Kevin, Sting, Maude, Mena

Kevin pediu um quarto por uma noite. O hotel ficava em frente ao parque principal da cidade. Frondoso, grande, poucas luzes acesas e assim um ar romântico e contemplativo ao entardecer, sobretudo no Outono/Inverno. Era Outono naquele dia em que Kevin alugou um quarto nesse hotel em frente ao parque. Caía a noite, lentamente. Em criança, o pai corria com ele e com o irmão mais velho. Lanchavam num pequeno café antes de regressarem a casa. Corriam naquele parque da cidade, grande, frondoso, alamedas de choupos e salgueiros. O irmão era médico e tinha dois filhos, um terceiro morrera ao nascer. O irmão de Kevin, este tal médico, Sting, foi acusado da morte de um doente por negligência, o que o impediu de continuar a exercer medicina. Nunca os factos foram esclarecidos devidamente. Sting aceitou a decisão sem esboçar qualquer sentimento, deixou o seu hospital e foi para casa como sempre fizera após mais um dia de trabalho. Estava divorciado da mulher por qualquer razão sem importância referir. Vivia só e empregara-se num armazém de ferragens. Há anos que não via os filhos, estes não o procuravam. Ele aceitou sem forças para resistir. A sua única diversão era coleccionar revistas de medicina, sendo assinante de várias. Comprava-as ou recebia-as pelo correio e nem as abria, iam imediatamente para uma estante na sala. Dizia a quem o ouvia que tinha mais de mil revistas de medicina por abrir. Às vezes quase era tentado a folhear uma ou outra, talvez de olhar apenas as imagens ou ler umas poucas linhas, mas rapidamente desistia. Já não se sentia médico, talvez nunca o tivesse sido, ou foi e não o deixaram ser mais Não importa, já não tinha nenhuma importância para si o que foi ou deixou de ser. Aliás, nada tinha importância. Cumpria o horário no armazém de ferragens e vendia com ar indiferente pregos e serras, martelos e lixas, recebia o ordenado todos os meses e gastava parte dele em muito poucas coisas. Tirando as revistas, os gastos eram o trivial para sobreviver. Sempre as mesmas roupas e os mesmos sapatos, não tinha a mínima preocupação com o seu aspecto, parecia mesmo um mendigo. Sting vivia em paz, aguardava que a morte um dia viesse bater-lhe à porta com uma grande encomenda de revistas de medicina. Pensava nisso sentado no sofá da sala e soltava fortes gargalhadas. Vou abrir a porta e sou convidado a viajar, uma viagem de onde não se volta mais. A morte é apenas e só isso. Nada de outras vidas, outras vidas são meras fantasias de quem tem medo de caminhar para a porta, abrir e não voltar a entrar. O seu irmão, Kevin, estava afastado dele há muito tempo. Nenhum dos dois saberia dar uma resposta clara para essa separação. Deixaram de se ver e era tudo. Que mais se poderia dizer? Kevin pediu a chave do quarto e subiu os andares pelas escadas. Não gostava de elevadores, o que era naquela circunstância uma vantagem, tudo ali ameaçava ruína. Que ironia! Agora já não tem importância o que pode acontecer. Que ironia! Ele ia encontrar a morte e temia que o elevador cedesse. É mais comum do que se possa pensar. Uma espécie de dignidade vital, uma despedida com solenidade. Entrou no quarto e deitou-se. Adormeceu. Teve um sonho invulgar. Uma mulher jovem subia até ao alto de uma torre. Havia uma ponte a ligar duas margens. O rio tinha um forte caudal e anoitecia rapidamente. A mulher exausta chegou ao cimo da torre e despiu-se. Os cabelos loiros desalinhados realçavam a sua beleza. Ela falava para si como se fossem duas personagens distintas. Uma delas, uma qualquer, falava-lhe da morte, a outra escutava curiosa. Depois ficaram em silêncio, olhando o fundo do abismo. Em silêncio. A mulher loira e bela despenhou-se em voo sobre o abismo e ali ficou sobre as pedras. Retomaram o diálogo as duas personagens já sem nenhuma curiosidade de qualquer delas. Kevin acordou alagado em suor e triste. Kevin pensou em interpretar o sonho e desistiu. Já não havia mais necessidade de interpretar os sonhos, nem haveria tempo de sonhar muito mais. A noite estava calma, caiam folhas de Outono nos caminhos do parque, as luzes amarelas acentuavam a placidez da paisagem. Quem está preparado para morrer está preparado para recordar o que foi a sua vida? E se está, vale a pena recordar? E o que se vai recordar, e o que vale a pena esquecer? Não estou interessado em responder. Deixou-se ficar estendido na cama, deixou que o sono regressasse e o embalasse e o protegesse. E sonhou de novo qualquer coisa, uma viagem, o amor de uma mulher, uma exposição de pintura, hotéis de estrada, a solidão de um quarto onde nunca se esteve, a infância e muito mais sem importância. O irmão, o pai, a mãe morta muito cedo, os pinhais que ficavam nas traseiras de uma casa onde viveu, um dia feliz. Galinhas e aves como gaivotas. Qual o sentido do sonho? Sonhou ainda que morreu de olhos abertos como Adriano, sonhou que voltava da morte e contava aos vivos essa experiência absoluta do nada. Saía de um prédio abandonado e falava com alguém sobre arte e ambos caminhavam por entre escombros e jardins floridos. Sorriam e berravam. Kevin via-se no sonho, julgava ver-se no sonho, como alguém que sonha esse tal sonho. Perdiam-se ao longe, as suas vozes eram já fracas e continuavam os jardins floridos e os escombros. Sentiu que a morte o esperava. Acordou alagado em suor. Três horas da madrugada. No corredor do hotel homens e mulheres riam despreocupadamente. Abriu as cortinas da janela e viu o parque envolto numa névoa densa. Olhou-se ao espelho por cima da cómoda. Fixou várias vezes o olhar. Fez caretas, tantas expressões que deixou de se reconhecer. Desviou o olhar do espelho. Deu voltas pelo quarto. Voltou a olhar-se ao espelho, de facto aquele outro que o observava era um estranho. Um poeta tinha-se suicidado num hotel em Paris. Estou bêbado, enfim estou bêbado. Maude não soube em pormenor das circunstâncias da morte do seu último namorado. Só o fim, o mais importante. De facto, reconhecia que depois de Kevin não voltou a ter ninguém a quem pudesse chamar namorado. Ela pensava assim. Foi Mena que lhe dissera há pouco tempo, talvez uns meses. Kevin suicidou-se num hotel rasca próximo do parque grande da cidade. Ele enforcou-se. Porquê? Quais os motivos? Mena era uma amiga de infância de Kevin e conhecia Maude.