Sem recheio

Foi acontecendo aos poucos, feito goteira sutil

Nem notei ou até notei, mas pareceu insignificante!

Primeiro foi meu sentimento de compaixão que desapareceu sem deixar traços

Simplesmente deixei de apiedar-me pelos sem teto.

Deve ser porque morei em bairro onde havia e há mais pessoas nas ruas do que nas residências.

Aí, acostumei-me.

Depois foi a solidariedade aos desabrigados vítimas de enchente ou desabamento de um modo geral. Foi na época em que diariamente assisti nos telejornais aquelas tragédias. Enviei muitos donativos, fiz tantos depósitos quanto meu pequeno salário permitiu.

Aí, acostumei-me.

Chegou então, a vez dos coitadinhos do MST. E eu que já fui, no âmago do meu ser até a ponta do dedão do pé, pura reforma agrária, fiquei sabendo certos “detalhezinhos”. Quem era mesmo que queria a reforma agrária?

Eu já tive dó dos moradores das favelas, que vida dura! Não tenho mais. Agora apenas oro por eles, prá que consigam sobreviver aos traficantes e à polícia. Esse desamor deve-se aos filmes “Cidade de Deus”, Tropa de Elite 1 e 2, novamente aos telejornais, à invasão do Morro do Alemão.

Sou muito antiga, não tão velha, antiga mesmo!

Quem se lembra de uma época em que não tínhamos medo das crianças?

Certa vez, quando eu fui distribuir doce e biscoitos às crianças largadas na rua, um garotinho que já me conhecia aproveitou a oportunidade e roubou minha bolsa e ainda me ameaçou!

Bom, de mim não ganharam nem mais uma balinha.

Comigo foi acontecendo, mas não sei informar quanto tempo durou esse processo, mas resumindo:

Primeiro – compaixão / amor pelo próximo em dificuldades de qualquer natureza.

Segundo – costume de ver, de conviver e de ser mais uma vítima dos infortunados.

Terceiro – indiferença – esse contingente enorme de marginalizados passa a ser invisível.

Quarto – vazio.

E foi assim que parei em frente ao espelho e não vi entusiasmo, vi olhos opacos, mas não de tristeza, isso já seria bom.

O que vi se parece muito comigo, mas isso também me é indiferente.

Dalva Marisi Gallo
Enviado por Dalva Marisi Gallo em 08/04/2011
Reeditado em 09/08/2012
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