ALÉM DOS DISCURSOS EXTREMISTAS EXISTE UMA CRIANÇA DESLOCADA

Os discursos extremistas, quando levados além, não ficam "mais extremistas", apenas retornam aos erros dos discursos infantis. Assim também age o homem em sua vida: quanto mais se eleva, como adulto, através da paixão, aproxima-se de um determinado ponto cuja transcendência o levará a parecer criança novamente. E tanto neste caso como naquele outro não se pretende, quando aqui se refere à infância, descartar a extrema sabedoria desta mesma. O que é importante saber é que embora a criança só pratique discernimentos sábios para a sua condição, alguns dos comportamentos – corolários de sua ação predominantemente apaixonada – são erros se exercidos por adultos.

É incontestável que discursos extremistas demais são, na verdade, guiados por uma face de índole ruim da paixão. É possível distinguir esta última de outra se observar-se que, como ser suscetível a ter respostas passionais, o homem, entendendo racionalmente uma informação, reage a ela em consonância com estado presente das coisas. Entretanto, este caracteriza somente um dos comportamentos, diante das informações, da paixão, que nesta análise são dois.

É, o primeiro, então, o comportamento de resposta. Por exemplo, ao saber ter, o Brasil, mais da metade da riqueza nacional concentrada nas mãos de dez por cento da população, a paixão do indivíduo reage conforme o estado presente de coisas que lhe é tangível ou sabido. Dessa forma, a depender do que enxergue ao redor, o indivíduo tem reações diversas. Uma bem comum nesta ilustração é o receptor ficar completamente comovido com a notícia, embora, por outro lado, alguns recebam tal notícia estoicamente, uma vez que já lhe tinham ciência. Sobretudo, porém, quaisquer que sejam as reações, serão transmitidas ao discurso.

Enquanto a reação – primeiro comportamento notável da paixão – guarda a intensidade emocional do relacionamento com o dado e a transmite ao discurso sob forma de radicalismo saudável, a ação – segundo comportamento a estudar – se comporta de modo a modificar convenientemente o discurso e a “cegar” o enunciador. Aquele comportamento de reação é imanente ao ser humano e, bem como a ele, é salutar às discussões e à vida. Contra a qualidade destes dois últimos, age, contudo, o comportamento de ação passional (esta última na acepção deste texto).

No início do processo de formação do discurso já há, por conta da contaminação pela má forma de paixão, o fato de o sujeito receber as informações de modo irracional. Isto não ocorre porque não consegue perceber as informações como elas se apresentam, mas porque, malgrado as receba de modo geral impecavelmente, as recepciona dentro de si já em posição ofensiva. Destarte, antes de aquilatar o verdadeiro valor do que lhe é passado, o indivíduo já maquina uma resposta àquilo. Até este ponto, parece aceitável, posto que contrapor respostas inteligentes contribui para o êxito de discussões. Todavia, embora já haja razões suficientes para se repudiar o “maquinar respostas” – uma vez que esta prejudica a troca de informações –, existe a tendência de a pessoa formar, na ausência de respostas fundamentadas e paciência para consegui-las ou não, uma contra-argumentação irracional.

No bojo do discurso, a contra-argumentação irracional se atém a declarações verbais apaixonadas de diversos tipos. Entre estes é comum o desvio da forma discursiva, e este desvio é desde cômico a perigoso. As agressões verbais ad hominem, ou seja, ao enunciador cujo discurso se pretende combater, – como palavras chulas, má ironia, catilinária, injúria, calúnia e difamação –, o apelo, o sofisma, a mentira e a retórica são exemplos daquele desvio. Por outro lado, existe a extrapolação do discurso, em que a agressão física é a ilustração mais esclarecedora, mas que não figura sozinha: no regime burocrático soviético o Partido Comunista se livrava administrativamente dos seus opositores da mesma maneira que os latifundiários nortistas violentamente se livram de pequenos posseiros e de que lhes apóie.

Assim, fazendo jus ao termo que lhe inicia o nome, a ação da paixão polui e distorce o pensamento e a manifestação do sujeito.

Não seria tão diferente se se fizesse uma analogia entre todo o dito e uma relação amorosa, visto que a paixão saudável que fomenta a intensidade do relacionamento vigora até uma paixão doentia enviesar. Quando isso acontece, segue-se o ciúme excessivo, a idolatria da pessoa amada, a perda da noção de risco, a confusão entre amar, ter e ser, a incapacidade de avaliar as situações de modo correto etc... Esse caminho comum ao discurso e ao amor é igualmente afim entre outras relações humanas.

Para o discurso, numa ordem cronológica simplificada: na sua construção primeiramente se manifestaria a boa forma de paixão, – que é a paciente, a reativa –, posteriormente, entretanto, o fanatismo levaria o indivíduo a pré-disposição à recusa, ao discurso irracional e/ou extrapolação indevida. Portanto, a paixão, quando incide de forma ativa sobre a formação e enunciação do discurso, confunde e funde perigosamente: discurso, sujeitos, racionalidade e irracionalidade – do mesmo modo que a criança o faz.