Juliana: faces de uma trajetória. (QUEIRÓS, Eça. O Primo Basílio. São Paulo: Ática, 1982. 7ª ed.)

QUEIRÓS, Eça. O Primo Basílio. São Paulo: Ática, 1982. 7ª ed.

Juliana: faces de uma trajetória.

Eça de Queirós, um dos principais responsáveis pela introdução do realismo em Portugal, majestosamente, descreveu seus novos padrões de arte e sua visão da sociedade média burguesa de Lisboa em “O Primo Basílio”, publicado inicialmente em 1878. Dentro desse enredo cheio de críticas morais e personagens que evidenciam traços da grande força naturalista da época, tem-se o foco narrativo em 3ª pessoa e o narrador onisciente que desenrola a trama num tempo cronológico, sob uma sequência linear de fatos ocorridos em Lisboa.

Em “O Primo Basílio”, Eça contraria os parâmetros do romantismo ao dar maior importância a uma figura considerada de pouco prestígio, ou seja, uma empregada doméstica, de classe inferior aos demais personagens que protagonizam a história. Tal figura, chamada Juliana, consegue puxar para si, parte das atenções distribuídas na narrativa e a partir dela, percebemos os enlaces pretendidos pelo autor.

A empregada doméstica é uma personagem complexa, porém, bem construída. “Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana Couceiro Tavira. Sua mãe fora engomadeira [...]” (QUEIRÓS, 1982. p.54). De “sorte” o destino lhe foi cruel e ela própria deixou-se conduzir para o caminho da submissão. “Ficou sempre adoentada desde então; perdeu toda a esperança de se estabelecer. Teria de servir até ser velha, sempre, de ano em ano! Essa certeza dava-lhe uma desconsolação constante. Começou a azedar-se” (op.cit., p.55) Percebe-se então, que, de fato, a personagem já tinha um histórico marcado por instituições mágoas, as quais influenciavam no seu comportamento como empregada doméstica, independente de quem fossem seus patrões. Luísa, a proprietária da residência, a tratava com bastante rispidez e a antipatia entre ambas foi aumentando. Tais comportamentos ocasionaram a construção de um ambiente carregado de inveja, ganância e humilhação.

Segundo o autor, a personagem Juliana apresenta algumas características marcantes:

Devia ter quarenta e era muitíssimo magra. As feições, miúdas, espremidas, tinham a amarelidão de tons baços das doenças de coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam numa inquietação, numa curiosidade, raiados de sangue, entre pálpebras sempre debruadas de vermelho. Usava uma cuia de retrós imitando tranças, que lhe fazia a cabeça enorme. Tinha um tique nas asas do nariz. E o vestido chato cobre o peito, curto da roda, tufado pela goma das saias – mostrava um pé pequeno, bonito, muito apertado em botinha de duraque com ponteiras de verniz. (op. cit., p.16)

Observemos o cunho descritivo que o autor faz em relação à personagem. Temos, nesse contexto, características fortes que demarcam as amarguras e baixa valorização da Juliana. Era horrível vê-se naquela situação, sendo tão submissa e ora humilhada pela patroa. Sentia-se só e desvalorizada. A recompensa financeira também não lhe agradava e sempre media as posses e as mordomias que Luísa possuía. Embora desejasse tanto, nunca alcançara uma vida tão divergente da sua.

Para a sociedade as funções desempenhadas pelos profissionais estão classificadas de acordo com a “importância” numa espécie de pirâmide, onde são julgados os critérios de valor e, de modo geral, a função de empregada doméstica é uma das últimas no que diz respeito à valorização. Eça mostra-nos como se dava a vida de uma auxiliar do lar:

O quarto era baixo, muito estreito, com o teto de madeira inclinado; o sol, aquecendo todo o dia as telhas por cima, fazia-o abafado como forno; havia sempre à noite um cheiro requentado de tijolo escandecido. Dormia num leito de ferro, sobre um colchão de palha mole coberto de uma colcha de chita [...] sobre a mesa de pinho estava o espelho de gaveta, a escova de cabelo enegrecida e despelada, um pente de osso, as garrafas de remédio [...] (op. cit., p.52).

Essas eram as condições precárias pelas quais as empregadas domésticas, e inclusive a Juliana que há vinte anos vivia dessa forma, se sujeitavam. Apesar de sempre ter sido invejosa, as situações pelas quais havia passado, a tornara extremamente rancorosa e o desejo de vingança a possuía. Não se trata de tentar justificar os atos egoístas e medíocres de Julian ao encontrar as cartas que comprometeram a patroa, fazendo com que, dessa maneira, a Luísa ficasse submissa às suas ameaças. Para a serva, a situação poderia trazer-lhe o que sempre almejava: a liberdade financeira, a realização de um sonho em mostrar um negócio, uma loja e ser pela primeira vez a patroa. Mas seus sonhos esvaem-se, marcando a personagem como pessimista, negativista, infeliz com seu destino trágico e melancólico, perfazendo uma fiel representação do naturalismo.

Assim como Joana, temos vários outros “personagens’ da vida real, que se amargam por não terem uma vida idealizada e buscam extorquir de qualquer situação, meios com os quais possa reverter o quadro de dependência ou submissão. Os que possuem uma vida estabilizada e gozam de privilégios ou até mesmo regalias do seu próprio esforço, acabam por sentir-se melhores que os demais, humilhando-as e renegando seus direitos. Talvez, se Juliana tivesse recebido, durante sua vida de trabalho, dignamente, o que lhe era de direito, não tivesse se tornado tão amargurada e egoísta.

Jamille Araujo
Enviado por Jamille Araujo em 19/07/2011
Código do texto: T3105176
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