A PONTE DO PRECIPÍCIO – romance – parte VI

Enquanto se dirigiam para a Escola onde ambos terminariam o estudo fundamental naquele ano, Gilson ruminava pensamentos do seu tempo. Ardia-lhe na língua a vontade de contar do seu namoro com a Miriam, o convite de entrar numa sociedade de amigos e tudo o mais que lhe estava acontecendo nos últimos meses. Sentia mesmo necessidade de partilhar com alguém da família os seus grandes pequenos segredinhos. Em sua opinião, não adiantava conversar com os pais sobre assuntos da vida dos jovens da cidade grande. Segundo ele entendia, não era culpa deles não estarem ao corrente dos costumes da juventude, aqui, no Rio de Janeiro. O que eles entendiam sobejamente era da vida do interior; dos usos e costumes lá praticados; da rígida e sadia educação que os mais novos deveriam ter no trato para com os mais velhos; que o rapaz, ao falar com senhoras e moças, devia fazê-lo com o máximo respeito possível, e nas próprias relações entre eles – os jovens – quando se reuniam. Mas tudo isso não era passado – era seu presente, não esquecera esses valores – porém, amiúde não os praticavam nos tempos atuais. Quem sabe, fosse culpa do próprio avanço astronômico da tecnologia e das ciências, que hoje se verificava, em comparação ao tempo vivido há trinta ou quarenta anos atrás. E mais: tiveram a simplicidade do campo em contraposição da vida agitada dos grandes centros urbanos. Tudo isso o fazia pensar. Se esses valores antigos ainda fossem praticados nos atuais meios de comunicação, dentro da atual conjuntura, junto com o potencial da tecnologia e as novas descobertas das ciências, para gáudio da prática usual de todo o dia, a vida do ser humano faria mais sentido. Talvez, até, ajudaria o homem a entender melhor o homem e, com isso, a diminuir sensivelmente as diferenças sociais, aceitando-se como são e não com o preconceito absurdo de avaliar o ser humano pelo que tem ou pelo que pretende ter. Mas, infelizmente, não poderia ser assim. Os tempos eram outros e o valores também.

No trajeto, até aquele momento, ele nada dissera, senão um “sim”, um “não” ou um “talvez”. Tetê caminhava a seu lado e, como de costume, papagaiava o tempo todo. Falava dos livros que lera; das amigas novas que conquistara e dos professores que se esforçavam para transmitir com o maior proveito possível as respectivas matérias. Gilson, retornando dessa sua viagem que fizera no veículo dos pensamentos, interrompeu a conversa da irmã para dizer:

– Meu círculo de amizades também não se restringe mais aos do bairro ou dos colegas de trabalho. Depois de muito tempo, eu também fiz novos amigos. Agora saio com gente de outras profissões, e isso é muito útil para mim, creio. São todos quase da mesma idade e já aprendi um bocado de coisas novas.

– Cuida para não aprender o que não deve. As amizades são boas e necessárias, até para o crescimento da gente. Mas com elas podem vir coisas que podem destruir o pouco de bom que existe em nós.

– Não tenha medo, minha irmã. Tudo o que eu não quero na vida é complicá-la ainda mais do que já está.

– É assim que se fala Gilson. A gente já tem complicações demais. Falando nisso, o que vamos fazer para dar uma mostra de amor à nossa mãe no dia do seu aniversário, que é daqui uns dias?

– Mas é mesmo! De tanto nos preocuparmos conosco mesmos, nos esquecemos de quem só viveu em função do nosso crescimento e bem estar, dentro do possível. A gente tinha que fazer um almoço melhorado no domingo. Quem sabe, assar uma carne, fazer a maionese que ela tanto gosta e comprar uns refrigerantes? O que você acha?

– Boa ideia! É uma coisa diferente daquilo que estamos acostumados. Assim ela folga um pouco dos seus afazeres (como se isso fosse possível!). Mas não vamos deixar ela fazer nada no seu dia, tá bom? Vamos falar com o Nelson. Ouvir o que ele pensa a respeito.

– Certamente ele vai concordar e ajudar a pagar a conta. Ele é meio esquisito, mas gosta muito da mãe.

– Lá isso é verdade!

Ainda combinaram falar no dia seguinte com o pai e o irmão. Estavam felizes porque antegozavam a felicidade da mãe.

À irmã, que a tudo sempre estava atenta, não lhe escapou o que o Gilson dissera a respeito de novos amigos. Com um risinho de satisfação, mostrou-se curiosa por saber quais eram esses amigos e amigas.

– Ah! Então quer dizer que meu irmãozinho também se está enturmando na vida da cidade! Finalmente sentiu a necessidade de conhecer novos amigos! Mas isso é bom demais! Conheço algum deles?

– Acho que não. São amigos de uma moça que conheci na praia. Se eles me aceitarem, vou fazer parte de um grupo de rapazes e moças que trabalham em escritórios de empresas privadas e de funcionários públicos.

– Tem certeza que é a escolha certa? Não me estou intrometendo nas tuas amizades, mas, é sempre bom a gente se precaver, diz minha patroa, que conhece bem as manias da cidade grande.

– Fica sossegada, minha irmã. Na hora que eu desconfiar de alguma coisa errada, eu salto fora.

– Bem que você faz! Amigos não faltam, mas acho que deve escolher a dedo as pessoas que merecem sua confiança – ... e cada um entrou na sua sala.

Na saída do colégio encontraram-se e foram às pressas para casa, porque nuvens carregadas prometiam chuva.

O dia seguinte, um sábado úmido, com uma chuvinha fina, mas persistente, o rapaz andava de um lado para outro nas ruas do Rio Estava à procura de um presentinho para dar à sua mãe. Foi ao chopping daquela rua para encontrar um presente que fosse do agrado dela, mas, também, coubesse no seu orçamento. Caminhava pensativo pela calçada quando avistou a Miriam, que estava no outro passeio. Quando a viu, parou, esperando que ela o alcançasse. Ela aproximou-se sorridente e pôs-se na ponta dos pezinhos miúdos para depositar um pequeno mas carinhoso beijo nos seus lábios, em forma de cumprimento.

– Você por aqui?

– Pedi dispensa do trabalho hoje de manhã para poder observar melhor essas maravilhas ambulantes que enfeitam as calçadas do Rio, disse, esquivando-se de um tabefinho da namorada.

– ... e encontrou só uma maravilha, disse ela brincalhona.

– Por certo que sim. As outras são todas estátuas ou manequins.

– Assim que se fala! Foi bom nos encontrarmos porque preciso falar com você. Domingo a minha turma vai fazer um almoço para comemorar os cinco anos do nosso grupo. Espero que possa ir e conhecer meus amigos. Eles vão estar todos lá e vão adorar conhecer você. Já falei para eles dos nossos encontros.

– Infelizmente não vai dar. Já combinei com meu pai e meus irmãos um almoço festivo. Minha mãe está de aniversário. Ela tem uma vida muito sofrida e nos dedica todos os minutos da sua vida. É justo e, até, correto, que a gente também lhe dedique alguns mementos, para dizer a ela o quanto a admiramos e queremos bem.

Miriam fez na carinha triste um muxoxo, mas recompôs-se imediatamente com um lindo sorriso, e disse que ficaria para uma próxima ocasião. Via-se nela que estava ansiosa para que todos conhecessem seu – já o considerava assim – namorado. Despediram-se e cada um foi atrás dos seus interesses imediatos.

* *

*

Teria que arrumar-se dignamente. Não tinha roupas de grife, mas as que usava nessas festas deixavam-no bem apresentável. Nada teria a temer quanto à sua apresentação. E, depois, se não gostassem das suas roupas, pouco lhe importava. Sentia-se bem do jeito que era e não era necessário pedir a opinião de ninguém para isso. Sempre se dera bem com a escolha que fizera. Calçados? Comprara um par de tênis bem vistoso numa tenda de um camelô, seu amigo. Não era original, ele sabia, mas quebrava o galho. Ele sabia, também, que não era correto comprar artigos contrabandeados, mas, os preços... esses valores dos artigos originais mais pareciam cobrados por grama, como o ouro. Muitas vezes verificavam-se preços de seiscentos a mil por cento superiores aos dos outros mercados. Os preços dos comerciantes informais eram para pobre nenhum botar defeito e, pelo menos aparentemente, ninguém notaria a diferença. Outra coisa preocupava o Gérson. Havia, também, o compromisso caseiro, cujo fato era inédito na sua casa. Não podia esquecer de voltar cedo para casa. Tinha a festinha doméstica. Uma homenagem, aliás, muito justa, à sua mãe. Era o aniversário dela. Coitada! Carregava, por assim dizer, a família inteira nas costas e nada cobrava por isso, só amor. Cada peça de roupa que ele usava, passava pelas mãos caprichosas dela; a comidinha quente que o esperava altas horas da noite quando voltava do serviço, era ela que preparara. Não falando nem dos carinhos e do permanente sorriso e bom humor que lhe eram peculiares, fossem quais fossem as adversidades que residiam no seio da sua família. Ah! Isso não tinha preço! Chegar cedo em casa para, no domingo, levantar bem humorado, era o mínimo que poderia fazer.

Tomou banho, vestiu-se, perfume a gosto, bem penteado e com cara de festa. Já seriam mais de oito horas. Antes de sair de casa falou para a Tetê que voltaria cedo, lá pela meia noite. Tomou o ônibus no ponto e foi para a tal festa. Festa de quê? Não sabia.

Já era esperado no barracão, onde se ouvia um vozeio animado e gargalhadas em altos decibeis. De um canto da grande sala vinha o odor convidativo de carne assando na grelha. Mesas estavam sendo arrumadas por algumas senhoras. Bebidas corriam soltas e fartas. O amigo Jorge, como que avisado da sua chegada, veio recebê-lo à porta de entrada. Animado, com um copo de cerveja na mão esquerda, veio com a destra estendida para cumprimentá-lo.

– Seja bem-vindo. Pensei que não vinha. Já estamos quase tortos de falar e de rir. Segue-me. O patrão ocupa uma mesa dos fundos. Então, está curioso para saber por que o convidei?

– Certamente. Porque somos amigos, presumo, e porque simpatizou comigo. Gosto de festas. Encontra-se sempre novas pessoas e aprende-se a conviver em sociedade.

– ... e porque tenho novas coisas para lhe apresentar, emendou o amigo. Venha comigo.

Caminharam ao longo de colunas e mesas e de pessoas – algumas delas jovens e outras não tão jovens, de ambos os sexos, bebendo. Por fim, a um canto da enorme sala, onde as luzes deixavam certa obscuridade, havia quatro homens já sentados a uma grande mesa recoberta por uma toalha vermelha. Jorge apresentou-os como sendo o chefe e seus auxiliares.

– Vamos ocupar essa mesa do canto. Ficamos mais à vontade para por nossa conversa em dia.

Nelson, educadamente, pediu licença aos que lhe foram recém apresentados, para dirigir-se à mesinha indicada. Sentaram-se e o amigo Jorge pediu logo uma cerveja e mais um copo.

– Você toma cerveja, não?

– Sim. É a única bebida de álcool que me cai bem. Uma vez experimentei um gole de cachaça e me engasguei de quase perder o fôlego. Nunca mais pus esse fogo na boca.

– A primeira vez é sempre difícil. Eu tomo pinga, mas é uma antes do almoço e outra antes da janta, e é só. Nas festas tomo só cerveja.

– Pra falar a verdade, a gente toma bebida de álcool mais por costume, eu acho. Não por gostar ou porque ela ajude a recompor forças ou coisa parecida.

– Para mim é uma forma de preencher o tempo, enquanto a gente bate um papo, seja no bar, em festas ou em casa.

– É mais ou menos isso. Nunca tomo demais. Tomei uma vez um porre, quando era mais novo. Fiquei ruim, além de ter levado um sermão “daqueles” do meu pai. Acho que perdi a graça de embriagar-me. Não fumo durante a semana, mas, o que gosto de fazer em festas é fumar um cigarro de vez em quando. A propósito, vendem cigarros aqui?

– Vendem, sim. Tem preferência por alguma marca?

– Não. Como diz meu pai: “é só pra fazer fumaça mesmo!”.

Jorge falou alguma coisa para o rapaz que servia as mesas. Não demorou muito ele voltou e entregou uma carteira de cigarros fechada e uma caixa de fósforos ao visitante, dizendo que era brinde da casa. Nelson agradeceu, abriu o maço de cigarros, ofereceu um para o Jorge e pegou um para si. Fumaram, enquanto tomavam aos golinhos a bebida e jogaram conversa fora, como verdadeiros amigos.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 20/10/2009
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T1876565
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