O Meu Cachorro

O Meu Cachorro

Uma redação primária.

O meu cachorro era uma cadela. Uma enorme cadela com 70 centímetros de altura. Era uma cadela muito dócil. Muito meiga. Incapaz de um gesto brusco. A cara dela... Bem a cara desmentia tudo. Era muito assustadora. Não me lembro se foi por causa dessa fuça ou por outro motivo, mas ela começou a ser chamada de Leoa. Mas, ao contrário que algum zoófilo possa pensar, essa cadela me foi presenteada quando eu já tinha mais de 30, com mulher e três filhos. Mas, vamos ao princípio.

Morávamos numa cidade muito tranqüila, no interior do Amazonas e o terreno da nossa casa tinha uma cerca básica. Nada de muros intransponíveis, desses que se vê pelas cidades maiores, ou outras seguranças. Um cachorro viria a calhar para intimidar possíveis invasores, na maioria composta de meninos atrás de uma bola ou de um papagaio de vento.

Um amigo me ofereceu a Leoa. Pequenina com patas grandes. Quis recusar, mas meus filhos me impediram. Engraçaram-se na Leoa e, sem saber de onde, surgiu uma mamadeira e eles se divertiram vendo-a mamar.

Um pouco maior, ela adquiriu um hábito: toda vez que eu me dirigia ao carro, ela vinha se deitar em frente à porta. Quando saia com as crianças ela entrava junto e passeávamos como se ela fosse parte da família. Um dia, de manhã, entrei no carro e não reparei que ela havia se deitado em baixo dele. Quando senti o obstáculo na roda e o ganido da cadela, entendi tudo.

Carreguei a coitada até dentro de casa, onde a deitei sobre uma toalha velha. Olhou-me com os olhos doloridos, mas dóceis. Senti que me perdoava. Gemeu e ganiu o dia todo. Gemeu e ganiu a noite toda. Gemeu e ganiu no dia seguinte e na noite seguinte. Rejeitava água e comida. Para completar, a única veterinária da cidade fora cuidar de sua saúde na capital, pois não confiava nos recursos que seus três colegas, que cuidavam dos humanos, tinham à sua disposição.

Antes que o dia amanhecesse, fui olhar a coitada. Havia muito sangue no pano onde estava deitada. Eu tinha que acabar com aquele sofrimento. Carreguei-a para o carro, deitei-a na mala. Ela me olhou com olhar triste: “Você compreende, né Leoa?”, pensei ter dito. Voltei e apanhei o rifle. Pus o rifle atrás do banco e me preparava para entrar no carro, quando vi meus três filhos parados em frente à casa. Os três com roupas de dormir. Olharam-me sem proferir palavras, numa despedida muda.

Abri a mala do carro, tirei a cadela, levei-a de volta pra casa. As crianças arrumaram um pano limpo. Sai e quando cheguei em casa, ao meio dia contaram-me que ela se levantara e comera. A cadela me olhou e eu juro que vi um sorriso maroto.

Depois dela apareceram outros cães. A Leoa com seu porte gigantesco e sua cara de poucos amigos, começava a atrapalhar. Assustava os clientes da loja de móveis que tínhamos ao lado da casa. Um cliente propôs levá-la para casa, pois ela chegara na idade de procriar e ele queria acasalá-la com um cachorro da mesma raça. Permitimos. Ele nos enganou. Levou a Leoa pra região de garimpo, bem longe da cidade.

Passaram-se dois anos. Um dia, num final de tarde, estava à beira do Rio, despedindo-me de uns amigos que iriam viajar de barco para Manaus. De um barco que navegava a cerca de 200 metros de distância, vi saltar um cachorro que veio nadando para a margem. Veio correndo pela rampa de cimento e saltou colocando os pés dianteiros no meu peito. Lambia meu rosto, ganindo de satisfação. Escorreguei e cai, e a Leoa continuava lambendo-me e ganindo. Abracei-a e depois a levei pra casa.

No outro dia, alguém que vira tudo me interpelou:

- Eu a vi pular em você, mas você caiu só depois. Não entendi por que. Foi por causa do peso dela?

- Foi por causa do peso do meu remorso - respondi deixando uma enorme interrogação na cabeça do homem.

Luiz Lauschner
Enviado por Luiz Lauschner em 04/06/2007
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