ATÉ OS VERMES SABEM

Encarcerado em sua casa no Engenho Novo, Bento Santiago fixa o olhar vencido, envolto por feições vincadas, nos pássaros com grinaldas nos bicos, pintados nas paredes. Os pássaros, seus pares do passado... As grinaldas, flores de sua juventude... Sim, disfarçados de inofensivos como esses bichos frescos, seus antigos pares levaram o Bentinho com eles, para a terra dos pés juntos. Agora, só resta o Casmurro. Tem os olhos murchos de quem cedeu tudo para os outros, ainda que na marra. O amigão Escobar roubou-lhe o que há de mais sagrado para um homem: possuir com exclusividade a fenda da mulher amada e ser o único responsável pelos furores e descomposturas que de lá provêm; D. Glória, a santa mãe, quase o condenou ao pecado (contra si mesmo) do gozo solitário pela vida inteira; Capitu e seus olhos de ressaca engoliram sua ilusão; Ezequiel cravou sua vergonha na cara, exibindo a aparência do pai legítimo. Os vermes nada sabem sobre os livros que roem, como confidenciou-lhe um bem gordo e longo, certa vez, mas sobre filhos mortos de esposas infiéis (que eles também roem, graças a Deus), sabem sim. E justamente porque os cornos jamais se extirpam, tem plena consciência de que todos conhecem sua sina e o chamam, por cortesia, de Dom Casmurro, quando intimamente dizem: Dom Cornudo.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 23/02/2014
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