Anjo

Anjo

Eu o via caminhando pela orla todos os dias, por volta das seis da tarde. Ele gostava de ver o pôr-do-sol nas pedras mais altas. Eu, que trabalhava o dia todo ficava aliviada ao ver a praia fazia, só aquele homem correndo e o sol já se pondo. Às vezes me sentia íntima dele, mesmo sem trocarmos uma palavra se quer.

Ele era alto e forte, seu corpo moreno de sol fazia contraste com seus olhos amendoados e verdes, seus cabelos pretos e molhados voavam enquanto ele corria, e só recuperava o fôlego quando chegava na última pedra, onde se sentava e tocava sua gaita, maravilhosamente. Parecia ter inspiração divina. Tinha impressão de que os pássaros meditavam com aquele som, assim como eu.

Naquela época, aos meus dezoito anos, eu ainda era sonhadora e havia acabado de chegar de Minas Gerais e desistido de uma faculdade. Só queria paz. Trabalhava em um hotel de luxo e passava os fins de tarde na praia, observando aquele homem que me encantava. Nunca poderia imaginar o que aconteceria meses mais tarde.

Houve um dia em que tive problemas no trabalho; fiquei chateada. Mas, como de costume, fui para a praia assistir ao pôr-do-sol: era a única coisa que me aliviava ultimamente. Resolvi dar um mergulho na águas agitadas. Submersa, me esqueci dos meus problemas. A água morna e salgada tocava meu rosto como uma carícia. Foi quando percebi que a correnteza me levava; entrei em pânico e não conseguia voltar á tona. Apaguei.

Sonhei que estava nas nuvens. Sentia muita paz, ouvia um lindo som, um som conhecido, o som de uma gaita. Um lindo anjo, moreno de olhos verdes, tocava sua gaita e me acalmava. Achei que tivesse morrido e estava no paraíso, mas estava viva, e aquilo não era um sonho.

Ouvi o barulho das ondas se debatendo nas pedras, e o anjo que me salvou estava ali, sentado ao meu lado. Naquele momento só existíamos eu, ele e o mar. Ao me recuperar perguntei o seu nome, era Gabriel. Meu anjo Gabriel! Com um sorriso ele disse que por pouco o mar não me havia levado. Ele cuidou de mim naquela hora e nos tornamos grandes amigos. Uma amizade que, aos poucos, tornou-se algo mais...

Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos, classe média alta, terceiro ano de faculdade de biologia. Era solitário; apesar de ser uma pessoa maravilhosa, não tinha muitos amigos. Ás vezes parecia um pouco triste e eu não entendia o porquê, mas tentava alivia-lo com todo amor que sentia. Gabriel era a melhor companhia que se poderia ter. Com ele aprendi muitos valores aprendi a enxergar a vida de outra forma, sentir prazer nas coisas mais simples e a valorizar tudo o que havia conquistado até ali.

Fazíamos muitos planos: casar ter filhos, levar uma vida simples e confortável. Gabriel, apesar de ser rico, era muito humilde, o que me encantava ainda mais. Sua voz doce; sua sabedoria, sua alegria e simplicidade faziam dele o homem da minha vida. A pessoa que passaria comigo o resto dos meus dias.

Mas a cada dia que passava Gabriel ficava mais triste, estranho e indiferente. Eu me preocupava muito com ele. Achei até que o problema fosse comigo, mas não era; ele me amava muito.

Foi quando ele me contou uma coisa que mudaria toda as nossas vidas, os nossos sonhos e planos. Senti como se a minha vida tivesse acabado ali. Gabriel tinha AIDS. E restavam a ele apenas alguns meses de vida. Em prantos, perguntei á ele porque não havia me contado antes. Ele disse que não queria me fazer sofrer e muito menos me perder.

Em momento algum passou pela minha cabeça abandona-lo, ao contrário, fiz de seus últimos dias os momentos mais felizes da sua e da minha vida. Fazíamos tudo o que tínhamos vontade; viagens, passeios... Nesse tempo o meu amor por ele só aumentou e a sua vontade de viver era impressionante.

Mas aos poucos vi o homem da minha vida indo embora; não posso explicar o que eu sentia ao ver a pessoa que mais amava naquele estado, e sem poder fazer nada. Sem poder salvar o homem que um dia me salvou.

Em uma manhã de primavera, Gabriel se foi, aos vinte e quatro anos. Uma vida que, apesar de tudo, foi muito intensa.

Mas Gabriel me deixou a melhor lembrança que podia ter: a alegria de um dia tê-lo conhecido.

Ainda sinto muito a sua falta, e uma dor que não tem cura. Mas um dia eu o encontrarei, ouvirei o som de sua gaita e poderei ver... Meu Anjo Gabriel.

Amanda Campos
Enviado por Amanda Campos em 21/11/2006
Código do texto: T297370