A substância da vida

Dizem os que pedem de nós esforço e determinação acima de tudo – como é do gosto do sistema - os ditos de pés no chão , os pragmáticos, que a substancia da vida é como se construíssemos uma casa : fazemos os alicerces, assentamos alguns tijolos a cada dia, suspendemos paredes, dividimos os cômodos e adaptamos uma coisa e outra, à medida que as dificuldades aparecem.

Usam esta imagem, que Jesus usou várias vezes, mas com intenção diversa: lembro-me de uma delas em que compara a casa com alicerces na rocha, com outra, com alicerces na areia, referindo-se, se não me engano, aos que constroem a sua vida visando as coisas deste mundo e os que a edificam alicerçados no amor.

Afinal a Casa nada mais é do que uma configuração de nossa alma no mundo, de nossa presença no mundo.

Ao construí-la obedecemos a um plano, seguimos rigorosamente um projeto que foi preconcebido. O imprevisto pode acontecer, e sempre acontece, mas nada muda; resulta em princípio, aquilo que foi anteriormente planejado. Existe uma idéia da Casa e um esforço para construí-la.

Mas se nos debruçarmos um pouco mais sobre a natureza das coisas, veremos que a imagem, posto que util para uma certa abordagem, não é verdadeira, mesmo se dando o desconto de que se trata de uma imagem, e não de uma idéia. Desmente, portanto, o que pretendia demonstrar.

A vida só é o que é, porque está sempre sujeita ao imprevisto. Por mais que planejemos, nunca transcorrerá conforme o planejado por que milhares de fatores impossíveis de serem detectados por nossa limitada percepção interferem a cada momento.

Ou, olhando por um ângulo mais religioso, poderíamos dizer que a causa da imprevisibilidade é que os desígnios de Deus são insondáveis.

Nossos planos não passam de esboços, ou de tentativas face a um plano superior. Domina a incerteza.

Alguns, de maneira mais poética, alegam que a substância da vida é a dos sonhos. E por mais que desejemos nós, os comuns dos mortais, não conseguiremos planejar os sonhos( alguns privilegiados podem, é bem verdade, e podem ainda mais, pois têm o poder de transformá-los em realidade, mas estes são os Bruxos, os Magos, uma raça à parte. Certa vez, sonhando, planejei algo dentro do sonho, e era exatamente uma casa; consegui erigi-la enquanto sonhava, mas quando tentei construí-la fora dele, em estado de vigília, logo descobri que era impossível , pois feria frontalmente a mais comezinha das leis físicas, que é a da gravidade. Só então me lembrei da parte mais bela do sonho: a casa levitava).

No sonho podemos tudo e é por isto talvez que não possamos controlá-lo.

E talvez, também por isto, seja tão bom sonhar.

Mesmo abandonando a imagem sheakespereana de que a vida é feita da mesma matéria que os sonhos, ou mesmo a versão mais antiga, a dos gregos, que acreditavam que nada mais somos que o sonho dos deuses – ou o seu pesadelo, se formos céticos – continuamos impotentes para erigir as nossas vidas através de um planejamento que dependa exclusivamente de nossa vontade.

Contaram-me certa vez, creio que foi o meu amigo Odir Nazareth, um homem incomum (todo mundo pensava que era louco, mas não era, apenas via o mundo de um modo pessoal e totalmente diferente, o seu mundo era diverso do nosso – será que isto é a loucura?) que uma cigana leu a mão de Napoleão e predisse vida curta para ele, e que ele, impassível, perguntou por onde passava a linha da vida; a cigana com o indicador percorreu uma curta linha na palma de sua mão. Napoleão, sacando do canivete, fez um corte que duplicava a dita linha, perguntando em seguida: “e agora, viverei mais tempo?”

Grande ilusão a do Pequeno Corso, que tinha a pretensão de manter em suas mãos o destino, como mantinha em rédeas curtas o seu famoso cavalo branco! A campanha da Rússia e Waterloo nada mais foram do que o fracasso de um grande plano...ou de um sonho que sofreu a violência de ser transposto para a chamada realidade...

No Korão há uma passagem que diz : “Alá sorri, quando os homens fazem os seus planos!”

Abandonemos, portanto, as vãs pretensões de erigir as nossas vidas como a imaginamos nos nossos sonhos mais gratificantes. Nossa verdadeira liberdade não está neste nível. Isso nada mais é do que uma enganosa visão de uma época e de uma cultura.

O que podemos – e a maioria não o faz, pois vive como borboletas atraídas pelas chamas do efêmero – é tentar construir o nosso espírito, edificando a nossa alma - esse pequeno peixe que nada solitário num imenso oceano, abismado pelas profundezas e pela luz que , além da superfície, promete a existência de um outro mundo.

Quero dizer com isto: não podemos construir as nossas vidas, mas podemos nos construir de acordo com a nossa realidade interna, desde que o façamos respeitando o que somos.

Nada impede que nossos planos se realizem, mas o que poucos entendem, é que nada mais são que uma concessão que nos é dada e que a qualquer momento pode nos ser tirada. “Deus dá, Deus tira.” Na verdade recebemos, não realizamos, pois apesar de todos os nossos planos e esforços, tudo pode dar certo ou errado. O máximo que podemos dizer é que sem planejar e nos esforçarmos certamente não teremos, ou seja, criamos as condições,o resto é com Deus.

O que não nos deve inibir de sonhar, pois sem os sonhos não haveria nada para ser concedido, nem retirado.

E mais: a vida seria sem sal, sem gosto, como a comida dos hipertensos.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 09/04/2009
Reeditado em 11/04/2009
Código do texto: T1531005
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