PALCO E CENÁRIO

Da obra "Guerra, Pauxão e Morte", cujo tema é a guerra do contestado, ainda não editado.

GUERRA, PAIXÃO E MORTE

(romance histórico)

CAPÍTULO PRIMEIRO

Palco e cenário

Corria o ano de 1910. A gralha azul derrubava os primeiros frutos do pinheiro. Fazia ela, com as incúrias havidas na colheita do seu almoço, o replantio natural do pinheiro, cujo pinhão, escapando do seu bico voraz, alojava-se entre as folhas mortas daquelas plagas banhadas pelas turbulências do Rio do Peixe. Esse rio, cujas águas eram limpas, potáveis, lépidas e brincalhonas, com relativo declive escorre por entre as pedras do seu leito, cortando o médio oeste de Santa Catarina ao meio. A foz do nosso Rio do Peixe dá-se na margem oposta à cidade de Marcelino Ramos, no Estado do Rio Grande do Sul. Juntas, as águas dos dois caudalosos rios continuam seu curso com o nome de Rio Uruguai.

O Rio Pelotas nasce no alto da Serra Geral, em Santa Catarina. Juntando-se com o Rio das Antas, seu mais forte afluente, que seguem, já rebatizados de Rio Uruguai. Mais adiante o Rio Uruguai recebe as águas do Rio do Peixe e corre entre os dois Estados, fazendo-lhes a divisa, no sentido leste/oeste, fugindo do mar.

Voltando ao nosso Rio do Peixe, observa-se que seu caudal é engrossado por pequenos afluentes que descem pelas encostas dos morros, de ambos os lados, desde seu nascedouro no distrito de Presidente Pena, no norte do Estado. Matas nativas entremeavam pinheiros centenários, cedros, imbuias e jacarandás, formavam o luxo verde nativo das serras e das planícies das suas margens. A várzea, na margem esquerda (leste), abria claros espontâneos, onde a vegetação rasteira, pajeando arbustos e enormes pinheiros esparsos, acompanhava e protegia a verdejante margem do rio. Na outra margem a mata ciliar, produzindo sombras e frutos, bordava de verde e do matiz das flores, o pé da serra. Os frutos, que serviam de alimento à fauna aquática, eram disputados em festa, bocada a bocada, por cardumes de piavas e outros peixes. Abundante era a fauna silvestre, que interagia com o homem, nos cuidados com o meio-ambiente.

Ao correr do tempo, aqui e ali, foram surgindo as roças. Ao longo dos últimos duzentos anos o povoamento rural foi se tornando cada vez mais evidente. Nestas áreas, foram construídas as rústicas casas dos caboclos que na terra buscavam seu alimento. O solo fértil facilitava para que nunca faltasse alimentação sadia, natural e variada na mesa da família do caboclo. Era sacrificosa, sim, sua vida, porque, para conseguir os artigos de consumo que não pudessem ser produzidos pela terra – sal, ferramentas, tecidos – léguas e mais léguas de trilhos foram percorridos. Por vezes, conduzindo-se pelos trilhos abertos pelas antas, as estradas eram caminhos rústicos, tortuosos e de grandes perigos, haja vista passarem por regiões cuja complexidade primária dava oportunidade às tocaias das feras de animais de todos os naipes. Felinos, ofídios e catetos encontravam ali seu chão natural. Essas estradas eram ainda trilhos, muitas vezes dos próprios animais selvagens, como os trilhos da anta, por onde os colonos e os próprios tropoeiros passavam com suas mulas, carregadas de bruacas e cargueiros, o transporte normal da época. Porém, de qualquer forma, as distâncias teriam que ser vencidas para que esses valentes pioneiros chegassem até o “bodegão” mais próximo, nos lugarejos ainda nascentes, onde teriam oportunidade de comprar o de que necessitassem. Eram ainda primitivos os tempos, como primitivos e simples eram os usos e costumes dos homens e mulheres que se aventuraram viver sua vida e criar suas famílias naqueles ermos. As “vendas” (no sentido de casas primitivas de comércio) que surgiam nas pequenas aglomerações de casas, de espaços em espaços, tinham todos os artigos de consumo que, na época, preenchiam as necessidades materiais de primeira necessidade dos caboclos. Aqueles, os comerciantes, por sua vez, tanto compravam como trocavam pelas sobras dos produtos que o colono lhes trazia, para este poder adquirir os seus temperos e insumos e satisfazer suas pequenas vaidades. O comerciante, que geralmente era ligado à classe política dominante – os coronéis – com um largo sorriso de canto a canto na boca, lograva o simplório habitante dessas paragens e, além disso, com estudadas artimanhas, ganhava as boas graças deles e as preferências eleitoreiras.

Nessa mata, quase intocada pelo homem através dos séculos, viam-se gigantescos exemplares de imbuia, de cedro e de angico, entremeados de jacarandás em leda convivência com as araucárias centenárias. Essa riqueza verde em forma de madeira, embora cobiçada por todos, até o momento, só havia visto o machado em ação nas mãos dos seus algozes caboclos quando, em extrema necessidade, estes a usavam no uso em suas propriedades, para suprir as necessidades domésticas.

A estrada de ferro que ligava o Estado de São Paulo ao do Rio Grande do Sul, já há muito planejada, projetada desde o tempo do Império (mais ou menos em 1887) e cuja construção foi iniciada em 1890, ia lentamente ganhando forma Não vem ao caso por que as obras foram paralisadas no ano de 1908. O fato é que, sob nova administração, foi reiniciada no mesmo ano. A empresa Holding Brazil Railway Company, que ganhara a concessão de tão grandiosa e importante obra, ganhou, também, do Governo da República o direito de explorar economicamente as margens da ferrovia, lado a lado, numa extensão de trinta quilômetros. Essas terras, mesmo sendo exploradas por colonos há muitos anos, eram tidas por devolutas, pertencentes ao governo federal.

Outro detalhe digno da maior apreciação para ilustrar o palco onde se desenvolveu esta história de sangue, paixão, ganância e ódio, é o fato de que esses colonos eram pacíficos, ordeiros e laboriosos caboclos. Há muitos e muitos anos trabalhavam essa terra e, na sua ingenuidade nata, cada um considerava seu o pedaço de chão que ocupava. Era ali sua vida. Os velhos troncos vindos de outros lugares do Estado, muitos deles, senão a maioria, do Estado do Rio Grande do Sul, criaram ali suas famílias e suas raízes cresceram naqueles ermos. Os filhos casaram e criaram também os seus filhos naqueles matos e, assim, sucessivamente, há mais de duzentos anos. De certa maneira nenhum deles tinha dúvidas de que não eram os donos legítimos. E nessa certeza não lhes ocorreu que, no futuro, seriam chamados a comprovar a legitimidade da posse com documentos. Não havia nenhuma autoridade por eles. Não havia cartório a menos de duzentos quilômetros, uma distância considerável, levando-se em conta a falta de estradas e de meios de transporte. Os precários e lentos meios de transporte de que dispunham lhes eram adversos para acessar essas autoridades e fazer alguma reivindicação quanto ao seu precário modo de vida, ou, solicitar a posse legítima das terras, mesmo porque, na época em que se deram os fatos, ainda não se pensou em legitimação de terras através do usucapião. Sendo os coronéis políticos os cabos eleitorais dos que ocupavam cargos maiores do Estado ou da Nação, não se preocupavam com essas picuinhas da vida dos colonos, pois nada mais que alguns reis poderiam esperar deles. Ao contrário, os altos funcionários que eram eleitos com os votos que os coronéis representavam, cobriam-nos com favores políticos. A euforia dos colonos, de tempos melhores no sentido de estradas, saúde e escolas, residia, exatamente, nessa ferrovia que lhes serviria de primeiro meio de transporte havido em todos os tempos de carestia de todas essas necessidades.

A nova concessionária de trabalhos e de terras não perdeu tempo, já que o Governo tinha pressa em concluir, desta vez, a estrada de ferro. Para que fosse possível o transporte das riquezas do sul para o centro sul do país, era necessário criar novos meios de transporte. Até o momento isso estava a cargo dos tropeiros que, com suas mulas, levavam meses para cobrir as distâncias que separavam o Rio Grande do Sul a São Paulo.

Sendo assim, naquele mesmo ano de 1908 a nova empresa reiniciou a obra. Para tanto, promoveu o arrebanhamento de grande mão-de-obra. A notícia da procura de operários para a construção da ferrovia espalhou-se com a rapidez possível, levando-se em conta as dificuldades da época. Veio gente dos quatro cantos do Brasil. Dos caboclos foram também recrutados todos os que tinham força para suportar o peso de um dormente nos ombros.

Com o passar dos meses a empresa foi assumindo (de fato e de direito) a posse dos direitos que lhe foram cedidos pelo Governo da República. Criou e instalou a Southern Brazil Lumber & Colonization Company, conhecida por todos como a serraria Lumber, que foi encarregada de “colonizar” a faixa de terras recebida. Juntamente com seu encargo principal, que era o aproveitamento de toda a madeira que rendesse divisas para a empresa, a Lumber vendeu terras em lotes agrícolas, principalmente para imigrantes alemães, holandeses e italianos. Deu, assim, início à nova colonização, usando, para esse intento, o produto da imigração negociada ainda durante o império com países da Europa.

A nossa história começa exatamente quando foram concluídos os trabalhos da estrada de ferro, que se deu em 1910. Quase em sua totalidade, os operários que não moravam naqueles sertões, teriam ido embora, retornando para suas origens, se a empresa tivesse cumprido com a promessa de repatriá-los. Mas, esta empresa, nem sequer os últimos salários pagou aos desgraçados trabalhadores.

Sob a administração da Holding, trabalhando com 8.000 operários, os trabalhos da construção da ferrovia foram executados e concluídos em pouco menos de dois anos. Por sua vez, e por causa da conclusão dos trabalhos da via férrea e, ainda, por conta da concessão do Governo Federal, para dação em pagamento das áreas limítrofes da ferrovia, em 1910, os caboclos estavam sendo alijados de suas terras. A ordem expedida pela Lumber e executada pelos seus “funcionários mais chegados”, que, na realidade, eram jagunços trazidos pela empresa do seu país de origem, foi de que os posseiros teriam que desocupar suas terras, que, agora, passaram a pertencer à Holding, sob a administração da Lumber. Os caboclos já haviam sido aconselhados “pacifica e amistosamente” – com as ferramentas de trabalho dos jagunços da empresa atravessadas sobre o ventre – que deveriam deixar as terras em que moravam, imediatamente. Teriam que bater em retirada, ou melhor, sumir de vez do cenário daquelas plagas – e ouviram isso não sem grande revolta – para além dos quinze quilômetros das margens do Rio do Peixe e da estrada de ferro que, como num passe de mágica do governo da República, foram parar nas mãos da empresa norte-americana..

A empresa vendeu grande parte dessa concessão, mau grado dos posseiros que não tinham, como se pode bem avaliar, nenhum documento oficial que lhe garantisse a posse. A colonizadora assim procedeu, aproveitando-se dessa prerrogativa e da ignorância dos colonos quanto ao seu direito adquirido. Expulsou-os de suas terras em conluio e cumplicidade com os governos da República, do Estado do Paraná e de Santa Catarina. que, juntos, numa sordidez inominável, enxotaram, à força, esses trabalhadores que, com o amanho duro das suas roças, supriam as necessidades de alimentos e de vivência das suas famílias e, de quebra, colonizavam o interior do país. Os caboclos brigaram pelo seu pedaço de chão, mas nada de positivo resultou desses protestos. Mais tarde, instruídos pelo monge José Maria, tentaram defender os direitos adquiridos ao longo de mais de dois séculos de posse e de trabalho, mas foi inútil a sua indignação, uma vez que o Governo da República dizia que as terras pertenciam aos gringos. Mesmo que de direito eram tidas por suas, esse direito não assegurava aos caboclos a posse, pois o direito se perdera, escoando pelo ralo da tubulação dos coronéis a mando do governo. Moveram-se, e juntaram-se em grupo, tentando fazer seus direitos serem reconhecidos. Nada conseguiram junto às autoridades que representavam o mando regional que, até então, se haviam mostrado simpáticos à causa dos posseiros (porque estes os “honravam” com seu voto) enquanto seu mando político não havia sido ameaçado.

Os líderes da comunidade que englobava o grande médio oeste catarinense apresentaram razões contra as autoridades constituídas dos dois Estados e da República. A grita era contra as empresas agraciadas por essas autoridades com as terras, por lhes infligirem tamanho golpe, deixando-os sem meios para produzirem alimentos e sem lugar para morar. Esse foi o estopim que, uma vez aceso, queimou até alcançar a bomba, que explodiu em 1912 – a Guerra da região do Contestado. Apesar do nome, não foi a pendenga política em curso entre os Estados do Paraná e de Santa Catarina pela disputa das áreas contestadas, que originou a guerra. Por causa de picuinhas políticas e para pagar os custos que o ônus da ferrovia trouxe ao país, foi movida uma guerra cruel, absurda e genocida, exatamente contra quem, com seu suor e suas lágrimas, colonizou o médio oeste catarinense. E, para isso, desde séculos plantava suas roças e sustentava a prole que, por sua vez, continuava a expandir ainda mais essa colonização. A causa verdadeira da guerra movida pelo Governo Brasileiro contra brasileiros que queriam terras para plantar, foi, já naquela época, a falta senso de responsabilidade e de justiça na distribuição raciaonal do solo brasileiro aos cidadãos que realmente sabem o que fazer com ela.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 26/02/2010
Reeditado em 26/02/2010
Código do texto: T2108263
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