A PONTE DO PRECIPÍCIO (romance – parte XVI)

Há tempo não se via tanta felicidade naquela casa. Duas mulheres de pronto saltando das cadeiras que as acomodavam na cozinha, como se fossem expelidas delas pela força de uma catapulta, dançavam alegremente. Não se lhes via mais os rostos macerados pela dor; não mais os corações oprimidos e chorosos; não mais o silêncio externo, embora por dentro, um vulcão em erupção expelia as nuvens cinza da tristeza; não mais a desesperança e sim a certeza do retorno a seus braços do filho e do irmão.

O telefonema recebido restituiu-lhes a piedosa e verdadeira face de Deus que as incentivou ao agradecimento. Ambas, após o primeiro momento de euforia, acontecido pela certeza da preservação da vida do Nelson, ajoelharam-se ali mesmo no assoalho e oraram, primeiro, para agradecer ao Criador a tão grande dádiva da vida, e, em seguida, pedindo a Ele o pronto restabelecimento do rapaz. Que maravilha! Agora viria outra maratona de ansiedades para aguardar seu retorno ao convívio do lar. Dona Bina, depois dos primeiros instantes, quedou-se em meditação. Deu-se conta que já raiava o dia seguinte – portanto, mais de vinte e quatro horas de vigília. Ela e a filha nenhum alimento ingeriram até o momento, a não ser a água que lhes matara a sede e a fome. Não sentiam fome. Neste período somente se preocuparam com as notícias, que se fizeram ralas como a sopa de pedra. Notou que agora, com a certeza de que veria vivo novamente o filho querido, essa necessidade fisiológica se fizera presente. Levantou-se e disse à Tetê que iria fazer um bolo de chocolate, tanto do gosto do Nelson, para comemorar sua volta. Misturou os ingredientes e despejou a massa na forma; esquentou o forninho e nele depositou-a carinhosamente. Seria o bolo mais apetitoso que já fizera em sua vida. Enquanto o calor do forno fazia a sua parte, um café bem forte e doce com mistura, fez revigorar os corpos e os ânimos, além de matar-lhes a fome que, agora sim, cavava buracos no abdome das duas mulheres nessa aurora/manhã.

* *

*

Já eram oito horas do terceiro dia. Nelson recebeu alta do hospital. Uma vez no carro para o retorno à sua casa, só trivialidades foram ditas. Seu Miraldo e o Gilson nada perguntaram com medo, talvez, de ouvirem uma confissão de culpa, talvez, por parte do moço, sempre tão ordeiro e justo. Este, adivinhando-lhes a aflição, falou pausadamente:

– Vocês devem estar loucos para saber o que aconteceu comigo. Já que esperaram tanto, não custa esperar mais meia hora até chegarmos em casa. Vou contar tudo a todos, para não precisar repetir a mesma história três ou quatro vezes. Pode ser?

Apesar da curiosidade que lhes roia o rodapé da alma, disseram ao mesmo tempo:

– Pode.

– Fui internado como indigente por não ter documento algum comigo. Não sei como foram desaparecer do meu bolso, aliás, depois de perder os sentidos, de nada lembro até acordar naquele lugar. Quando acordei, chamei a enfermeira para saber que lugar era aquele, e ela me informou que eu estava num hospital. Ela saiu e voltou com o médico. Ele me perguntou qual era o meu nome, e eu disse. Quando me perguntou se eu tinha algum telefone para contato, eu não lembrei, na hora, o número do celular da Tetê. Ele, talvez, achando que eu não estava bem, me fez dormir outra vez. E foi assim que vocês me encontraram.

– Mas você foi assaltado? – perguntou o Gilson.

– Em casa ...em casa, lembra?

– Está bem! É que a curiosidade é demais.

Ficaram em silêncio quando o carro começava a subir o morro rumo ao bairro Tabajara.

À frente da casa um pequeno comitê de recepção. Senhoras, crianças, um ou outro rapazote ...e a mãe e a irmã. Quando a porta do carro abriu, literalmente dona Bina e Tetê voaram para cima do Nelson. Abraços, beijos, lágrimas e gritinhos de alegria. Já passava das dez horas. Depois de quase terminarem o serviço dos assaltantes de dois dias antes, no rapaz, ladeado das duas mulheres, que se engancharam em seus braços, após cumprimentar os conhecidos e lhes dizer que estava tudo bem, entrou com a família para dentro de casa. Com um profundo suspiro de alicio, sentou-se numa cadeira e disse:

– Finalmente estou em casa!

– Conta para nós o que te aconteceu – disse-lhe a mãe, puxando uma cadeira para perto dele e afagando-lhe os cabelos cacheados.

– Se a senhora me permite quero primeiro tomar aquele cafezinho de mamãe. Lá no hospital mesmo me lembrei do café que a senhora faz.

– Seu pedido é uma ordem. Sai já. Tem água quente e pó esperando para ser escaldado!

Pegou o bule e o saco de coar e, colocando nele duas colheres de pó, começou a despejar a água fervente. Num instante estava pronto um café fumegante, encorpado e saboroso de que todos os presentes partilharam. Como estavam sentados em torno da mesa, a Tetê trouxe o bolo feito ainda de madrugada e colocou-o em cima dela. O bolo naquela casa era artigo de luxo, por isso, um prêmio, ou uma homenagem, para qualquer um da família que tivesse méritos para tanto. Enquanto comiam esse quitute da culinária da dona Bina, não poupando elogios ao sabor e à qualidade que ela imprimia em todas as iguarias que preparava, o Nelson começou com o “relatório” que todos esperavam com ansiedade... e o escutaram em silêncio.

– Pois bem. Eu vinha subindo e resolvi chegar no bar do Mauro tomar minha única latinha e conversar um pouco. Estava lá aquele cara de quem já falei para vocês em outra ocasião – o daquela festa.

– Brigaram? – perguntou dona Bina, mal se contendo calma.

– Não brigamos, discordamos apenas de leve. Ele me fez ver que deveria voltar àquele barracão para falar com o “chefe” dele e eu disse que não tinha tempo para ir. Foi só. Quando saí o dono do bar me disse que o cara saiu furioso. Mas eu não tenho culpa dessa zanga. Nada disse de ofensivo, que me lembre. O Jorge ficou brabo de graça. Decerto eles têm outros planos que não seja só a amizade. Só pode ser isso! Pensei nisso diversas vezes. Aquele cigarro – duvido que era um simples cigarro de palha – oferecido pelo tal “chefe”, deixou-me encucado. Enquanto, inocentemente, eu pensava que caíra nas boas graças daquele sujeito, ele pensou que eu era ingênuo o suficiente para fazer-me um escravo do vício ou coisa pior. Só pode ser uma coisa assim! Pensei nisso muitas vezes e prestei atenção nas conversas quando, numa roda, falavam sobre o assunto.

Nelson fez uma pequena pausa, enquanto mastigava seu pedaço de bolo.

– Mas continue! O que aconteceu depois? – insistiu o pai.

– Saí do bar e vinha para casa. Quando cheguei naquela esquina logo ali em baixo na outra rua, onde não tem lâmpada no poste e está escuro já faz tempo, vi dois vultos aproximarem-se. Recebi uma paulada na cabeça, pelas costas, e caí. E começou a festa. Chutes, pontapés e pauladas. Erguiam-me do chão e me soqueavam e me jogavam contra o piso da rua outra vez, até que perdi os sentidos. Só acordei já era dia claro. Devia ser umas sete e meia, pois estavam servindo o café aos doentes. A enfermeira saiu e voltou com o médico, que me fez dormir de novo. O resto vocês sabem melhor do que eu.

– Será que foi o tal Jorge que fez isso em você? – falou o Gilson. Precisamos dar um chego nele, não acha?

– Olha, eu não sei se é correto isso. Pode muito bem ter sido um assalto, pois levaram tudo o que eu tinha nos bolsos – carteira, documentos e o pouco dinheiro que estava na carteira.

– Mas isso pode ter sido um truque para aparentar roubo o que foi, na realidade, uma lição ou um aviso. Não pode? – falou reflexivamente seu Miraldo.

– Pode, pai, mas não temos certeza disso e, por isso, não podemos nos precipitar. Acho melhor que deixemos tempo ao tempo para que ele resolva a coisa da melhor maneira.

– O pior e imediato, é refazer todos os documentos. Dá uma correria! – disse a Tetê, referindo-se à burocracia que o irmão teria que enfrentar.

– Por isso que eu sempre digo que o homem tem que ser previdente – falou com certo orgulho, o Nelson. Levantou-se e foi para seu quarto voltando com um embrulho na mão. – Aqui estão os meus documentos originais. Os que os bandidos levaram eram fotocópias plastificadas.

– Parabéns, me filho! Você sempre disse que a gente tem que se prevenir e, pelo que vejo, pôs em prática.

– É, como diz o Chico Anísio, “quem guarda, tem”!

– Bem, com essa dor de cabeça a menos, o que acham de a gente retomar a vida normal a partir de amanhã?

– Está bem pai, vou ao trabalho como se nada tivesse acontecido. Mas eu tenho um amigo que é inspetor de polícia e Advogado. Ele pode me orientar quanto ás atitudes a serem tomadas, mesmo porque, talvez indique alguma coisa que sirva de proteção para o futuro.

– Bem pensado. Os homens da lei devem saber o que se faz de melhor num caso desses. Se você tem certeza que ele é um homem bom e um profissional correto, fala com ele. Digo isso porque a gente sabe que existe muito pessoal da polícia que atira para os dois lados.

O restante do domingo correu, com o alívio de toda a família, em grande harmonia. No fim da tarde, por ser domingo, a Tetê sugeriu que fossem à capela do bairro para agradecer a Deus pelos benefícios e graças obtidos. A proposta foi aceita de boamente por todos, e foram assistir ao culto católico que, naquele bairro, era oficiado em noites de domingo.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 30/10/2009
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T1895377
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