Como me tornei um leitor

Não há como negar nem como não reconhecer o papel significativo que as letras ocuparam/ocupam em minha vida. Mesmo quando ainda não havia me apropriado da leitura alfabética, meu cotidiano, desde os sete anos de idade, era repleto de letras e desenhos das revistas em quadrinho com as quais brincava. Ou seja, nos primórdios de minha história de vida, travei contato com a escrita pictográfica, pois lia as histórias através das imagens.

Meus dois irmãos estudavam à tarde e, como não tinha com quem brincar, todo o meu tempo era dedicado aos meus heróis de quadrinhos e ao meu cachorro, Tok.

Tinha verdadeira compulsão por comprar revistas em quadrinho. Economizava minhas parcas moedinhas por alguns meses e, quebrado o cofrinho da vez, lá ia eu realizar investimentos na banca de revistas. Depois de ler as imagens dos gibis durante algumas semanas, recortava suas figuras e dava-lhes nova vida, brincando agora com os bonecos recortados do Homem-Aranha, Demolidor, Thor. Ao recortar as figuras, passava, inconscientemente, para outra dimensão da leitura. A partir de sua nova realidade, libertas do enredo e do papel, minhas personagens também ganhavam outras histórias e outras personagens. Muitas vezes, Tok transfigurava-se num terrível monstro contra o qual precisava lutar, a fim de salvar a humanidade.

Intrigava-me não saber exatamente o que significavam os símbolos dentro dos balões. Sabia, contudo, pelos seus formatos, quando, por exemplo, as personagens estavam agitadas, pois as letras eram maiores e mais espessas nessas ocasiões. Nada disso, contudo, impediu-me de ler inúmeras revistinhas. Os desenhos me diziam muito. Realizava viagens fantásticas pelas suas histórias e aquelas experiências despertavam em mim uma profunda curiosidade por saber que mistérios haveria por trás das letrinhas.

Minhas leituras também me motivavam a outras atividades. Num segundo nível de ludicidade, sentia nova compulsão. Agora por desenhar os super-heróis de que gostava. Ia, pois, da leitura à produção, sempre brincando sozinho, ou melhor, na companhia desses super-heróis.

Quando fui à escola já sabia para quê gostaria de aprender a ler: para conhecer a fundo as histórias de meus gibis.

Tempos depois, aos onze anos, encontrei um livro perdido entre coisas velhas no quarto de meus pais. Sua capa, em que havia uma foto de uma mulher nua da cintura para cima, perturbou minha curiosidade e instintos. Era um livro de contos eróticos. Rapidamente, tomei a decisão de encapá-lo com papel fosco, para não despertar a curiosidade de mais ninguém em minha casa. Pareceu-me algo proibido, cujo conteúdo mereceria longos momentos de pesquisa, e esta não poderia ser interrompida pelos pudores dos adultos.

Passei longas semanas a ler e reler suas histórias. É importante que se diga que o livro era espesso, cerca de 150 páginas, e não possuía gravuras, além da foto da capa, que tive de inutilizar para poder lê-lo com certa tranqüilidade. Li-o, contudo, incontáveis vezes. Eram apenas cinco contos, mas seus enredos me levaram a lugares nunca antes imaginados. Uma história de incesto, uma de traição, uma aventura com um toureiro de Madri, que “pegava todas”, uma história romântica entre três adolescentes, uma louca aventura na selva.

Aprendi muitas palavras novas, cujo significado tive de desvendar sozinho, pois não havia a quem perguntar e não me parecia conveniente perguntá-las aos mais velhos. Meus colegas também não saberiam me ajudar. Fui, pois ao dicionário, e, depois de muitas pesquisas frustradas, percebi para que servem aquelas palavrinhas no topo das páginas. Guiando-me por elas, ampliei bastante meu vocabulário, embora não pudesse utilizar em minhas redações escolares a maioria daquelas novas palavras.

Tornei-me um leitor assíduo. Passei a ler os livros didáticos de meus irmãos, revistas eróticas diversas, livros de esoterismo, revistas de piadas. Até que, finalmente, aos 13 anos, fui apresentado à Literatura infantil e infanto-juvenil. Convenci meus pais a comprarem uma coleção que um vendedor de livros trouxe a nossa casa. Eram três volumes. O primeiro trazia contos de fada, histórias do folclore brasileiro, histórias dos irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen. O segundo volume trazia As Aventuras de Gulliver. E o terceiro, as Viagens de Marco Polo. Li e reli esta coleção até os 15 anos, quando conheci o Pequeno Príncipe. Deste lembro-me bem, li-o dezesseis vezes. Adorava descobrir, a cada leitura, outras formas de entender o que estava escrito ou algo que não havia percebido na leitura anterior.

Na verdade, talvez tenha lido poucos livros em minha adolescência, pois gostava mesmo era de fazer releituras. Reli algumas vezes nessa época A insustentável Leveza do Ser, Queda Para o Alto, o Tao Te King, Feliz Ano Velho, até que cheguei a Machado de Assis, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais, Álvares de Azevedo, Graciliano Ramos, depois Kafka, Oscar Wilde, Dostoiévski, Tchecov...

Talvez não tenha percorrido o caminho convencional do “bom leitor”, mas o caminho que segui construiu minha visão das coisas, meus valores, e, sobretudo, meu prazer pela leitura, uma leitura que aprendi sem preconceitos, ou tabus, uma leitura que aprendi sem limitações de conteúdos ou estilos, uma leitura que aprendi sem imposições obrigações de ler isto ou aquilo, pois foi o caminho que trilhei pela própria vontade de trilhar. Assim me tornei um leitor e muito me orgulho disto.

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