Onde Está o Espanto?

“Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente.”

Krishnamurti

“Como dizia o Frei Beto: ‘quando eu era criança o que valorizava o tênis que eu usava era eu usar o tênis, eu dava o valor ao calçado, agora é o contrário’…”

Fragmento de uma palestra do filósofo Mário Sérgio Cortella

“Surpreender-se, estranhar, é começar a entender. É o desporto e o luxo específico do intelectual. Por isso o seu gesto gremial consiste em olhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza. Tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para um par de pupilas bem abertas.”

José Ortega y Gasset

“O começo de todas as ciências é o espanto de as coisas serem o que são.”

Aristóteles

“Ter espírito filosófico é ser capaz de se espantar com os acontecimentos habituais e as coisas comuns, pôr-se como objeto de estudo o que há de mais geral e de mais vulgar”.

Arthur Schopenhauer

ONDE ESTÁ O ESPANTO?

Em grego, a palavra “Thauma” significa “espanto”. Era usada por filósofos clássicos como Platão e Aristóteles para designar o princípio dos sentimentos de admiração e perplexidade acerca dos mistérios da existência. A partir dessa percepção, o homem se sente compelido a criar linguagem, conceitos, artes e ciências na tentativa de explicar o vasto mundo circundante. As árvores, a chuva, a luz, a escuridão, as nuvens, os raios, a fúria, a paixão, a angústia, a libido, o amor e etc., eram envolvidos igualmente, independentes de serem abstratos ou concretos, nos braços do Thauma. E esse sentimento durou e permanece até hoje em qualquer área de relação humana. Porém, uma mudança repentina no cenário social, político e econômico, freou bruscamente e extirpou em grande escala o sentido de espanto e admiração nas sociedades, principalmente as ocidentais.

O surgimento do regime capitalista e a utilização de técnicas de comunicação de massa com a proposta de velocidade e quantidade, introduziram um novo pensamento uniformizador com tendências a banalizar aquilo que nos é normal, habitual, corriqueiro e até mesmo aquilo que nos possa parecer estranho, diferente e incomum. A tecnologia e ciência avançam a passos largos e toda e qualquer novidade logo é recebida com pouquíssimo espanto. A admiração por sua vez, foi educada de forma a não ter paciência: ela precisa de mais atributos a cada dia em produtos, serviços e ideologias, para que se possa consumi-los sem perder o ritmo frenético da idolatria alucinante pela rapidez e quantidade. Dessa maneira, nada realmente é absorvido e quase tudo passa despercebido. Pela incapacidade de acompanhar as informações na velocidade da luz, a sociedade fica a mercê da “Indústria Cultural” que molda e transforma em mercadoria a cultura. Sendo a cultura a mais forte reação de identidade de uma determinada sociedade, o domínio da indústria sobre ela se torna evidentemente uma ameaça ao sentido pleno de Thauma.

Com a necessidade de Ter em detrimento de Ser, a cultura baseada no consumo fica fadada ao empobrecimento e a “idiotização”. Nessa condição também se encaixa a existência humana. Há um forte incentivo em agir e depois pensar, na ideia de que o trabalho árduo e sofrido dignifica, que apenas a economia pode salvar, de que o consumo é necessário a qualquer custo. Surge uma sociedade de indivíduos máquina, sem tempo ocioso para pensar, com dívidas para se preocupar e com desejos para satisfazer. Há um desestímulo na literatura, na pintura, na dança clássica e na mais forte das representações artísticas de uma sociedade, a música. A arte sofre baixas incomensuráveis. Filosofia, sociologia e antropologia, são fortemente desencorajadas com poucos empregos, baixíssimos salários além de sofrer certa discriminação com a imagem de “improdutivos” para o mercado ou de serem áreas para “viajar na maionese”, como na gíria. Pensar fora dos padrões da indústria se tornou motivo de insanidade. Tudo é natural, nada nos é estranho. Onde está o espanto?

A proposta desse sistema de cultura comercial é dar a maior sensação de exclusividade ao indivíduo sem que no fundo não se perca a ideia de pertencer a um grupo. Isso se torna um problema quando esse pseudo-exclusivismo pende a uma individualidade essencialmente egoísta. Dessa maneira, há a formação de pessoas extremamente conformistas, alienadas, dóceis, manipuláveis, agressivas, desinteressadas e nada espantadas. A cultura exclusivista então cria personalidades que serão consumidas e seguidas, sem a avaliação crítica ou quase nenhuma resistência da sociedade já inserida nesse contexto. A proposta é simplesmente massificar visando o lucro imediato. É claro que nem tudo parece um filme de teorias conspiracionistas; nem tudo é tão horripilante assim, já que o avanço econômico inveterado à custa da cultura melhorou a condição de muitas famílias. Mas a que custo?

A freqüência do Thauma atualmente é muito baixa e quando acontece é extremamente rápida. Não nos surpreendemos mais nem com a velocidade ou com a lerdeza, nem com a condição miserável de alguns e a riqueza de outros, nem com as mudanças quase imperceptíveis ou com as coisas que ainda não mudaram. É preciso estranhar o que é normal e também o incomum; é preciso admirar mais e denegrir menos; é preciso mostrar resistência quando preciso e ter paciência para absorver melhor; é preciso pensar de forma exclusiva para o bem coletivo. Talvez assim a cultura se reerga lentamente e aos poucos, não totalmente, se foque mais no Ser do que no Ter.

João Brito
Enviado por João Brito em 11/06/2013
Reeditado em 10/09/2013
Código do texto: T4336716
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