Clarice

"É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer por que no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo." Perto do coração selvagem

Há quase dez anos, li “A Legião Estrangeira” e me apaixonei por Clarice Lispector. Clarice é amor ou ódio, aceitação ou repulsa. Nada nela é mais ou menos. É tudo muito intenso. Paixão pura.

Nas rodas em mesas de bar, nas conversas, nunca mencionei Clarice. Quando o assunto caía nela eu me abstinha, e não emitia opinião.

Clarice não é para ser compreendida é para ser sentida. Difícil falar de Clarice!

Afinal, opinar o quê sobre Clarice? Opinar seria profanar seu santuário.

O que, então, me faz capaz de falar hoje?

É justamente eu continuar a não falar sobre sua obra. Mas, posso falar sobre a sua pessoa. E assim, talvez, ao tentar compreender a criadora eu possa alcançar o âmago, a significância, de sua criação.

Li algumas entrevistas de Clarice. Suas entrevistas eram marcadas por uma fluidez natural que leva o interlocutor a entrar em contato consigo mesmo.

Até ontem eu não havia assistido a famosa entrevista dela dada a TV Cultura em 1977. Confesso que tinha certo receio de perder o encanto ao vê-la tão humana, vaidosa, com a língua presa e um sotaque nordestino quase impercebível. Mas aconteceu o contrario, minha admiração aumentou ainda mais.

Apesar de ser muito vaidosa e gostar de ser fotografada, foi a única ocasião em que ela se deixou filmar numa entrevista, que só foi concedida mediante a condição de ser exibida postumamente. O que não tardou. Neste mesmo ano Clarice sucumbia a um câncer generalizado do qual não tinha conhecimento, ou se o tinha, omitiu.

Na ocasião ela se mostra triste. A entrevista em si tem um tom pesado, melancólico... Chamou-me a atenção a profunda solidão que ela transparece; o olhar perdido, as longas pausas...

Eu me identifiquei com ela. Com a sua solidão; com o seu existencialismo; com o seu fumar compulsivo.

Não se escolhe ser solitário. Não dá para dizer: “de hoje em diante serei solitário” e assim o será. Não! É a solidão que te escolhe, te acolhe. Ela é um estado a ser conquistado.

Solidão não é apenas a ausência do outro. Ser solitário é sentir-se só mesmo quando há o outro. É o lugar onde nos enxergamos de um ponto de vista externo, e nosso mundo interno transborda.

Nada é verdadeiramente criado em grupo. Até existe a “criação” em grupo, mas a verdadeira Criação é solitária. Apenas na clausura de si mesmo é possível criar algo legítimo, significante... Quando a mente descortina os véus que velam a visão interna e...

Clarice diz na citada entrevista que, quando não está produzindo, escrevendo, a vida se torna insuportável. Diz mais, diz que no hiato que existe entre uma obra e outra se sente morta.

Assim é Clarice: apaixonada, livre e solitária. Digo “é” no presente, pois tenho certeza que um ser de tal tamanho não morre, transcende.

Clarice nos coloca em contato com nós mesmos; com o que há de mais belo e mais terrível em nosso intimo.

Silenciosa, Clarice alimentou e continua a alimentar a sólida solidão dos que se encerram no silêncio de si mesmos.

Evoé Clarice! Evoé!

“Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam, existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio."

Clarice Lispector

P.S. Texto escrito em 2007. Ano que se completou 30 anos da morte de Clarice.

R Reinert
Enviado por R Reinert em 23/08/2010
Reeditado em 25/09/2010
Código do texto: T2453697
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.