Morte à Arte

Subi no mais alto palanque da cidade, onde é possível ver até os menores prédios. A praça central estava movimentadíssima, brigas e mais brigas, vândalos e mais vândalos, gritaria e mais gritaria. Contudo, por um mísero segundo, milissegundo, micromillisegundo, o som foi dissipado no momento em que proferi, cortante, a seguinte anedota: “Morte à arte!”

Os seres humanos robotizados começaram a sorrir em concordância, urrando e aplaudindo minhas palavras sangrentas. Mais gritaria, mais loucura.

Porém, uma pequena parcela, em choque com o que foi dito, suspirou, perguntando-se o porquê. Impressionantemente, aquela era a que mais procurava respostas e motivações. Um corajoso ergueu-se em meio à multidão, pisando fundo no gramado lamacento e exclamou: “Como assim você deseja o fim da arte?”

Os curiosos exclamaram, esperando por garantia. Os raivosos que concordaram, empurraram o pobre corajoso, direto para o gramado. Logo estaria sujo de um batido vermelho escarlate.

Antes de retomar minha fala, tive de respirar fundo. Procurar fôlego em meio às sôfregas linhas de texto. Senti-me como o Santo Antônio, dando sermão aos peixes. Porém, acredito que exagerei na analogia: desejo morte à arte, portanto morte aos sermões.

Quando voltei a proferir som, minha garganta já rasgava em gastura, angústia e rouquidão, pois até falar de Arte me fazia querer Morrer:

“É, isso mesmo.” Comecei, “Desejo morte à Arte. Desejo morte aos Artistas. Desejo morte ao sentimento.”

Os robôs humanos mecânicos novamente comemoraram, enquanto aqueles pobres, somente humanos, assustaram-se. Alguns se aproximaram. Lembra do vermelho escarlate batido? Bem, até ele se aproximou para ouvir minha proclamação de independência.

“Desejo à todos aqueles que expiram sofrimento e transformam em lindas obras o mais triste fim. Desejo o fim a todos os -res: pintores, escultores, escritores, atores. Quero que todos os transformadores de alma se explodam e vão para a-… Exagerei, perdão. Erro meu.”

A cada segundo, o agrupamento ficava mais agitado, movimentado e bagunçado. Eu vi a hora de pularem também no palanque, somente para me obrigar a falar, a soltar tudo de uma vez. Porém, eu necessitava de paciência.

“Desejo que todos aqueles espíritos agoniados — que não se encaixam em lugar nenhum — aquelas almas sedentas por progresso e desprogresso, aqueles vultos descompassados, desassossegados, afoitos, nervosos — desejo a todos esses seres pulsantes uma dolorosa aniquilação. Pois, devem ser eliminados de nosso mecânico estilo de vida. Pois, são engrenagens velhas, sucateadas e que só, somente atrapalham o funcionamento sistêmico social. Desejo a morte dos errôneos quebrados!”

A robotização vibrava, animada, querendo mais, mais e mais. Os coitados, tristes e infelizes humanos, abaixavam suas cabeças em profunda desolação.

Mais uma vez, observei toda a cidade de cima do alto palanque central. Observei toda a violência — roubos, mortes estupros. Observei toda a solidão — depressivos, ansiosos, bipolares. Observei toda a miséria — mendigos, viciados, prostitutas. Observei tudo de ruim e engoli o choro. Engoli tudo aquilo que deve ser engolido e, por um segundo, permiti-me admirar a Arte. Retomei a fala:

“Desejo a morte daqueles que diluem-se das mais diversas formas, para fugir, para escapar da desesperança. Desejo o fim daqueles miseráveis artistas, que escorrem e engarrafam angústia e tornam na mais bela poesia. Desejo a aniquilação do choque de realidade, do tragado desconforto que qualquer maldita Arte nos trás. Contudo, mais ainda, desejo a dissipação da desgraçada esperança vinda de versos tristes, desejo o fim do maldito amor, do endiabrado sentimento humano que deve, deve ser inanimado, intocável, inutilizável.”

O silêncio da minha cabeça era gritante, e meus ouvidos só conseguiam escutar meu coração batendo no peito, pulando para fora, saindo pela garganta enquanto cuspo palavras.

“Quero o fim de todos os artistas, pois o lugar deles não é esse, é longe — muito longe. Inalcançável.

Quero o fim da Arte, pois ela não adianta mais. Pois, ela já foi dita como inútil. Pois, ninguém mais a ama, ou a quer. Pois, ela pode se tornar uma fria assassina cruel. Então, antes de me matar, quero matá-la.

Assim, proclamo o fim da Arte: o início de uma nova era. Chega da contemporaneidade, quero um mundo novo, pós-Arte. Pós-Sentimento. Quero um mundo pós-Humano. Agora, nem trabalhar mais é realmente preciso. Por que a Arte seria? Por que algo tão defeituoso, feio e selvagem, como a Arte, deve ser previsto? Mantido? Cuidado? É, senhores e senhoras, não há mais razão.”

Ouvi os sons das engrenagens dos homens robôs mecânicos, dançando e comemorando. Os humanos vão se retirando, tristemente, da praça central.

“Quero que a Arte morra, pois o bicho homem não aceita mais ser bicho. Não aceita mais seu lado essencial. Com a velocidade do maquinário, acha que pode tudo. Acha que superou o próprio homem. Acha que não possui defeitos, e os defeitos que tem já são tão normais que se tornaram qualidades. O bicho homem não aceita mais ser rudimentar.

Quero que a Arte morra, pois nós, bichos Homens pós-Homens, não a merecemos. Poucos merecem sua dádiva de ser. Nós nem queremos “Ser” mais.

Desejo que a Arte morra, pois eu, você, e todos nós estamos anestesiados demais, e a Arte é a dor. E, convenhamos, somente malucos querem tirar a anestesia.

Nós, humanos mecânicos, não queremos perceber que somos de carne, mas crer que somos apenas aço e óleo. Quero a morte à Arte, pois ela já não basta. Pois, ela me acorda todas as manhãs e me torna menos robô e me trás a essência — essência essa que tento, a todo vapor, apagar para sempre.

Quero o fim de todos os artistas, eles não devem mais pertencer ao mundo pós-Homem. Que mantenham-se no Contemporâneo, desde que estejam distantes de nós. Quero a segregação. Quero a repartição. Quero a evolução. Quero deixar de ser humano e, assim, deixar de ser artista.”

Caio do palanque. Não devo mais acordar. Talvez queiram me lobotomizar.