A PONTE DO PRECIPÍCIO - romance - parte XVIII

Aos gritos chamou o guarda que passava no momento, dando conta de que seu táxi fora roubado naquele momento.

– Diga-me o número da placa e alguma característica do carro, por favor.

Meio choramingando e quase aos berros, Miraldo deu a placa e disse:

– Era quase novo – ano 2003. Não tinha machucado algum. Estava limpo e bem conservado.

– O senhor tem que ir à delegacia mais próxima fazer o BO. Enquanto isso já vou alertar meus colegas pelo rádio. Fica sossegado que vamos fazer o possível para recuperar seu carro.

– Se não for encontrado o carro do patrão vou ter que me matar. Não tenho dinheiro pra pagar o prejuízo dele – disse o homem, proferindo essas barbaridades em desespero de causa. Falou-as mais para si mesmo que para o guarda; palavras que refletiam plenamente sua angústia. Dirigiu-se à delegacia e fez sua parte – o boletim de ocorrência. Aconselhado pelo funcionário que o atendeu, vendo o desespero do pobre homem, voltou para casa. Era para retornar no outro dia saber das notícias.

Dona Bina, ao ver o marido chegando em casa a pé e com cara de cachoprro velho que apanhou e não teve forças para reagir, assustou-se. Mil maus pensamentos lhe atormentaram a cabeça.

– ...será que mandaram meu homem pra rua? – foi o primeiro pensamento que teve. (...) Ou, quem sabe, estragou o carro e deixou-o na oficina para consertar. Menos mal. Essas coisas acontecem!

Miraldo chegou voltou para casa de cabeça baixa e nem olhou para a mulher. Foi direto ao banheiro e de passagem pelo quarto, pegou roupa limpa. Tomou banho e, quando tirou os documentos dos bolsos da calça, encontrou seu bilhete da mega-cena. Mecanicamente pegou a carteira e enfiou o bilhete dentro e guardou a carteira no bolso. Agora mais calmo e com capacidade de raciocínio, foi para a cozinha e pediu para a mulher sentar e ouvir sua história.

– Pois é a pura verdade isso que te contei. Não diz o povo que o diabo não caga em monte pequeno? Ontem mandaram meu filho pro hospital; hoje roubaram a ferramenta de trabalho, que nem minha era! É pra acabar!

– Mas como assim? Roubaram ele do ponto?

– No fim do expediente eu senti fome. Como só ia comprar um sanduíche naquele bar do outro lado da rua (lembra?), deixei a porta aberta para pasar um pouco de ar na carro e corri para lá. Foi o tempo suficiente para o meliante, que certamente já estava de tocaia, entrar, fechar a porta, fazer a ligação e sair faceiro como criança que ganha um brinquedo novo.

– Ainda bem que não pegaram você durante alguma corrida. Iam matar você, certamente.

– Dos males o menor. Mas como eu vou pagar o carro pro patrão? Me diga!

– Depois a gente fala com ele; explica o caso e vê o que ele vai dizer. Não acha que não se deve sofrer antes da hora?

Dona Bina mostrou-se uma mulher forte – na aparência – embora por dentro o coração dela estivesse tremendo de incerteza. Um dó muito grande sentia ao ver o seu Miraldo daquele jeito. Como Deus poderia permitir que lhes acontecessem tamanhas barbaridades? Comparando a sua família com outras que conhecia, julgava que eles viviam de conformidade com a moral e os bons costumes, talvez melhor que muitas dessas. Quanto à religião, não se poderia dizer que demonstrassem ser os melhores cristãos da paróquia, mas também, não eram os piores!

– Na delegacia lhe deram alguma esperança?

– Aquela conversa mole de sempre: que iam fazer o máximo esforço para recuperar o meu táxi etc. etc. etc..

– A gente tem que entender que não é o único carro que é roubado na cidade. Com o Rio, grande como é, devem ser milhares por dia.

– Sei muito bem disso. Por isso mesmo que já estou preparando meu espírito para o pior. Nenhuma esperança tenho de recuperar porra alguma – disse o Miraldo com certa entonação de raiva. E depois emendou: – desculpe o desabafo!

– Vai dar tudo certo. Você tem que se acalmar. Vai ver que amanhã vai ter boas notícias.

Assim profetizando, dona Bina foi fazer seu serviço doméstico.

* *

*

Gilson continuava sua vidinha de sempre. Agora estava mais agitada que nunca. Sua paixão por Mirian crescera em arroubos românticos e vida sexual intensa. Não a ponto de atrapalhar sua vida profissional, pois necessitava do trabalho para fazer frente às despesas, cada vez mais volumosas. Poderia se dizer que ele estava começando a amá-la, não sua alma, pois não a conhecia suficientemente para fazer dela sua companheira “para o resto da sua vida”, como se referiam os antigos, falando do casamento. Este era um amor mais liberal, porquanto adorava o seu jeito de ser, extrovertida e alegre. Parecia que a moça vivia em perene felicidade, e o que era mais importante, transmitia essa alegria para todos quantos com ela privavam o dia-a-dia. Talvez fosse até uma fuga, o de amar o estado de espírito da jovem, em vez de amar os valores morais, porquanto, antes, ele fora um rapaz introvertido, mas ele não sabia disso e nunca lhe passara pela ideia tal filosofia. Sentia-se bem sendo paparicado por uma mulher que, além de jovem e linda, pertencia à classe média. Sua família não tinha grandes posses, mas, o pai dela era médico, segundo ela, de certa projeção no âmbito da medicina. Ainda não conhecia sua família, assim como ela também não conhecera, até o momento, os pais dele. Esse fato não os apavorava. Era um casal modernamente feliz e o fato de não terem ainda sentido a necessidade de conhecerem as respectivas famílias, em nada interferia em suas relações. A liberdade de que desfrutavam quando juntos era o máximo que poderiam desejar. O mais importante para eles era de essa relação não interferir no trabalho do outro. Ela sabia que ele era servente e pedreiro e ele, da mesma forma, sabia que ela era estudante e trabalhava em uma empresa que prestava serviços de informática. Só isso. O resto deixavam correr ao sabor do acaso. Cada vez mais ele sentia necessidade de comunicar-se com ela e, quando possível, estar com ela. Para suprir parte dessa necessidade o rapaz comprou um aparelho celular de segunda mão, mas, ainda em perfeitas condições e uso. Agora, com esse meio da moda em comunicação à distância, os dois seguidamente estavam em contato.

Era sábado e Gilson não via a hora de tomar o ônibus para o centro. Combinara com a Miriam lá encontrar-se para tomar outro que os levaria à praia, ou mais precisamente, para o seu cantinho preferido. Ficava distante alguns quilômetros para o sul, numa região que exalava o cheiro verde do interior e, por isso, pouco procurada pelos banhistas. O fato de ser essa beira de mar pouco povoada devia-se ao terreno acidentado que, por essa razão, pouco espaço oferecia para “gozar a praia”. Sobressaíam-lhe em plena areia, quase alcançadas pelas ondas, enormes pedras. Mas isso vinha a calhar. Servia de esconderijo e lazer ao mesmo tempo. Sentiam-se à vontade naquele lugar, não precisando esconder-se para dar larga aos seus apetites libidinosos. Se no grande Rio se sentissem dois jovens amantes num universo de casais com os mesmos apetites, a quem ninguém botava freios nem defeitos, ali, naquele cantinho de mar, sentiam-se livres, sem fiscais e sem vigilantes.

Ao embarcarem no ônibus que os levaria ao seu destino, a Miriam perguntou:

– Está levando aquilo que combinamos?

– Depende a que você se refere... disse ele com um sorriso maroto.

– Bobinho! Alguma coisa para nós comermos na praia.

– Está tudo na sacola, dentro da minha mochila. Não falta nem a coca.

– Olha, ali no meio tem um banco vago, vamos sentar? O trecho é longo e as mochilas pesam.

– Vamos – disse ele, e acomodaram-se confortavelmente no banco indicado.

Depois de um sobe e desce de colinas que lhes pareceu não ter fim, estavam finalmente na sua praia preferida.

– Vamos direto para aquela espécie de gruta formada por aquela rocha grande. É perto da água, mas a maré só vai subir perto da noite. Não tem perigo.

– De acordo. Lá dá pra gente descansar e comer o lanche na sombra.

Arrumaram suas coisas sobre o banquinho que a mãe natureza lhes disponibilizou, talhado na pedra; tiraram a roupa que era demais para a ocasião e saíram correndo pela areia afora, feitos duas crianças soltas na praia, tendo as marolas por testemunhas. Quando cansaram desses folguedos, suados e com o corpo coberto de areia, mas felizes, mergulharam nas águas azuis daquele enorme lago salgado que, tanto banha as costas brasileiras, como também, as dos países do velho continente.

Tiveram fome e a saciaram com as guloseimas que trouxeram. Ficaram namorando à sombra dos rochedos. O sol era especialmente quente naquele dia. Preferiram resguardar-se dele até mais tarde, quando diminuísse essa intensidade, mesmo estando enlambuzados pelos protetores convencionais. Rolaram e brincaram e, para aproveitar bem sua “liberdade”, a Miriam remexeu na sua bolsa e dela tirou um embrulhozinho de papel amarrotado.

– Vamos experimentar este “veneno”?

– O que é isso?

– Não vê? É cocaína! De vez em quando eu uso para ficar mais esperta. Não é sempre. Só algumas vezes, em dias especiais como este que estamos vivendo.

– Confesso que nunca usei. Fala-se tanto mal desse pó que a gente fica com medo.

– A cocaína não é prejudicial pra gente quando não permite que ela domine. Por isso eu só cheiro lá de vez em quando, para não me viciar.

– Assim mesmo prefiro não brincar com fogo. Tenho medo de me queimar.

– Bobo, uma vez só não vai viciar. Eu cuido de você para não acontecer.

– Será que todos os organismos são iguais? Eu me refiro à resistência do corpo. Será que é a mesma para todos?

– Eu não sei, mas o metabolismo humano, creio, se encarrega de direcionar cada partícula ingerida para o seu verdadeiro e adequado destino. Acredito que só com o uso abusivo é que o corpo se rebela e, então...

– Então o quê?

– Eu quis dizer que, só quando a gente faz do pó uma rotina, é que pode o organismo ficar dependente.

– É justamente disso que eu tenho medo. Conheço uma porção de viciados, principalmente em crack. Eles roubam até a alma da irmã para conseguir comprar o produto.

Miriam, sem dizer mais nada, abriu o envelopinho, separou a metade, que entregou ao companheiro, e começo a inalar o produto. Gilson, parado, ficou só observando. Não se atrevia a cheirar. Achava que não estava preparado para o momento. Mas, por outro lado, viu que a jovem namorada nada mostrou sentir depois de ter cheirado o pó.

– Não seja medroso! Garanto que não vai fazer mal algum pra você. Se a gente se cansar da euforia do momento, é só dormir um pouco e passa.

O jovem hesitou mais um pouco e, vendo que nada mudara na namorada, abriu o pacotinho e inalou sua porção de cocaína aos poucos, ainda temeroso das reações que iria sentir. Passados alguns instantes, sua vontade de brincar e correr pela praia foram enormes. Sentiu uma alegria que substituiu o medo que sentira antes. Ficou satisfeito com o resultado.

Ato contínuo os dois correram para a água. Brincaram, riram em altas gargalhadas, mergulharam nas águas claramente azuis, até se cansarem. Foi uma completa doideira. Voltaram para o acampamento improvisado, fizeram sexo (mais uma vez)... e dormiram. Quando acordaram o sol havia sumido atrás do morro às suas costas; a água do mar quase lhes batia nos pés; a praia estava invadida pelas ondas e pelo lusco-fusco e uma lua cheia nascente, como a gema de um ovo enorme, pulicava roçando na crista das ondas de alto mar, parecendo estar sendo trazida por elas.

Assustados pelo adiantado da hora, juntaram suas coisas e correram para o ponto onde pegariam o próximo ônibus.

* *

*

Não dormira a noite toda. A sombra que envolvia o quarto parecia vestir os seus próprios fantasmas de negro. Virava-se e outra vez se desvirava na cama para ver se vinha o sono trazendo-lhe, mesmo que por momentos, o esquecimento de tudo. Não conseguiu.Levantou-se e foi para a cozinha e ali ficou parado no vão da janela, no escuro. Nada via lá fora, pois tudo estava escuro. Lá uma vez que outra sentia que os dois olhos de algum cachorro faminto o fitavam, talvez curiosos por verem a janela aberta, ou esperando receber algum osso para distrair a fome.

Miraldo estava triste, muito triste. Não conseguia tirar da cabeça tudo o que lhe estava acontecendo nesta merda de vida. Sempre a miséria assumia o banquinho mais alto no palco da premiação. Por quê? Era exatamente essa pergunta que ele queria que Deus lhe respondesse. Mas Ele, impassível, nada falava com o pobre homem pobre. Nem de ruim e muito menos de bom. Nada. Nada escutava ele; nada via e nenhum alento ou sensação de melhora sentia. Seus pensamentos voaram longe nas asas do interior, donde viera. Fizera tanto mal indo para a cidade, desprezando as raízes? Mas se ficasse lá na roça o que poderia esperar da sua vida de profissional da terra? Somente migalhas de terra para plantar; os cantinhos de terra que os latifundiários desprezavam e não plantavam porque os entulhos não lhes permitiam botar as máquinas, por serem pequenas encostas e, por isso mesmo, não valia a pena investir nelas, limpando-as de pedras, tocos e ervas daninhas. E, também por isso mesmo, só sobrava um pedacinho aqui e outro um quilômetro adiante para ele. Levaria mais tempo na estrada do que na roça trabalhando. Vindo para a cidade, pelo menos e com algum esforço, todos tinham emprego e não morreriam de fome. Mas, não era exatamente isso que ele queria para a sua família. Quando era mais novo, sonhara alto. Sua meta era um dia ter o seu próprio pedaço de terra e um relativo conforto para criar seus filhos, dando, ao mesmo tempo, à sua mulher uma vida mais decente. Mas nada disso aconteceu. Pelo contrário, cada vez mais a miséria aumentava. Se aqui no Rio todos tinham o seu emprego, tudo bem, mas isso acarretava outros problemas. Estavam na cidade grande e tinham que dançar conforme ela assobiava. Com tais pensamentos e reflexões perturbando-lhe a mente, viu achegar-se ao seu lado dona Bina. Ficou imóvel como estivera. Ficaram em silêncio alguns minutos. Ela sabia o que se passava no interior daquele coração amigo: a amargura de nada daquilo que se propunha dar certo. A medo e com intenção de acalmar seu marido, ela pigarreou para chamar a atenção da sua presença e disse:

– Eu sei que não consegue dormir por causa da situação desagradável que estamos passando.

– Estou aqui fora para ver se encontro um jeito de dar a volta por cima, mas tá difícil! Se o carro não for encontrado, não sei o que vou fazer. Voltar para a construção civil de novo? E com que vou pagar o prejuízo que dei ao patrão? Essa situação está duplamente séria: sem dinheiro para pagar o carro que foi roubado e, além disso, procurar novo emprego. Realmente não sei como fazer.

– Você precisa contar para seus filhos sobre o roubo do carro. É a primeira coisa que deve fazer, acho eu. Se eles não podem lhe ajudar a pagar, se é que o patrão vai cobrar, podem ficar de olho e ajudar a polícia a encontrá-lo. Eles todos conhecem bem o seu táxi. Será que o carro não tinha seguro contra roubo?

– Boa ideia! Não tinha pensado nisso. Pode até ser que tem. Neste caso o nosso problema caiu pela metade, não acha?

– Neste caso, se não tiverem achado o carro amanhã, procure o homem e fala com ele.

Depois dessa conversa com a esposa, Miraldo voltou a ter um pouco mais de confiança no êxito daquilo que teria que enfrentar no dia seguinte. Por sugestão dela, voltaram ao quarto e ele conseguiu dormir um pouco.

Ainda amuado e preocupado com a situação desagradável criada com o roubo do seu táxi, o pai já estava levantado quando os filhos saíram dos seus quartos para retomar seus afazeres. Chamou todos e pediu para sentarem bem firme na cadeira porque tinha que lhes contar sobre a mais nova peça que o destino lhes pregara. Contou tudo desde o início, sem, é claro, mencionar o bilhete de loteria. Não queria que a família o culpasse desse gasto extra, já que a vida estava tão difícil.

– Por que não contou logo, pai? – manifestou-se o Nelson, preocupado.

– Tive receio de atrapalhar suas vidas. Pensei que esse fato, talvez, fosse interferir no trabalho de vocês.

– Não seja bobo, pai. Uma coisa tão grave dessas tem que ser repartido entre a família. Me diga uma coisa: como nós podemos ajudar o senhor?

– A mãe achou que, se é que vocês conhecem o carro, poderiam ficar de olho.

Deu o número da placa e um risco pequeno no paralama traseiro, como identificação. Todos eles ficaram consternados com mais esse azar que o pai teria que superar. A Tetê envolveu o pescoço do pai com seus bracinhos carinhosos, dizendo:

– Não fica triste, pai. Deus vai olhar pelo senhor. Faz o seguinte: antes de sair para saber de algum “milagre” na delegacia, faça uma prece ao bom Deus e vai ver que ele vai ajudar. Faça isso e tenha fé. Deus pode tudo e não tem porque deixar o senhor na mão. Boa sorte!

– Nós também vamos rezar e torcer para que tudo dê certo – disse o Gilson, com pena do pai, que já era tão sofrido.

Fizeram seu desjejum e cada qual foi para o seu trabalho. Miraldo demorou-se mais um pouco conversando com a mulher e depois foi para a delegacia saber do “milagre” a que a filha se referira. Enquanto tomava seu ônibus lembrou as palavras da Tetê e, no silêncio do seu interior, mesmo estando sob as tagarelices dos demais passageiros, fez devota prece pedindo as bênçãos do Senhor.

O veículo de transportes coletivos parou no ponto; o homem desembarcou e entrou na rua onde se localizava a delegacia; esperou pacientemente chegar sua vez de ser atendido e soube do funcionário que nenhuma notícia havia do seu carro. Saiu e foi, e desta vez, procurar seu patrão. Por ele ficou sabendo que nenhum dos seus carros, por economia, era assegurado. Combinaram que falariam depois de alguns dias, quando nenhuma esperança mais havia de encontrar o táxi. Os dois eram amigos há muitos anos e, para provar isso desde já lhe assegurou que não se preocupasse; que sabia que ele não tinha com que pagar, ao contrário dele, que ainda lhe sobravam cinco táxis correndo pela cidade.

Miraldo sentiu um pouco de alívio, apesar de sentir-se ainda desorientado. Caminhava pensativo e lentamente pelas calçadas movimentadas da cidade sem saber o que fazer. Não tinha o hábito de beber. Pinga para ele era só quando dela precisasse como remédio. Mas, naquele dia, no estado de espírito abalado com os acontecimentos e problemas que se avolumavam, deu-lhe vontade de encher a cara. Chegou na birosca que viu numa pracinha do outro lado da rua e pediu uma cachaça. Ponderou que lhe faria bem. Pelo menos lhe daria coragem para enfrentar esse mundo de adversidades. Bebericou o líquido ardente enquanto pensava. Quando pegou a carteira do bolso para pagar o trago, viu o bilhete da mega-cena que ainda não conferira. Lembrou que, naquela semana, por motivos óbvios, tendo em vista os maus acontecimentos, ainda não fizera sua aposta. Pagou, recebeu o troco e retirou-se anonimamente. Retornou ao outro lado da rua e procurou uma lotérica para jogar. Pegou o bilhete da carteira para fazer os mesmos números daquele, como, aliás, fazia em todas as apostas. Marcou os números e, antes de entrar na enorme fila de apostadores, olhou para a parede onde estavam as tabelas dos números ganhadores do sábado anterior. Começou a conferir maquinalmente. Lá estavam o número 05, o 09, o 18. Fez uma pausa na leitura dos números, tentou dominar a emoção, olhou para os lados onde os apostadores conversavam alto e se acotovelavam no pequeno recinto. Cada qual com suas atenções voltadas para a marcação dos seus próprios números “ganhadores”, ninguém olhava par ele. Quando acalmou o nervoso que lhe dera a emoção forte de ter acertado os três primeiros, voltou sua atenção para conferir os três números que faltavam. Pasmo e com vontade de gritar para todos que acertara a mega-cena, fez um esforço inaudito para aparentar a maior tranquilidade possível. Na sequência viu os números que faltavam: 3l, 34 e 37. Depois viu um grande cartaz dizendo que os ganhasdores ainda não haviam procurado a Caixa para retirar seu prêmio.

Seu coração quase parou; sentia a palidez, ou o verde, ou cor roxa, como se fosse uma máscara sólida em sua cara. Achou que era sob o efeito da bebida que tomara que seus olhos estavam vendo esses números. Mas nenhuma alteração da sua expressão corporal, ou sinal de euforia demonstrou. Dentro de segundos seu rosto voltou ao normal. Conferiu novamente e o resultado foi o mesmo. Estava com o bilhete premiado nas mãos.

Para não dar demonstração de lhe ter acontecido tamanha ventura, amassou o bilhete e o enfiou no bolso. Entrou tranquilamente na fila e esperou a sua vez de ser atendido, como se nada tivesse acontecido. Saiu da lotérica, pegou seu ônibus e foi para sua casa.

APÊNDICE

Onde estarão, neste momento, os personagens com quem convivemos momentos, horas, dias, através das emoções deste romance?

Como viverão eles, frente ao novo e emocionante momento , as suas vidas que, até agora, esteve impregnada da mais nobre pobreza?

Isso o caro leitor somente descobrirá lendo o segundo volume de “A PONTE DO PRECIPÍCIO”.

FIM DO PRIMEIRO VOLUME.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 01/11/2009
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T1898818
Classificação de conteúdo: seguro
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