O MICROFONE

Vou ao púlpito, pego um microfone, minhas pernas e barriga fazem do momento, uma tormenta. Apesar disso, controlo-os e transmito o que tenho a falar. Mas não foi sempre assim, antes na igreja, tive várias oportunidades de deslanchar, mas uma escuridão na memória, aliada ao meu desarranjo biológico, me fazia à bancada em menos de um minuto.

No auge da minha adolescência, como técnico de som de um programa radiofônico, conheci vitrola velha - nome que dava ao microfone que comprei para transmitir o programa. Como num ritual de qualquer religião, às dezoito horas, íamos ao ar, eu e vitrola velha, de domingo a domingo. Ele, via rádio FM, era objeto principal, íamos para vários lares, confirmando uma pesquisa, que, segundo ela, por questão de identificação, a maioria das pessoas gosta de programação local, por mais horrível que seja.

Um convidado, imaginando estar num palanque implorando votos, fez de vitrola velha um encharcado de cuspe. Aborrecido, deixei-lhe um severo sermão sobre como falar ao microfone, explicando que vitrola velha não era surda nem vaso sanitário.

No início de uma das transmissões, ainda técnico de som, aumentava e baixava o volume do som e do microfone, o locutor recebeu uma inesperada visita de um amigo que há muito tempo não via. Sem hesitação, passou o comando do programa para mim, deixando-me um pequeno texto para ler.

Fugindo do padrão, colocava músicas e músicas em seqüência. As minhas mãos, que pareciam regidas pelo compasso de um motor Toyota, em ponto morto, fazia-me apertar o microfone como se o dito cujo fosse um passarinho escapando das minhas mãos. O instrumento em questão era um desses encontrados em barracas de feiras livres. Não tinha marca de referência no seu dorso de cor preta, cinco reais e noventa e nove centavos já era mais do que seu preço real. Sem controle das mãos, pressionava seu dorso de fabricação paraguaia e de plástico, podendo quebrá-lo. Um choque elétrico seria a última coisa que eu queria.

Consegui falar lendo o texto que o locutor me entregou. Ouvindo o som no retorno, não acreditava ser a minha voz, parecia um berro de carneiro em uma corneta velha.

Por falta de verba ou de interesse, vitrola velha passou a ser o único microfone da emissora, para desgosto dos colegas. Habitualmente falhava com os colegas, como cortes na fala, mas, comigo, era um companheiro fiel do qual eu me orgulhava e não aceitava maus tratos.

Com o meu silêncio, nos momentos em que deveria estar falando, olho-o com um olhar de súplica, como se procurasse nele o dever de casa. Como professor dedicado repreendia-me ensinando a improvisar e controlar a memória. Ele se tornou, assim, uma testemunha silenciosa das bobagens e de redundâncias como ‘amanhã voltaremos de volta’ que eu transmitia para os ouvintes.

Em uma das transmissões, percebi que vitrola velha não estava lá. Substituíram-no por um outro, que os colegas adjetivaram de microfone de verdade. Um desses colegas, irritado por ter brigado com a namorada, o jogou no chão, espatifando o instrumento que fizera toda aquela gentalha em celebridade. Seus muitos pedaços foram jogados no lixo sem lhe ser dado a oportunidade de uma despedida como um último ‘alô’.

Mesmo sem a vitrola velha minhas dificuldades no uso do microfone permanecem, mas já consigo controlá-las. Preciso repetir?

João Áquila
Enviado por João Áquila em 17/02/2007
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