A PONTE DO PRECIPÍCIO - romance - parte XII

Tetê apaixonou-se pela matéria. Entre outros livros, pegou emprestado da dona Margarida, “O Céu e o Inferno”. Depois dessas conscientes leituras, seu entendimento começou a se abrir e gostou do que entendeu. O espiritismo, como sempre ouvira falar, era coisa do demônio, mas, agora, que começara a entender a lição, nada do que falavam, sem ter lido coisa alguma sobre a grande verdade, era certo. Começara a entender. Todos os que se diziam cristãos falavam mal do espiritismo porque nenhuma religião permitia aos seus seguidores que o entendessem, por não aceitarem verdades que não fossem as suas, que ensinavam como absolutas. Segundo entendeu, ele não era uma religião e sim, uma filosofia que explicava, cientificamente, as palavras que o Cristo proferiu quando da sua passagem aqui pela terra. Essa doutrina nada mais era que a explicação daquilo que Jesus tentou ensinar ao povo judeu, e o fez em parábolas, para não confundir as conclusões retrógradas daquele povo ainda atrasado, que nada entendia da espiritualidade, apesar de acreditarem em um só Deus. Segundo aprendera durante as palestras, quando acompanhava sua patroa à Casa Espírita, era a decodificação das parábolas para que o povo, hoje bem mais evoluído, pudesse compreender. No princípio, os evangelistas transportaram essas parábolas para os livros sagrados que formaram a Bíblia. A Bíblia é o livro sagrado da palavra de Deus. É certo, pensava ela, que seja respeitada como tal, mas que também seja entendida. Mas ela não foi analisada e entendida à luz da razão por nenhuma das seitas religiosas existentes. Todas elas, cada qual à sua maneira e/ou conveniência, tomaram os termos bíblicos como irrefutáveis. Agora ficou bem claro em sua mente que esse tal de Allan Kardek, que é um espírito iluminado e enviado por Deus, que o fez reencarnar na terra para tal finalidade, com o auxílio dos espíritos superiores “trocou em miúdos” essas citações da Bíblia. Agora as parábolas do Cristo são do entendimento de qualquer pessoa e constam do livro do “Evangelho Segundo o Espiritismo”.

Se Tetê ficou satisfeita com essa nova conquista, qual seja a de entender satisfatoriamente sua religiosidade, por outro lado ficou triste. Encheu-se de alegrias pelo fato de não precisar mais imaginar um deus carrasco, que se vingava das almas dos seres humanos pelos pecados cometidos ao infringirem-lhe as leis, mandando-as para o inferno, donde nunca mais sairiam; ficou triste, porque, ao passar em revista seus conhecimentos – ainda pequenos – sobre a espiritualidade dos seres humanos que se dizem cristãos, ouvia deles sua ignorância de não saberem por que, tendo uma alma imortal, estão exilados neste globo terrestre. Não sabem, por exemplo, quem são, donde vieram e para onde vão. E, o mais curioso é que, obstinadamente, rejeitam a fonte que lhes daria esses conhecimentos. Ainda mais curioso é o fato de, por orgulho ou conveniência, cada qual, com sua Bíblia nas mãos, quer estar de posse da verdade absoluta, sendo que Deus colocou o orgulho e a discriminação feita ao próximo, como origem de todas as infrações à sua Lei. Perguntava-se, em suas meditações, onde estaria o amor ao próximo, se todos se rejeitam e, até, detestam, por serem adeptos de outra religião, de outro partido ou por que são mais pobres ou mais ricos?

Tudo isso a confundia ainda. Não podia entender que, sendo todos criados para conseguir, no final da sua jornada, a felicidade eterna, punham esses obstáculos no seu caminho, a ponto de obstruírem sua razão com vistas ao entendimento da grandiosa obra do Criador. Entendia que, se todos fizessem uso da sua inteligência, acabariam descobrindo o verdadeiro sentido dos ensinamentos do Cristo, quando encarnado nesta terra.

A jovem sentia que a sua participação na família não era em vão. Já se tornou até um dito popular que nada acontece sobre a face da terra que não tenha uma finalidade específica. Não sabia definir o que fosse, mas tinha a intuição de que uma grande missão estava reservada para ela. O fato de gostar tanto das revelações que tinha recebido através da família onde trabalhava e, pelas circunstâncias que obrigaram seu pai sair do interior para a cidade; logo nos primeiros dias de aula, dona Margarida, entre tantas crianças pobres da escola onde começara a estudar, a escolhera para lhe fazer companhia e partilhar com ela seus conhecimentos, tudo isso lhe pareciam sintomas claros e evidentes. Não se sentia uma empregada doméstica naquela família. Ajudava na arrumação da casa justamente porque todos a tratavam como se fizesse parte dela. Dona Margarida comprava-lhe roupas, calçados e dava-lhe outros mimos. Era como se fosse realmente uma filha. Poderia ser alarme falso ou presunção de sentir-se assim, mas Tetê tinha a nítida impressão de que estava sendo preparada por alguma força invisível para a missão que lhe viria no futuro.

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Nelson vivia sua vidinha de sempre. Tinha boa índole e, por isso mesmo, não era do seu feitio e não queria envolver-se mais em situações de que arrependimentos amargos e preocupações lhe sobrassem mais tarde. Não tendo ambições de riqueza, contentava-se com o que ganhava. Se lhe viesse ao encontro uma oportunidade, é visto que a seguraria com ambas as mãos. Mas, enquanto essa não aparecesse, continuaria no seu atual serviço. Acreditava firmemente em Deus e no ditado popular que diz “o que é do homem, o bicho não come”. Portanto, não havia o que temer. Certo é que, com o que ganhava no seu empreguinho de ajudante de pedreiro não poderia nem pensar em constituir sua própria família. Talvez por causa disso não pensasse ainda em namorar sério, com vistas ao casamento. Mesmo porque não achara a moça certa para ser sua companheira de todos os dias. Observando o vai e vem do mundo feminino com quem mantinha contato, Nelson não se animava muito. Culpava-se, às vezes, por ser exigente demais porque, talvez, estivesse fora dos costumes do seu tempo, ou porque queria, quem sabe, moldar sua futura companheira no manequim representado por sua mãe. Via nela a perfeição. Era uma mulher ainda bonita, apesar dos seus quase cinquenta anos e de ter vivido na pobreza toda a sua vida; era uma mulher que se conservara fiel aos seus princípios e que, por isso mesmo, não faltara um dia sequer aos seus deveres de esposa, de mãe e de dona de casa. Ele bem sabia que os tempos eram outros; que a maioria das moças deste tempo atual trabalhava fora e fazia a sua própria independência. Não queria ir contra as conquistas da mulher, voltando a se situar nos costumes praticados ainda na primeira metade do século passado. Isso seria negar o seu tempo, mas, de qualquer forma, queria encontrar uma mulher com quem viveria, quiçá, o resto da vida, que fosse meiga e amiga e que conservasse um cunho de moral em suas atitudes, apesar das conquistas do seu tempo. Primeiro queria que a vida falasse por ele quanto a se situar nela, garantindo-lhe um futuro mais ameno que o de seus pais. Tinha tempo. Ainda não era tão velho que precisasse desesperar-se e fazer tudo às pressas, se bem que, às vezes, imaginava que daria um alívio para seus pais, assumindo a sua própria vida. Mas, como sempre mantinha os pés no chão, tinha por norma nunca dar um passo do qual não tivesse certeza que resultaria uma ação acertada.

Com essa maneira de encarar a vida, continuou a segui-la passa a passo, na maior normalidade possível. Abrira uma poupança e nela guardava todos os meses uma pequena quantia, retirada do seu parco salário. Certo que não sobrava muito para poupar, mas, um dia, chegaria lá! Não deixou, porém, seu velho costume de lado. Quando possível, passava no seu amigo para saborear uma cervejinha, enquanto trocava ideias com o dono do bar. Certa feita este lhe disse que o Jorge havia perguntado por ele.

– Sabe o que ele quer comigo?

– Não, não disse. Só falou que precisava falar com você.

– Ele sabe a que horas estou aqui. Já nos encontramos várias vezes. Se for importante o assunto, ele sabe onde me encontrar.

Para o amigo que lhe dera o recado, o caso ficou no esquecimento. Mas o Nelson, enquanto subia o caminho do morro para ir para casa, ficou se perguntando o que o Jorge queria com ele. Boa coisa que não era! – pensou. Será que queria fazer uma segunda tentativa para levá-lo ao local daquela “festa”? Se fosse isso, podia tirar o cavalinho da chuva, pois ele não iria mesmo! Tinha muito mais coisas para fazer para seu entretenimento. Mais uma coisa: não gostara nadica de nada do jeito que eles se comportaram naquele pavilhão. Muita gritaria e modos pouco recomendáveis para jovens que se queriam divertir. Até pareciam todos, não só bêbados, mas drogados, tanto os rapazes como as moças. Nada tinha a ver com isso, mas, participar dessa baderna, isso já era outra coisa. Melhor ficar fora dessas orgias para não se acostumar e, pior, quem sabe, viciar-se. E isso seria o fim do mundo! Já não ganhava “essas coisas” de salário e, viciar-se de graça numa coisa que o levaria a gastar mais do que ganhava? Segundo ele sabia e ouvira falar, e mais, o que todos os dias ouvia no noticiário em seu radinho de cabeceira, os viciados em drogas roubam e, até, matam para sustentar o vício.

Isso foram pensamentos que passaram pela cabeça do Nelson e como vieram também foram embora. Quando chegou em casa já nem se lembrava mais. Manteve a sempre conversa amistosa com os pais e os irmãos, que naquela hora já estavam todos em casa, tomou seu banho, jantou e foi deitar-se.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 26/10/2009
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T1887394
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