A CONFERÊNCIA - (Contra-contos #5)

A CONFERÊNCIA

A conferência foi espetacular. Es-pe-ta-cu-lar, e eu que sempre fui chamado de homem calmo, moderado e até moderado demais, desta vez tenho que abrir um pouco mais as comportas e aplaudir com entusiasmo. Bem disseram que o Prof. Simpson Bodock é um homem extraordinario. Tanto me falaram sobre ele que resolvi assistir à conferência, embora o preço dos ingressos para mim, esposa e três filhos mais velhos tenha sido um tanto elevado.

Mas valeu.

Cada centavo valeu, tanto a mulher como os filhos seguem linhas de pensamento materialista e contestatário de nossas estruturas religiosas, filosóficas, éticas e sociais – e vejo que estão abalados pela eloquência e pelo raciocínio claro e profundo do Prof. Bodock.

Provoquei-os já à saída do auditório da universidade e verifico desta feita, em vez de me contestarem estão-se dando por convencidos, embora nunca vencidos.

Discordam de mim nos aspectos fundamentais porém desta feita não tugiram nem mugiram. São inteligentes e esclarecidos, reconheço com orgulho paternal que ao mesmo tempo me perturba, pois estão seguindo linhas de pensamento que não aprovo.

Toda a nossa divergência na qual a mulher maternalmente – creio – toma o lado deles, gira em torno dos direitos humanos.

Acho que eles não provaram o gosto/sabor da democracia para saberem que nada existe tão importante quanto a defesa, preservação e aperfeiçoamento progressivo dos direitos humanos.

Por isso a exposição do Prof. Bodock de tal modo os atingiu, com sua clareza cristalina e meridiana, exemplos contundentes e demonstrativos que só podem ser colhidos e escolhidos ao correr da sua vida tão profícua e esclarecida, e sua apresentação magistral, sem demagogia e sem técnicas oratórias.

Valeu cada centavo e sei que os filhos – e a mulher, por decorrência – vão ter muito que pensar, sua inteligência por certo os levará ao rumo certo, farão as correções de rota que há tanto se indica conveniente.

Antes tarde que nunca.

Tenho agora filhos que me ouvirão com mais atenção quando eu, modéstia aparte, nem de longe posso me comparar ao tino do Prof. Bodock, aproveitar oportunidades do convívio familiar para indicar esta ou aquela questão e direção.

Sei que me ouvirão, são inteligentes e sinceros. O mais velho agradeceu por tê-los trazido à conferência, disse que aproveitou muito, estávamos saindo do salão. É o mais inteligente e corajoso dos três. Meu filho!…

Sempre propugnei com eles para respeitarem e defenderem os direitos humanos e há tempo eles têm seguido normas próprias e bem fascistas, a meu ver, propondo o aristocratismo como estrutura natural e verdadeira – que absurdo!

Jovens que são, não se pejam de saírem com idéias e ideais tão antiquados, varridos na poeira do tempo pela evolução social dos movimentos liberais e anseios democráticos ingênitos do homem que tenha um dia conhecido a liberdade, a democrcia, tenha compreendido os direitos humanos entre os quais o primeiro se avulta – o direito à vida.

Embarcamos em nosso automóvel, que ainda ontem veio da oficina e de uma revisão geral, porque sou exigente nessas coisas, nada deixo ao acaso se depender de cautela e cuidado.

Partimos e estamos de volta à nossa casa onde nos esperam os filhos menores que nada aproveitariam assistindo à conferência.

A estrada está excelente, mesmo assim mantenho velocidade de cruzeiro, 75 kms horários embora sinta desejo de aumentar um pouco. Mulher e filhos já desistiram, quando eu dirijo, de me pedir mais velocidade.

Vejo-os com o rabo dos olhos, imersos em pensamentos, bem despertos, remoendo o que ouviram, reexaminando pontos de vista.

Foi brilhante o Prof. Bodock em sua apresentação sobre os direitos humanos, de modo especial o direito fundamental – à vida.

O carro está perfeito, sou volante tão bom quanto os melhores, nunca bati nem cometi infração em meus 25 anos de carteira, motorista amador. Mas, que amador!

Desde muito devia estar ‘promovido’ a profissional!

Uma certa euforia se justifica, diante do ocorrido esta noite. Valeu c-a-d-a- c-e-n-t-a-v-o!

O movimento na estrada é pouco, felizmente. Nestes fins de semana os loucos saem pela estrada em seus ‘embalos’, um perigo. Alguém devia tomar providências definitivas contra essa gente.

Volto a dizer que valeu c-a-d-a- c-e-n-t -- o quê?! C-U-I-D…!!!

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O patrulheiro prencheu seu relatório. Na BR-101, entre os kms 76 e 77 ocorrera a colisão frontal do Brasília e o Opala.

O Brasília com cinco passageiros, mortos instantáneamente, o Opala com dois, casalzinho a caminho do baile de formatura. Ela com roupagem própria do grau de arquiteta que lhe seria conferido.

Entusiasmado e eufórico o noivo bebera mais do que costumava beber e no beijo trocado, cigarro acesso, perdera a direção e colidira frontalmente, ele a 120, com o Brasília, depois de atravessar o canteiro central da estrada. A moça morta, o rapaz muito mal, porém fora de perigo.

Entre os papéis espalhados o patrulheiro recolhera, levado por estranho impulso, o convite para a conferência de um Prof. Simpson Bodock, renomado orador e mestre em questões de direitos humanos, conferencista internacional, etc.

A família composta de casal maduro e três filhos jovens devia estar regressando da conferência, pelo exame das horas e fatos ocorridos.

-- Você acha que eles têm algum parente para iniciar o processo? -- indagou o colega após examinar o relatório. -- Seguro, essa coisa toda. O Brasília ia certíssimo, o Opala causou tudo. Há testemunhas.

-- Não sei. Agora é com a perícia e advogados, cuidar dos direitos de todos. Morreu todo mundo, sobrou o responsável. Você viu como ficaram… Nem cola-tudo resolve, não dá para juntar os cacos.

O patrulheiro do relatório estremeceu em arrepio.

O colega, mais experiente, doze anos de patrulha rodoviária, usava tais recursos de humor negro talvez por não resistir mais às tragédias a que assistiu em seu ofício. Ou talvez estivesse a lhe dar alguma ajuda, na tentativa de destetrizar a visão dantesca.

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O Prof. Simpson Bodock prosseguiu em suas conferências, sequer soube do ocorrido à família desconhecida que assistira à sua conferência e de tal modo se tocara com a mesma.

Ia falar no domingo seguinte para outra platéia seleta – e pagante, é claro. Sobre os direitos humanos, avultando entre eles o direito essencial: o direito à vida.

Quando soube do ocorrido, o irmão-cunhado-tio dos mortos na Brasília também estremeceu. Concordando com os sobrinhos e discordando do irmão, acabara de escrever, levado por singular impulso, uma frase terrível em seu calendário-agenda:

“Todo o homem tem direito à vida até o momento em que morre – ou alguém o mata. Depois disso, de nada serve tal direito.”

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Valpii 86030 - 801229

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A CONFERÊNCIA - (Contra-contos #5)

Forma parte da Coletânea

CONTRA-CONTOS, de Affonso Blacheyre, (1928-1997),

cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do quinto dos contos da coletânea,.

(editado por Gabriel Solis.)

Affonso Blacheyre

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Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 15/12/2023
Código do texto: T7954886
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