A PONTE DO PRECIPÍCIO - romance - parte XVII

A conselho da filha, Miraldo, cada vez que saía para o seu trabalho fazia uma prece pedindo a proteção divina. Dizia ela que, quando se sai de casa por qualquer motivo e, ainda mais para trabalhar, a gente deve pedir a proteção de Deus e oferecer o seu dia de trabalho para que Ele o abençoe e dê proteção na execução dele. Ele não era lá muito das coisas de beatice, mas, também, nada tinha contra a oração. Pensando melhor, se existe Deus que criou a alma, também e certamente, será seu protetor. Nada, pois, lhe custava acostumar-se nessa prática. O certo era que confiava na proteção dos seus santos e, por conseguinte, na do Divino.

Era segunda-feira e, portanto, um dia de trabalho que prometia ser de bastante gente para ser transportada de um lado a outro da cidade. Só esse pensamento já lhe levantava o ânimo. Bastante trabalho era sinal de dinheiro. E é dele que precisava para endireitar sua situação financeira. No momento só queria o suficiente para que a família não passasse necessidades. De certa forma, juntando as sobras dos ganhos conseguidos com o trabalho dos filhos e do seu, conseguiam até equilibrar a situação, mas nunca sobrava algum dinheiro para um extra. Seus desejos, nada extravagantes, resumiam-se numa viagem que queria fazer para o interior, onde ele e a mulher deixaram muitos amigos; em comprar um aparelho de televisão novo, pois o que tinham estava já velho, comprado que foi numa loja que vendia coisas usadas e, portanto, com muitos anos de uso. Mas mesmo essas pequenas coisas por ora ainda lhes eram negadas. Outro desejo que alimentava há mito tempo era visitar as suas origens – o nordeste, donde ele veio ainda muito jovem. Fugira da seca e de suas conseqüências, indo morar no interior do Rio de Janeiro porque lá encontrara trabalho, sempre na esperança de ser alguém bem sucedido na vida.

Sempre teve a esperança de ganhar uma boa bolada na loteria, em cuja sorte apostava há alguns meses. Mas como lhe dissera seu colega de trabalho, que há mais de vinte anos apostava na loteria sem ter ganhado nenhum prêmio que valesse sequer o trabalho de apostar, “essas coisas são feitas só para os ricos”. E ele acreditava nisso, pois, com tanta gente apostando, com uma ou duas apostas por semana nada se poderia esperar. Os outros, os ricos que têm dinheiro sobrando, fazem bolos ou apostam individualmente mais de cem bilhetes em cada edição das loterias, pensava ele, por isso eles têm maiores chances. Mas, continuava matutando com suas filosofias: o que é do homem o bicho não come! Se era para ele, dia viria de isso acontecer! E foi fazendo o seu trabalho, que, aí sim, o rico dinheirinho, ainda que pouco, estava garantido. Agradecia a Deus todos os dias que tiveram a sorte, ao se transferirem para a cidade, onde todos – e com relativa facilidade – arranjaram emprego com carteira assinada. Na construção civil, se o operário era bom e trabalhador, quando terminava uma obra o empreiteiro já tinha outro prédio para construir, e os trabalhadores continuavam com ele. Pelo menos até hoje, nunca faltou serviço, nem para si e nem para os filhos. Por isso a vida que levavam não era de extrema pobreza, como teve o desprazer de acompanhar a lida de diversas famílias desde quando viera morar no Rio. Tem que trabalhar duro sim, mas, graças a esse trabalho, podiam forrar o estômago com coisas baratas e triviais, mas sólidas e nutritivas. Convivera com muitos, e ainda estava convivendo, que quase nem tinham o suficiente para comer, quanto mais, casa para morar e outros artigos de consumo imediato, necessários a uma vida mais descente. Era, por certo, porque não se esforçavam o suficiente no serviço de aprendizes de todos os macetes daquilo que faziam. Mesmo não tendo grande estudo poderiam aprender, no dia-a-dia do trabalho, as coisas mínimas para realizá-lo bem.

Enquanto assim monologava, veio mais um freguês e mais outro e outros tantos. Seu dia foi, como o previsto, de muito trabalho. Estava satisfeito quando, perto da noite, seus clientes concederam-lhe uma trégua. Deixou a porta do carro aberta para passar um pouco de ar. O calor fizera-se excessivo naquele dia. Sentiu fome. Dirigiu-se para um bar do outro lado da rua para comer alguma coisa. Era quase central a rua e de grande movimento, onde se localizava seu ponto. Por ser relativamente estreita, do bar poderia ver perfeitamente seu táxi. Pediu um pão com margarina e uma média de café com leite. Satisfeito, pagou o lanche e antes de voltar para o carro passou na lotérica ao lado para conferir o bilhete da semana. Este era um gesto quase mecânico: todas as semanas dava-se um tempinho para conferir sua aposta. Se essa prática era a de todas as semanas, também já se acostumara a verificar que fizera, no máximo, três pontos. Já nem ficava triste por causa disso. E desta vez não seria diferente. Mas esta mania de conferir os jogos que fazia, tinha seu lado bom: não ficava só pensando no trabalho ou se questionando com coisas menores enquanto esperava alguém para transportar. Esse gesto era como que uma terapia que lhe fazia lembrar o dito popular: “enquanto o chicote sobe e desce, as costas folgam”.

Tomou o bilhete na mão e, quando levantava os olhos para verificar os números na tabela colada na parede, um amigo cutucou-lhe o braço para perguntar se não era seu o táxi que saía do ponto naquele momento. Enfiou o bilhete novamente no bolso da calça e olhou na direção apontada. Nem agradeceu ao denunciante, tamanho foi o susto que levou. Saiu correndo na direção do carro que partia, mas já era tarde.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 31/10/2009
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T1897075
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