MANIFESTO DA ARQUITETURA REAL

MODA E SUBSERVIÊNCIA.

O modismo é sedutor em tempos de economia de mercado e tem atingido todas as esferas da vida. Não basta escutar rock: o modismo impõe que se use certas roupas, que se recuse outras manifestações – tais como o pagode – e que se seja “roqueiro”; ser emocional é modismo; ser casual é modismo; ser rebelde virou moda também, mas esta “rebeldia” é controlada: um indivíduo não pode ser rebelde demais a ponto que o achem maluco, e não rebelde. E mais, este só será normal se, a certa altura, dispensar a rebeldia e recondicionar seu pensamento – terá de mudar se a moda mudar. Motivo da mudança? não foi por sua obra consciente de pensamento tê-lo feito rever seus conceitos e mudar-se, mas, isto sim, por o mercado requerê-la: “tudo o que é sólido se desmancha no ar” – dizia Marx.

A Arquitetura, como parte deste mundo, também foi atingida. Alguns arquitetos hoje funcionam como estilistas pouco especializados, ou melhor, especializados em trocar paredes e móveis de lugar e em escolher cores e bibelôs com objetivo meramente “estético”. Aliás, eles não sabem o que é Estética, – não tentam o sublime, mas o tão-somente belo, cuja significação atribuem a “tudo o que faça agradar rapidamente o cliente”. Este tipo de Arquitetura é descartável. Poucos meses depois a decoração deve mudar por uma “tendência” vinda do exterior ou, ainda, vinda do interposto deste com a sua colônia; em menos palavras: do sudeste para a Bahia ou para o resto do país. Pergunta-se se a Arquitetura impõe de alguma forma, como técnica-arte, a grandeza de que dispõe, os estigmas que marcam sua história, os traços que a fazem, além de sublime, uma técnica abrangente.

Há quem argumente que, como tudo, dentro do contexto contemporâneo, a Arquitetura deve “evoluir”. No entanto, qual evolução há em resumir a Arquitetura à moda? Em reduzi-la a reorganização de móveis? Em tornar-lhe volátil a grandeza? Em, devemos especialmente ressaltar, subordinar a Arquitetura à Engenharia?

A Engenharia Civil é uma parte da Arquitetura. É certo que a Engenharia pode ser independente da arquitetura, muito embora, neste caso, terá de dispensar o termo “civil” que lhe acompanha o nome. Ora, a arquitetura pensa e projeta construções a fim de atender alguma necessidade direta ou indireta do ser humano. Então, a não ser que a Engenharia construa uma torre no meio de um deserto só visitada por humanos nos dias da construção e considere que atividades como esta definam a sua essência, é uma parte da Arquitetura e a tem como pressuposto.

Por outro lado, ainda que os arquitetos sem conhecimentos de Engenharia tenham imensa vontade de atender, com seus projetos, as necessidades de indivíduos, não terão como realizar, é dizer, não terão como objetivar seus projetos. Estes últimos, então, como tal apenas, não são Arquitetura. Assim como um objeto da produção só se torna produto quando é consumido, um projeto só se torna arquitetura quando sai do papel. Neste sentido, Arquitetura só pode existir com o auxílio da Engenharia.

É correto dizer que um arquiteto não escolarizado em Engenharia pode projetar uma pequena cabana e erguê-la com as próprias mãos. Mas é errado usar isto como argumento para contrariar a dependência da Arquitetura da Engenharia, pois o Arquiteto se utiliza, inevitavelmente, de técnicas da Engenharia ao fundar uma haste de madeira que seja, ainda que técnicas rudimentares. De modo análogo, um Engenheiro pode objetivar um prédio, mas se aquele prédio tem uma função dentro do universo humano, tanto sua estrutura quanto o pensamento e projeto que preparam o prédio para aquela função são Arquitetura. Se não fosse, a construção seria aleatória, não funcional – seria como aquela torre ilhada no deserto.

Disto tudo duas conclusões são exatas: 1. a engenharia depende vitalmente da Arquitetura por somente esta última ter em si o objetivo daquela, objetivo este que torna, a primeira, lógica; e que torna possível a produção daquela mesma. O que é uma especialidade sem objetivo? 2. A recíproca é verdadeira: a Arquitetura não prescinde da Engenharia, pois somente esta pode fornecer o objeto daquela: a obra, que, junto a toda sua preparação, denomina-se Arquitetura. E, apesar de a Arquitetura não se reduzir a isto, o que é uma arte sem obra? E, finalmente, por todo o dito deduz-se, não há naturalmente hierarquia em nenhum dos sentidos na relação Arquitetura-engenharia, há sim uma interdependência, uma cooperação impreterível.

PRODUÇÃO E ESPECIALIZAÇÃO.

A hierarquia se dá quando aquelas especialidades estão sob a abrangência mercadológica. É natural, nesta conjuntura, - que é a desta primavera de 2008 -, que se dê importância excessiva às ciências exatas e às ciências naturais enquanto se concebem como secundárias as artes. Ora: ciências naturais e exatas produzem ou dão suporte à produção; as artes tradicionais, quando não se traem, não têm objetivo produtivo.

É certo, contudo, que a publicidade, o desenho industrial etc. e a própria Arquitetura são relevados de algum modo quando é necessário o “novo”. Novo, aqui, entendido como “rótulo”. Mas este rótulo, além de não objetivar nada senão o lucro, tem prazo de validade e é este último constituinte mesmo da “moda”, de que falamos. E voltamos ao caráter descartável, no entanto, desta vez, não é o que os próprios “arquitetos” exaltam, mas aquele que o mercado impõe. De qualquer modo, a obsolescência exagerada não deve servir de modelo para os estudantes e estudiosos da Arquitetura, das artes em geral, das ciências humanas e da Filosofia. E, desta maneira, estas mesmas não devem submeter-se inteiramente às especialidades preferidas pelo mercado.

Um dos modos de a arte se livrar desta exclusão é a tentativa de tornar-se exata. E é esta hoje uma das tendências que, junto à moda, desloca a Arquitetura de seu sentido real. A Arquitetura, na Universidade Federal da Bahia e em instituições outras de ensino do país, é considerada exata, de modo que mesmo no teste vestibular é incluída como tal. Embora seja verdade que algumas das atividades de exercício dentro das escolas de Arquitetura ostentem trabalhar com a criatividade, a imaginação, o pensamento e a invenção, no final de tudo, porém, concluído o curso, o arquiteto é condicionado a seguir modelos exteriores a si, a curvar-se se frente às empresas, a se fazer tão-somente especialista; a se fazer, também, cego politicamente.

Em palavras nuas: o arquiteto desenha edificações que não saíram de seu intelecto consciente como solução prática e estética para uma situação, mas sim de uma “tendência” do mercado que, via de regra, é algo que não é solução para nada a não ser para estimular a vendagem. Olha as empresas como quem avista um superior e se submete prontamente às suas ordens, é dizer, não questiona os projetos, não questiona a suposta superioridade de outros profissionais. Não se pergunta nem sequer se manifesta quanto à disparidade brasileira do déficit habitacional que convive com a explosão do mercado imobiliário para as classes abastadas. Não se faz engajado em qualquer causa, sintoma decorrente de seu excessivo individualismo e de seu caráter fechado diante das outras concepções artísticas, científicas – o arquiteto acaba por ser um especialista, apenas.

Tão danoso à Arquitetura quanto o modismo é o cartesianismo.

O arquiteto não vê que inexiste diferença entre a somente especialização e a ignorância.

UNIVERSIDADE, SOCIEDADE E VOZ.

O que diferencia uma universidade de uma faculdade é o fato de que esta é lugar de ensino e evolução de uma especialidade enquanto naquela a evolução se deve dar interdisciplinarmente. Tendo-o em vista, a alta especialização de que se munem as universidades hoje as fazem uma contradição em termos. Imaginemos então a Universidade Pública, onde em tese teríamos um desenvolvimento cognitivo interdisciplinar e acessível a todos, mas que, na realidade, abriga estudantes financeiramente selecionados, despreocupados com o mundo que os rodeia. Estudantes que consideram a Universidade como uma mera empresa de ensino ou “rede de relacionamentos” (networking, para os mais alienados, que acabam por denunciar a que servem suas “amizades”); que só falam em violência urbana quando lhes é roubado o celular – o qual repõem na próxima semana; que têm medo de participar de um todo e defendê-lo, enquanto só respondem, quando muito, por si individualmente.

A Arquitetura Real é aquela em que seus interessados não são estudantes, mas estudiosos. É aquela na qual a discussão racional e livre predomina sobre falácias de qualquer ordem. É aquela que reconhece sua força, importância e parceria junto às outras especialidades. É aquela consciente de que esta força e sinergia cooperativa devem ter um papel declarado e ativo de melhoria da realidade brasileira. É a Arquitetura que se faz presente em todos os campos da ciência. É aquela que existe como voz política. É Arquitetura da união.

Por necessidade de uma onda que em enxurrada empurre a Arquitetura atual à Arquitetura Real, surge o MAR, o Movimento da Arquitetura Real. Não estamos organizados em partido, muito menos somos uma empresa privada de economia de mercado nem autarquia, tampouco um grupo político de esquerda, muito menos (e toda divindade nos livre!) um corpo de fascistas. Na realidade, não somos. Não somos nada por enquanto. Somos apenas uma voz democraticamente manifesta por este texto; o que não é nada politicamente: diz-se “vox unius, vox nullius”, ou seja, “voz de um, voz de nenhum”, e assim aqui ocorre. Entretanto, dispensando a pseudo-exatidão matemática, na democracia a soma das vozes de muitos nenhuns não é nula; ao contrário, é a força incontida e incontável. Viemos, apesar de nos dirigirmos em pessoa do plural, buscar apoio de cada um dos quais pretendam compor uma voz. Uma voz necessária à realidade brasileira. Que pretenda democraticamente a mudança de atitude frente à Academia, frente à Universidade.

Não. O MAR não convoca apenas estudantes e estudiosos da Arquitetura. Falamos da Arquitetura e os principais problemas que a vitimam, porém temos plena consciência de que as outras especialidades também têm anseios e queremos compor o coro destas reivindicações e ações. Com tanta certeza quanto sabemos que podemos estar errados e que nada do que dissemos sobre a decadência atual da Arquitetura é real, temos também convicção em afirmar que a comoção política entre os estudantes de Arquitetura é necessária e temos em dizer ser o ambiente democrático o melhor à sobrevivência humana.

Do mesmo modo que o MAR não se confina na Arquitetura, também não deve permanecer nos Campi. A recusa da especialidade também é a recusa do elitismo acadêmico. Pretendemos, portanto, compor um Movimento amplo que reconheça a sociedade brasileira, seus litígios, grupos, diferenças, consonâncias, mas que, principalmente, dê à palavra “Arquitetura” uma acepção de “construção”; e construção coletiva. Só o debate constrói e, atentando-se a esta máxima, o MAR pretende fortalecer o debate político e defender as posições nas quais houver concordância. À Bahia não quer também se restringir o Movimento.

Método

Talvez quem leia todo o texto chegue a este final com um sentimento de falta de concretude, uma vez que o texto não dirá esmiuçadamente como o movimento será organizado. Entretanto, ainda sabendo desta possibilidade, não listaremos, as estruturas organizacionais ou qualquer coisa do tipo. Temos por opinião que um movimento livre deve caminhar com suas próprias pernas. Apesar disto, não cometeríamos a irresponsabilidade de não apontar as possibilidades de realização deste movimento.

A impressa num país democrático deve ser livre. A liberdade, entretanto, não é a total sanção para ações de grupos de interesse privado sobre uma população com pelo menos 20% de analfabetos funcionais. A liberdade de imprensa deve estar também na base e, para isso, faz-se necessário prover o acesso democrático de fato ao uso desse meio para a população. É dizer, o melhor cenário seria que, porquanto “todo o poder emana do povo” e o espectro de radiodifusão é pertencente ao Estado brasileiro (dizeres da Constituição de 88), grande parte do espectro fosse usada para exposição de nossas diversas culturas, nossa cultura em geral, nossas novas manifestações e que todas as concessões públicas de televisão se submetessem ao crivo do povo – este já provido da instrução necessária para pelo menos saber do que se fala aqui quando se cita “concessão”.

Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. (Artigo XIX)

(O grifo é nosso)

Assembléia Geral das Nações Unidas.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

10 de dezembro de 1948.

Nosso cenário está longe de devir melhor. Viria a ser o mais adequado se movimentos como o MAR, que resgatam a essência da palavra política como ação conjunta, se opusessem às arbitrariedades políticas; à uma política que se faz de excluídos (pasmem!) – que secciona a população brasileira em políticos, “politizados” e maioria. Seria o fim dos tempos, porque, como as mobilizações amplas têm grande ajuda dos meios de comunicação, impossível se apresentaria uma luta contra a falsa liberdade de imprensa sem dispor de uso dela (da imprensa).

Existe, porém, a internet. A internet, em nossos tempos, representa o que há de mais livre em termos de comunicação. Isso porque, além de não se submeter a regras censoras, a participação se torna cada vez mais democrática; a internet torna-se cada vez mais acessível. Sem a poesia da vanguarda futurista quanto à redenção pela máquina, falamos de internet, aqui, com todos os argumentos racionais e experiências diárias de nossa juventude.

Enquanto a imprensa a rádio e televisões não são livres por razão de quem as detém e usa, algumas outras formas de imprensa não serem deveras livre por não se lhes poder ter acesso, a internet se afoga no problema de como se a usa. Ocorre porque, apesar da sua grande e rápida expansão de usuários, a chamada “inclusão digital”, – capitaneada, talvez, por uma produção cada vez mais tecnocrática –, as pessoas a utilizam: em quase nenhuma forma de opinião, muito mal em termos de agilidade produtiva, e ampla e excessivamente para futilidades.

Não lembramos se foi Voltaire que disse serem, as futilidades, necessárias. Contudo, reconhecemos esta máxima, haja vistos os interesses humanos particulares, cuja atribuição do termo “fútil” somente é afirmada por resguardo da relatividade – em uma palavra: o que é fútil para um não o é para outro. Entretanto, é preciso um equilíbrio. Se o bom uso da internet para a produção é uma exigência de mercado para a sobrevida e o uso para “futilidades” (diversão, entretenimento) é uma afirmação pessoal, o uso político reuni, além dos aspectos sobrevida e afirmação pessoal, o caráter de ação pública de interesses sociais.

O MAR, sob este ou qualquer nome, deve nascer da conversa pessoal e ser semeado pelos meios disponíveis.

Somos humanos não por nossos interesses pessoais imediatos, como a caçarmos sós como gatos. Somos humanos não por vivermos em sociedade, como formigas e abelhas. Diferenciamo-nos dos outros animais por termos a capacidade de agir no coletivo pelo coletivo (político), por podermos trabalhar com visão em longo prazo (projetar) e pela capacidade de primar pela ética – no mais amplo dos sentidos deste termo, quando se confunde com a verdadeira justiça.

23 de setembro de 2008,

Universidade federal da Bahia,

Salvador,

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,

Federação.