Mena e Mónica

Mena era mais nova que Kevin. Viva com a mãe nos arredores da cidade. O pai tinha emigrado e, ao fim de algum tempo, um tempo estratégico, nunca mais deu notícias. Viviam as duas com muitas dificuldades económicas. Encontraram uma casa de renda barata depois de entenderem que apenas se tinham uma à outra. Mena e Kevin andaram juntos na escola e isso cimentou laços de amizade. Nunca a amizade foi mais além, nunca sentiram que pudesse entre eles crescer qualquer laivo de paixão ou amor. Mena foi tendo namorados, nada de importante, e Kevin muitas namoradas, sempre importantes enquanto durava a paixão. E durava até aparecer outra paixão. Mesmo quando namorava Maude, sentiu arrepios por outras mulheres. Ele dizia que Maude tinha durado tempo demais, mas foi a mais intensa paixão. Mena não tinha ilusões sobre o amor, preferia não se envolver com ninguém de uma forma séria, se isto se pode dizer. Era parecida com Kevin num certo sentido, mas mais pessimista, mais cáustica sobre as relações entre os homens e as mulheres. Os namorados eram os amigos íntimos a quem nada prometia e a quem nada exigia. Não tinha boa imagem dos homens. O pai era alguém que a abandonou, o pai era um homem e um homem abandona a mulher que diz amar, o pai deixou de existir e com ele todos os homens deixaram de algum modo de existir, ou, se existiam, não mereciam o amor de uma mulher. Nunca serei a mulher de um homem, nunca amarei nenhum, apenas me interessam superficialmente. Mena trabalhava como administrativa numa empresa multinacional. Gostaria de ter sido professora, mas desistiu, a educação estava transformada numa burocracia arrepiante, cujo objectivo era a apresentação periódica de resultados estatísticos, mesmo que ilusórios, para contentar governantes. Licenciou-se em contabilidade e o emprego era precário na tal empresa. Contribuía para alguns ganharem milhões. Tinha consciência disso, uma consciência que a tornava ácida e revoltada. A mãe fazia limpezas em casas, casas de senhoras infelizes, de senhoras com filhos problemáticos, casas de maridos ausentes, de avós moribundos ou empurrados para lares de terceira idade, ou maridos bêbados e agressivos, em lares de ricos e menos ricos, em lares de gente doente, de velhos esperando a morte, em casas de senhoras reformadas e viúvas, lares sem gente. Fazia limpezas para ganhar a vida, trabalhava para quem tinha ainda alguma posse para a ter como empregada de limpeza. Ia de manhã cedo e regressava a casa ao começo da noite, pronta para recomeçar no dia seguinte aquele ciclo infernal que se arrastava pelo tempo. Mena saía um pouco mais tarde para o escritório da empresa multinacional. Pensava na mãe, na vida da mãe, a sua mãe, já na rua, embalada pelo ritmo quotidiano repetitivo que a salvava de meditar sobre a vida. Se ela, Mónica de seu nome, soubesse, ou pudesse, ou ambicionasse ir mais além, o que seria de Mónica?! No escritório era considerada uma excelente profissional e uma óptima colega de trabalho. Contudo, sentia-se nela ambição e sentido crítico apurado. Cumpria as suas obrigações com entusiasmo moderado, havia alguma esperança de melhorar a sua condição um dia. Ela meditava sobre a vida, um certo ideal brilhava, por vezes, no seu rosto. Tinha sido uma militante partidária quando frequentou a Universidade. Acreditou em transformar o mundo, ainda hoje essa ideia não tinha esmorecido totalmente. Agora estava mais preocupada consigo, isso é certo. Dos grandes ideais às coisas mais simples, sempre acontece ao fim de umas quantas desilusões. Quem sabe, uma casa melhor para as duas, num sítio mais arejado da cidade, uma espécie de reforma antecipada para a mãe se trabalhasse menos horas por dia, um passeio de fim-de-semana. Vou conseguir algo mais, a minha mãe merece descansar e viver os últimos anos sem preocupações e com alguma felicidade. Não falava do marido, aceitou o que ela chamava o destino, o destino a que não se escapa, não é possível subir o rio contra a maré. Muito diferente da filha, nunca encontrou espaço para edificar um sonho, um ideal, as suas convicções era não ter convicções, deixar que tudo siga o seu curso, inevitavelmente. Mena comprou, como tinha ficado combinado, um bolo de aniversário, duas velas com os números exactos e uma garrafa de champanhe. Pediu para sair mais cedo do emprego e fez tudo com grande entusiasmo. O presente seria uma camisola branca de lã. A mãe tinha manifestado necessidade de se abrigar do frio naquelas manhãs invernosas que a arrastavam para o trabalho. Mena queria chegar antes da mãe a casa e preparar a festa de aniversário com carinho e dedicação. Sempre fora uma boa filha. Chegou a casa ainda era dia. Uma luz azulada nesse fim de Outono entrava pela janela da sala onde pousou tudo sobre a mesa de jantar. Afinal, o que importa? Não é contraditório acreditar e ser pessimista, tudo depende da dimensão da crença. A última ou primeira coisa que nos resta é a vida, ou melhor, o valor da vida. Nenhuma possibilidade de esperar algo depois da morte, esta é o nada, o nada absoluto. Aqui, nesta sala, cada instante será um derradeiro instante, não voltarei a sentir o que sinto do mesmo modo que sinto aqui e agora. Não serei mais a mesma, este dia, estas horas, estes segundos não se repetirão, e mesmo a recordação de tudo isto se perderá em mim para sempre. De facto, eu me perderei para sempre ao fundo da vida. Agora, agora neste instante, Mena aguarda a mãe, cansada do trabalho nas casas dos outros, ela que celebra mais um aniversário que se soma a muitos outros de que já não conserva memória, nem talvez o nome de muitas personagens na altura presentes. Agora a vida evoluiu e colocou mãe e filha frente a frente na doçura das suas solidões. A mãe ficará feliz. Mena ficará feliz. Escureceu completamente, as luzes da sala preparam-se para inundar toda a obscuridade possível. Mena sorriu, sorriu de novo, a vida tem momentos felizes.