.

– Nem vem, mané! Eu que tenho mais sucesso do que tu! – pleiteou a ratinha mulambenta.

– CHE-GA!! – ladrou a domadora, estralando o chicote. – Não admito que briguem sem que seja por mim!

– Sim, minha manicomial comandante! – consentiram.

– Agora chega de exibições por hoje! Vejam! A noite está avançando e nosso tempo aqui está terminando. Venham, meus capachos de estimação! Voltem já para debaixo de meus pés! Estou cansada e preciso regressar ao meu descanso eterno, onde passo as manhãs, tardes, noites e madrugadas estirada como uma morta-viva em meu caixão acolchoado mirando o vazio, coberta por minha mortalha de seda e cercada pelo ar geladinho de minha cripta. Vamos, meus súditos! Voltem já para debaixo de meus pés!

– Na boa, maluco! Para que se dar ao trabalho de viver livre e independente? Para que se dar ao trabalho de fazer qualquer coisa se basta viver sem fazer nada? Debaixo dos seus pés é o lugar mais seguro e acomodado do mundo! Esse sapato sufocante é um hotel com tudo pago!

– Viver sob seus pés é viver recebendo sua aceitação, aprovação e proteção! Isso que é amor! Viva a maravilhosa matrona esmagadora de ratos!

Megera esperou seus pelegos voltarem para o buraco de onde saíram, calçou suas sapatilhas, esmagando-os confortavelmente, e dirigiu-se à plateia cada vez mais vazia.

– Meu público! Foi com muito orgulho que apresentei mais uma vez a vocês, reles mortais, as atrações de meu circo! Enquanto houver plateia, continuarei retornando da escuridão com as mesmas exibições fantasmagóricas! Portanto, me valorizem, me deem atenção, me deem razão, me deem até sua alma, e exijo que voltem sempre! – rogou a apresentadora, estralando o chicote no ar, ao que seu cavalo Mordomo prontamente atendeu, retornando à arena. Megera voltou a montar altivamente em seu velho cavalo, ajeitou sua máscara para que não caísse, e foi sendo conduzida para fora do picadeiro.

– Ai, meu ciático! – gemeu o cansado cavalo. – Já não aguentarei por muito tempo carregar esses fardos nas minhas costas...! – bufou enquanto mancava, cada vez mais enfraquecido.

– Murmurou alguma coisa, Mordomo?

– Não, minha infernal comandante.

– Pois, então, continue trotando e sofrendo em silêncio! Meu espetáculo não pode parar.

E enquanto a lua ia se declinando por trás das árvores, a luz sobre o picadeiro desvanecia e os artistas espectrais iam ocultando-se nas névoas da noite.

E aconteceu que, conforme as luas passavam, os pavorosos espíritos ressurgiam cada vez mais apagados e decadentes até ficarem invisíveis e inaudíveis, e o circo deixou de atrair curiosos. Um dia, andarilhos que passavam pelo caminho não viram mais nenhum rastro da atração ali. Tudo havia desaparecido e em seu lugar a mata havia crescido.

Há quem diga que o tempo consumiu o que sobrara da estrutura do circo e as antigas assombrações permaneceram nas trevas fazendo suas apresentações medonhas para fantasmas ancestrais. Outros diziam que a penitência dessas pobres almas havia cessado e que elas haviam retornado ao vazio do esquecimento. Alguns viajantes passaram até a duvidar que as aparições realmente tivessem existido, porque nunca mais se ouviu ali nem guinchos de ratos, nem relincho de cavalo, nem o uivo rancoroso de uma fera ferida. Só o que se ouvia era a beleza dos cantos dos pássaros que viviam livres, radiantes sob a luz do dia e em paz sob a luz das estrelas.

Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 07/11/2023
Reeditado em 16/04/2024
Código do texto: T7926553
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