Consciência Real

Fazia um grande calor. O céu, todo limpo, com as suas nuvens arredondadas, parecia um vasto tapete azul, onde dormiam enormes cães felpudos e preguiçosos. Raimundo, um homem alto, de boa aparência, topete grisalho, com um ar de inteligência, e que parecia ser alguém de extrema importância, morava em uma pequena e pacata cidade, onde todos se conheciam e eram amigos. Lembrou-se de sair, mas faltou-lhe o ânimo. Sentia que quando o vissem na rua, lembrassem do quê ele fez. Seu passado o condenava.

Raimundo precisava sair, ele estava morrendo de fome e não tinha nada na geladeira, porém, se o vissem..... Então teve uma idéia: ligou para a pizzaria pedindo uma pizza. O problema da fome estava resolvido, entretanto, ele não podia ficar para sempre na casa. Uma hora ou outra teria que sair.

A cada minuto que passava, Raimundo ficava mais nervoso. Não sabia o que fazer. "Eu posso comprar uma passagem de ônibus, ou quem sabe ir a pé para a cidade mais próxima, são só 30 km", pensava, "mas e se me virem pela rua? Ou quando eu abrir a porta? Não posso correr esse risco".

Ligou a TV para descontrair, passava o jornal da tarde. "Menina é jogada de um prédio do 6º andar pelo pai e pela madrasta..." Raimundo nem terminou de ver aquela reportagem e já desligou a tv. Ficou pensando no que o ser humano é capaz de fazer, e também refletiu o porquê do pai matar a própria filha. "Não há explicação para isso. Nenhum motivo seria suficiente para levar uma pessoa a matar a própria filha". Depois de algum tempo pensando nisso, começou a comparar com o que fez: cada pessoa que ele fizera mal, cada coração partido por sua causa, cada ato imperdoável cometido, não é tão cruel e desumano quanto o que aquele homem fez. ou é???

A campainha tocou, um ar de medo tomou seu corpo, muitas perguntas vieram à tona: "quem será? Será que me descobriram? O que faço agora?..." Raimundo pegou um taco de baseball, cuidadosamente se aproximou da porta e, já preparado caso arrombassem-na, perguntou:

- Quem é?

- Entregador de pizza!

- Ohh! Calma, já abro!

Que alívio, era apenas o entregador de pizza. Raimundo a saboreou na sala de jantar. Estava com tanta fome que seria capaz de comer umas três daquela. Após devorá-la, resolveu tirar um cochilo no sofá para tentar esquecer daquele dia.

Não deram 20 minutos e ele já estava dormindo profundamente. Começou a sonhar com sua esposa:

'Ela estava grávida de nove meses, com muitas contrações, ele estava com ar de despreocupado, só assistindo ao jogo de futebol e tomando uma cerveja. Raimundo foi dirigindo até o hospital com a mesma cara de quem estivesse indo a mais um dia chato de trabalho. O médico disse:

-Parabéns, pai! É uma bela menina!

Raimundo ficou calado. Sua mulher e sua filha saíram da sala de cirurgia, e, de repente a menina já tinha três anos de idade. Chegando em casa, quando Raimundo abriu a porta, a sala estava decorada com bexigas e princesas pelas paredes, e na parede central, estava escrito com letras enfeitadas "Feliz 8 Anos". Mas ele nem ligou, pegou mais uma cerveja e sentou novamente na frente da tv. Sua mulher, cansada de tudo isso, começou a chorar, pegou a filha e saiu pela porta. Ele sabia que ela nunca mais voltaria, contudo não fez nada para evitar. De repente toca o telefone, ele continuou imóvel, então a secretária eletrônica recebeu a seguinte mensagem: "Sua esposa e sua filha estão mortas devido a um acidente no trânsito”. '

Raimundo acordou desesperado, chorando, gritando que não tinha culpa, implorando perdão. Porém, tudo não passava de um pesadelo. Mesmo assim, tudo foi tão real. Passado algum tempo, quando se acalmou, começou a refletir sobre o que fizera: abandonara a esposa e a filha no dia em que ela completava oito anos. Pensou novamente naquele casal que jogou a menina do 6º andar, e percebeu que devia dar mais valor à sua vida. Então, resolveu encarar todo o seu passado ligando para sua mulher, a Clara.

- Quem? - atendeu o outro lado da linha.

- Amoooorrr!!! Claraaa!! Eu sei que não fui um bom marido, nem um bom pai! - Raimundo tinha certeza que era Clara, a voz estava um pouco diferente, mas podia ser devido ao tempo em que não se falavam.

- Mas...

- Não precisa dizer nada. Deixe-me explicar: eu tinha muito serviço a fazer, me chamaram para trabalhar no exterior, tive que ir embora às pressas, mas quando tudo acabasse eu voltaria! Você me desculpa? Quero voltar te abraçar, sentir teu cheiro, sentir teu calor! Quero recuperar o tempo perdido! Teremos uma vida normal de hoje em diante!

- Mas aqui não é a Clara. É a irmã dela. Clara morreu há sete anos, e sua filha também. Morreram em um acidente de carro. Estavam você, Clara e a Amandinha. Você sobreviveu, mas depois de dois anos em coma e mais um ano com tratamentos psiquiátricos, fugiu, e ninguém nunca mais teve notícias de você.....

Raimundo deixou o telefone cair de sua mão, seus olhos cheios de lágrimas, agora tudo se encaixava. Ele não deu atenção suficiente à sua família, agora já era tarde para voltar atrás...

Ele descobriu que ninguém pode mudar o destino. O mundo não tinha mais sentido, estava tudo tão CHATO. Não queria mais lembrar do momento dilacerante de vê-la partir. Viver já não tinha mais sentido. Percebeu que estava enlouquecendo, e resolveu acabar com todo esse sofrimento.

Bebeu um último copo de uísque, acendeu um cigarro, cortou os pulsos, sentou no chão frio de um quarto escuro, e esperou tudo escurecer como o sol que se põe no horizonte de uma tarde fria e sem graça.