Casa Burra?

Era um domingo especial, mas comum. As mulheres limpavam a cozinha pós almoço como pretexto pra conversar enquanto os homens ficavam a frente da tv, como pretexto para dormir depois do almoço. Família grande, muitos filhos, vários netos. O cheiro de café começa a percorrer todos os cômodos e o corredor, e vem atraindo os que estão na sala. Agora, todos na cozinha conversam animados. Uns sentados, outros em pé. A mesa não abriga todo mundo, mas sempre tem lugar pra matriarca. A filha número 3 de 5 pergunta ao sobrinho como vão os estudos. Animado, ele começa a discursar o que aprendeu no último mês em seu curso. O assunto fica interessante e todos vão parando os murmurinhos barulhentos das conversas paralelas para se unir a aquele único assunto.

A casa estava imersa em seus pensamentos. Como a dona com quem dividia a alma, se limitava agora a observar sua família. E como ela, foi fisgada por algum comentário e agora tentava entender o que se falava.

Não fazia muito sentido. Eles falaram de casas inteligentes. Casas modernas que seguiam comandos de voz e se antecipavam a seus donos. Aqueciam o piso no frio e controlavam os ar condicionados no calor.

Diferente dela, que na sala só tinha uma luz no teto e à noite a da TV, trocada a muito custo de convencimento pelos filhos para um modelo mais atual, essa tal casa inteligente tinha tantas luzes diferentes na sala que você podia pré programar tipos de acendimento.

E era um deslumbramento! Os mais velhos escutavam admirados essas maravilhas de uma casa inteligente. E enquanto isso, nossa casinha ouvia, olhava pra si, e se questionava: se essa outra mais moderna é inteligente, isso significa que eu sou burra? É bem verdade que ela já tinha vários puxadinhos. O patriarca que a construíra, não previa um filho aumentando pra cima e outro pro lado. É bem verdade também que ela às vezes não fazia tanto sentido. Mas não era culpa dela se não foi planejada, e muito menos se não tinha levado canetada. O patriarca, com 5 crianças pequenas em escadinha, não tinha muito onde pensar, mas muito o que fazer.

Ela se sentia burra e antiquada. Como desejava poder ligar uma música sozinha na hora de acordar de sua senhora! Hoje, ela era sua única moradora, depois de perderem o patriarca e os filhos crescerem e saírem dela, mesmo que alguns ainda tocassem suas paredes.

Com certeza a casa moderna não tinha paredes irregulares como as dela. Como teria? Suas paredes levaram a pressa, e junto do emboço, estava o suor de quem ia morar ali. Hoje já estavam descascando.

Ela lembrava do primeiro descascado, quando o filho mais novo do jovem casal, ao brincar com sua irmã, ficou irritado por não ter sua comida imaginária aprovada no cardápio e jogou o prato de brinquedo na parede. Podia ser de brinquedo, mas o tamanho da raiva não era de brinquedo não…

Ela não tocava música por todos os cantos, mas nunca faltou música, e muito menos canto. Os vizinhos por vezes pensavam em fazer uma vaquinha pra comprar pra dona matriarca uma máquina de lavar, e evitar ouvir seus miados estridentes de canto em lamuria enquanto esfregava no tanque e nas mãos calejadas as roupas dos 7 moradores madrugada a dentro.

Ela não aquecia seus pisos, mas lembra do calor que fazia no dia em que ligaram a mangueira no seu quintal e brincaram ali a tarde toda.

Ela não tinha um computador central, mas sua memória era ótima. Lembrava de cada goteira consertada, cada batida de porta em uma briga e cada produto que já limpou seu banheiro. Seu único banheiro para os 7 moradores. Também lembrava de cada lagrima no chuveiro ou travesseiro. Lembrava das festas em aniversários, e todas as formigas que a invadiam com o cheiro dos doces. Mas também lembrava de quando elas vieram pelo cheiro dos salgados naquela festa de ano novo, enquanto o patriarca dava seus últimos suspiros e cantava ao Criador.

Ainda refletia sobre sua burrice depois que todos saíram e voltou a ficar a sós com sua dona. Esta também refletia sua velhice. Sentada na cama, olhou pro chão. Pra aquele quadrado de cerâmica que um dia foi tão difícil de limpar. Sempre dava mais trabalho, por causa da gordura dos joelhos de quando era mais nova, toda noite dobrados ali pelo casal que intercedia por seus filhos. Uma lágrima de alegria e saudade escorreu do rosto da senhora e caiu na cama.

Enquanto a casa se sorrisse, o faria agora. Ela era velha e antiquada. Talvez não tivesse a modernidade e inteligência das mais novas. Mas tinha alma. E se alguém de fora entrasse agora, sentiria algo no seu ar. Não seria o aquecedor e nem o resfriamento. Seria aconchego e acolhimento. Era um lar.

Angélica Villon
Enviado por Angélica Villon em 12/12/2023
Código do texto: T7952579
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