A ANGÚSTIA E O EXISTENCIALISMO

O conceito de angústia é central no existencialismo. Esta filosofia nasceu em oposição à Hegel, cujo pensamento foi o apogeu absoluto do idealismo alemão. Não querendo fazer parte do grande sistema hegeliano, muitos pensadores resolveram partir para a construção de uma proposta que, naturalmente, privilegiava o indivíduo e seus sentimentos.

Um deles foi o dinamarquês Soren Kierkegaard. Este sujeito viveu de maneira complicada. O pai dele teve um casamento anterior do qual não nasceram filhos, sendo que logo enviuvou. O velho então se casou com a empregada e teve um monte de filhos com ela. Kierkgaard foi um dos últimos. Segundo lemos em alguns livros, parece que o pai do filósofo não era muito dado a bebida. Mas no único porre que tomou na vida, revelou coisas que deixaram Kierkegaard de cabelo em pé. Acho que o velho dera um jeito na ex-esposa infértil. In vino veritas.

Nisso aí Kierkegaard viu a maldição que se abatera sobre sua família, pois quase todo mundo morreu na flor da idade. Incluindo aí o próprio filósofo, que viveu apenas 32 anos. O cara era complicado. Cristão, criou o conceito de angústia, que é aquele sentimento de aperto no peito por não sabermos quais são exatamente os desejos de Deus. Este, sacana que é, nunca se manifesta de forma clara. O filósofo ainda teve um noivado com uma tal de Regina Olsen que também não deu certo por causa das incertezas do filósofo.

Quem aproveitou a base filosófica deixada por Kierkegaard para criar um pensamento novo foi Heidegger, que simplesmente excluiu Deus do existencialismo. A sua proposta ainda incluiria a fenomenologia, aprendida com Husserl. A fenomenologia é um exercício que busca eliminar ao máximo os preconceitos do sujeito na observação para que as coisas apareçam “nelas mesmas”. Em 1926 lançou sua obra-prima, Ser e Tempo, dificílima de se ler, onde ele procura explicar os conceitos do título de maneira absolutamente ateística. O último parágrafo do livro contém somente perguntas, e por isto, seus adversários, especialmente os cristãos, alardeiam que Heidegger falhara na tentativa de resgatar a ontologia. Conversa fiada. A filosofia não está aí para dar respostas, mas sim para suscitar novas perguntas.

A angústia, como a concebe o alemão, nasce porque o ser humano tem a noção do nada. E como ele a tem? Ué, porque sabe que vai morrer. O ser humano é um animal temporal, no sentido de que vive ao mesmo tempo no presente, no passado e no futuro. Nós sabemos disso. Quanto tempo na vida nós gastamos relembrando sobre o que já passou? E quanto tempo passamos devaneando sobre o nosso futuro? O presente mesmo só o vivemos por momentos breves. Por isso acontecem tantos acidentes de trânsito.

Então, como somos seres-para-a-amorte, o sentido de tudo se esvanece. Imagina só. Nós somos essencialmente projetos, um ser que tem um passado e que antevê um futuro para o qual trabalhamos no presente. No fim de tudo sabemos que virá a morte e vai zerar tudo. Por isso a angústia humana é estrutural. Que sentido tem esta porra toda? Por isso nós fugimos da reflexão e nos refugiamos em uma vida mentirosa. Pra que pensar em tudo isso? Vamos viver, trepar, casar, fazer negócios e tentar acreditar que há uma existência posterior onde poderemos viver na autenticidade. Amém. Mas esta fuga não é total, pois como a angústia é ontológica, de vez em quando você vai dar uma relaxada, ver a cara da chata de sua mulher ou levar um esporro do patrão e ter uma vontade louca de fugir com a vizinha para um lugar nenhum.

Um cara que, sendo menos filósofo do que Heidegger, porém escrevendo mil vezes melhor, e ainda sendo gente boa pacas, era Jean-Paul Sartre. Ouvi um dia destes uma história que ilustra bem o caráter deste que foi dramaturgo, romancista, membro da resistência francesa, prisioneiro dos nazistas e marido não-oficial da Simone de Beauvoir. Ele dava uma palestra em Manaus quando uma ruivinha linda começou a provocá-lo porque ela, sendo muito cristã, discordava do ateísmo proposto pelo francês. Não sei se é verdade, mas dizem que Sartre ficou tão excitado que começou a falar bobagens tipo casamento, ficar no Brasil, e outras coisinhas, até que a Simone o pegou pela orelha e o levou de volta a Paris.

A angústia é central também em sua filosofia, ao menos inicialmente. Mas este sentimento, segundo ele, não é devido ao fato de sabermos da morte. A morte sempre nos pega de surpresa, tal qual uma pneumonia mata um prisioneiro que aguarda a execução. Pelo contrário, nossa angústia nasce da nossa liberdade, pois estamos “condenados a ser livres”. Ninguém, nem Deus, pode nos ajudar em nossas escolhas. A todo momento estamos tendo que tomar decisões que nem sempre podem ser as mais acertadas. Ainda que peçamos conselhos, a escolha é sempre responsabilidade nossa.

É claro que a fuga desta angústia se resolve de maneira semelhante à anteriormente proposta por Heidegger: a saída para a inautenticidade, que Sartre denomina má-fé. Já que o ser humano é um animal que pode mentir, tanto para os outros quanto para si mesmo, ele acaba se convencendo de muitas coisas. Inclusive, por exemplo, de que é feliz no casamento, mesmo que a vida conjugal dele seja uma bosta evidente. Mas isto não impede que a angústia o persiga, uma vez que suas mentiras são transparentes para ele mesmo e, de vez em quando, às três horas da manhã vai dar uma tristeza no coração de matar.

Sartre era meio maluco e recusou um premio Nobel de literatura porque não reconhecia a autoridade do Júri sueco para julgar sua obra e o que queriam, na verdade, era manipulá-lo e calá-lo. Também não se dava muito bem com Heidegger, que lhe escreveu uma carta dizendo que gostaria muito de encontrá-lo para que pudessem “esquiar e dominar a montanha”, como Sartre descreve lindamente no monumental O Ser e o Nada. Sartre nem sequer respondeu. Também pudera. Uma era direitaço e o outro, de esquerda.

Depois Sartre resolveu escrever sobre o marxismo e produziu outra obra gigantesca: Crítica da Razão Dialética. Nela, ele mete o pau nos marxistas de então, que acabaram por transformar determinados aspectos do pensamento de Marx em categorias metafísicas. Por isto o marxismo estava travado. Este é a teoria do capitalismo e só irá sucumbir com a queda deste, mas a inércia e o dogmatismo marxista fazem que ideologias tais como o existencialismo ganhem corpo.

Isto mesmo. Para Sartre, a única filosofia do nosso tempo é o marxismo. Todas os demais pensamentos são ideologias burguesas. Incluindo o existencialismo. Não passam de formas parasitárias que se aproveitam de estar o marxismo temporariamente combalido para influírem na sociedade. Aliás, em cada tempo só há uma filosofia possível, aquela que é crítica de sua época. Todo o resto são maneiras de apaziguar as insatisfações das classes dominadas, ou seja, ideologias.