A MALA

Entro exausto na garagem do batalhão de infantaria do Exército brasileiro, um galpão alto, de estrutura metálica, com um quartinho no fundo. Reconheço pela farda, ao meu lado esquerdo, um atirador de elite a procura de alguma coisa entre os carros, a maioria da fiscalização. Concentrado, ele não me vê. Vou até ao fundo, na porta do quartinho está um soldado sentado ouvindo música em um fone de ouvido; chegando mais perto, pelo salto silencioso, não sei como ele conseguiu ficar na posição de sentido. Acredito que não esperava um sargento àquela hora da noite. Apresentei-me pelo meu nome de guerra, Martins, sendo o dele Marcos. Dou-lhe ordem de descanso. Incomodado com o som dos passos do atirador de elite, que ecoavam, peço para eu entrar no quartinho.

Abro a mala e o meu queixo cai. Enraivecido, já ia dando um chute na mala, mas me controlo, pois a mesma está cheia de pedras. Assim como eu, Marcos não entende nada.

Antes, perto do Batalhão, minha mão direita tremeu descontroladamente por uns quarenta segundos e isso não acontecia desde que fui promovido a sargento há uns cinco anos.

Meu chefe sabe que só pensar na possibilidade de viajar minha cabeça dói. Assim mesmo, me comissiona, penso em não aceitar a viagem, mas lembro que quando criança meu pai me obrigava a pedir desculpas por não obedecer a uma ordem de meu avô ou da minha mãe. Como castigo era obrigado a escrever cem vezes: “não posso negar obediência aos meus superiores”.

Olho desiludido para o chefe enquanto o mesmo me informa que a missão é levar uma mala ao comandante do batalhão. Ao contrário da maioria das pessoas que vêem em uma mala de viagem a possibilidade de conhecer lugares novos, fazer amigos, descansar; para mim representa distância da esposa, horas de desconforto, paradas para vômitos. O chefe, sabedor disso, tentou me animar declarando sua confiança em mim, entretanto deu um sorriso maldoso ao me informar que faria a viagem de ônibus.

Peguei o celular, liguei para minha esposa e pedi para não me esperar. De táxi fui em direção à rodoviária.

No ônibus, me sinto livre da mala por algumas horas, já que ela está no bagageiro. Deixo um saco plástico pronto para alguma emergência. Vomitar por exemplo.

Lembro de quantas malas já quebrei com meu chute de karatê, infelizmente até o momento não posso fazer o mesmo com essa. No espaço destinado às informações do usuário está escrito: “ultra-secreto”. Acredito ser algum tipo de armamento.

Quando cheguei ao Batalhão identifiquei-me na portaria, perguntei pelo comandante. O soldado em plantão me informou que o mesmo estava na administração do batalhão. Ponho a mala no chão na posição vertical, puxo a alça de metal e, auxiliado pelas rodinhas, caminho em direção a administração.

Deu-me vontade de entregar a mala a um dos

soldados que auxiliam na administração ao ser informado que o comandante estava me esperando com a encomenda no almoxarifado. Lembro-me que é uma missão secreta. Quando um militar recebe uma missão ele tem que ir até o fim e não é questão de lealdade, é que somos obrigados. Vai que acontece alguma coisa? É prisão na certa.

Continuei a minha missão, empurrando a mala. Resmunguei todo tipo de palavrão ao ver que a estrada não tem mais calçamento e não dá para continuar empurrando. Nem abaixo a alça de metal, a pego pela alça lateral e só agora percebe o peso. Pergunto-me irado se não colocaram chumbo na mala.

Cinco horas de viagem, fazendo o que não gosto, carregando uma mala sem alça! Ninguém merece! A alça não suportou o peso, quebrou e a mala caiu no chão. Dou um chute na mala, e quase chorando confirmei entre dentes: “É chumbo que tem nessa mala!”.

Depois de uns trinta minutos, já aliviado, resolvo continuar, só que não vou conseguir levar essa mala pela alça superior. O jeito é levá-la no colo.

Nem quero imaginar quantos animais morreram para a fabricação do forro dessa mala e não é normal o Exército usar malas com o forro de couro.

Logo à frente vi que a estrada voltava a ser calçada, e isso me aliviara.

Na pressa, tropeço num buraco e caio em cima da mala. Seu acolchoamento não aliviou o impacto do meu tórax e os meus nervos ficaram a flor da pele, literalmente. O nervosismo aliado à asma me dificulta a respiração. Não sei bem o tempo que fiquei agonizando, sei que foi longo. Não aparecia sequer um militar para ajudar, talvez pelo fato de que o céu estava quase sem estrelas, à lua minguante não clareava muito. Além de a mala ser da cor preta. Aumentava a vontade de abandonar tudo e sair correndo, mas nem para isso tenho ar.

Ainda sentindo dores, resolvi continuar assim mesmo. Para minha raiva, as rodinhas tinham se quebrado com o impacto.

Foi aos trancos e barrancos que cheguei ao almoxarifado. Apresentei-me a um senhor de idade que, pela roupa, julguei ser finalmente o comandante, mas não era. Meneio a cabeça negativamente quando o tal senhor avisou-me para ir até a garagem e lá abrir a mala, tirar tudo o que tem nela e arrumar, pois o comandante iria aparecer e queria tudo organizado. Completou dizendo que eu iria saber como organizar.

Antes de continuar sentei-me em um sofá e, desolado pedi água ao senhor de idade que me atendera. Enquanto ele trazia, ouço um toque de celular e pela música sei que não é o meu. Procurando de que lado vinha o som, descobri que vinha do compartimento frontal e pequeno da mala que carregava destinado para colocar escova dental, barbeador, sabonete. Não me pergunte como o celular ainda está inteiro depois de duas pancadas. Pego o celular e atendo. É o meu chefe perguntando se eu havia terminado a missão, “ainda não”, lamentei.

Exortado a continuar pego a mala prometendo a mim mesmo que arrancaria o slogan do Exército Brasileiro feito de bronze que estava na parte frontal.

E assim, aqui estou, esforçando-me para completar minha missão, tirar as pedras, deixá-las em ordem e esperar o comandante.

Marcos se oferece para ajudar. Agradeço, por que eu quero terminar sozinho, com olhar enigmático acompanha-me tirar pedra por pedra da mala e arrumá-las.

Após tirar todas as pedras e também organiza-las por tamanho, percebo num compartimento interno um pacote envolto com papel de parede com a inscrição: “abra Martins”. Abri e quando vi, desmaiei.

Fui acordado por um balde de água. Recebi as homenagens do Marcos e do comandante que acabava de chegar. Acabava de ser promovido, passando de sargento para sub-oficial. Dentro do envelope o certificado de honra ao mérito, uma medalha e minha nova farda. Instintivamente agarrei-me a mala beijando-a como quem beija um troféu.

João Áquila
Enviado por João Áquila em 17/02/2007
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