Capítulo 9 - TOMÁS DONAMA

O coração se torna extraordinariamente pesado quando surge dentro dele uma repulsa por aquilo que é capaz de tirá-lo da imobilidade absorta em que está. Tudo dentro dele contempla o absurdo de um mundo absurdo, sem suspeitar dos segredos além da espessura viscosa de suas paredes. Sonhos penetram este pequeno palácio do tamanho de um punho e deixam ali pensamentos indiscretos, retorcidos, abalados, pilares que acabam por sustentar indecifráveis rascunhos e alcunhas de uma vida não pronunciada. Há, neste coração, algumas estátuas enferrujadas, outras enegrecidas, outras ainda novas, recém erguidas. Todas têm os olhos vivos, observando, ponderando, e podem enxergar na penumbra que as promessas esquecidas concebem. Enquanto os sonhos envelhecem, a natureza humana continua ativa. Eis aí uma grande aventura para o coração. Festa sagrada para a vida, esforço esplêndido que as canções da alma veneram. É uma árvore que se curva para o chão tanto quanto se ergue para encontrar o céu; seus galhos dançam no vento, se inclinam para desabrochar na confusão de um abraço prolongado em torno da multidão dos sentimentos.

O contato com Júlia fez recomeçar uma surda germinação. Eram os primeiros raios de sol depois da relação com Leila Lisboa, ainda que a sensação fosse de um frio arrepiando o passado. A seiva dessa primavera antiga fluía pelas veias outra vez, sacudia os galhos para semear a terra, para pôr um pano branco sobre algumas estátuas e retirá-lo de outras. Um sonho desmamado, as belezas cativantes da amante, um perfume, um toque, a alegria de lembranças sãs compartilhando coisas que mesmo a meditação não envolve, que a tristeza não compreende e as ruas não pronunciam. A intimidade desse chamado inebriante constitui padrão de necessidade distinta e melancólica, contemplando a ausência do homem para vislumbrar a presença de Deus. Tomás Donama fazia bem em rodear esse desejo. É subproduto. É cultura! A vida não é dogmática, é uma pretensa alegria; sobre seus contentamentos e tristezas, submissões e intolerâncias, seus pensamentos manifestos e sentimentos murmurantes, haverá sempre um vazio pairando na explicação. Dor e prazer não têm caminhos certos: são desesperos meditados com o mesmo torpor. Júlia também fê-lo sentir-se dolorido, miserável em toda a sua alma impura, mas agradeceu aos céus a cara satisfação que tivera, a temperatura acolhedora do corpo, a saudável insistência de singulares preocupações. Abraçá-la foi uma sensação forte, ardor desregrado, fértil e febril otimismo de um não sei o quê de bem-aventurança. Neste estado de espírito passou o dia toleravelmente. À noite, depois de contar e recontar quanto dinheiro ainda tinha, setenta e cinco reais no total, resolveu que devia sair e se comportar como uma pessoa decente do seu tempo. Vestiu suas melhores roupas e calçou os sapatos hesitando sempre se queria realmente fazer isto.

As ruas estavam escuras e frias, talvez fosse pelo seu sentimentalismo, talvez não. Adentrou um pub. Não era um palácio ou coisa parecida, mas simplesmente um ninho da juventude local. Criaturas trajadas com aquilo que suas escolhas proporcionavam, estavam espalhadas em pequenos grupos por lá e por cá, em mesas ou em pé, cheias de uma decência conservada através de atitudes defensivas.

Entrou tendo a sensação de haver pisado em merda. A proximidade com aquela atmosfera não desmantelava a noite, mas simplesmente dava voltas na mente tentando adaptá-la. Enquanto isso Tomás temia o ridículo de ser questionado a respeito da sua ida até ali e não saber o que responder. Realmente não agradava adentrar lugares com grande circulação de pessoas, porque, no fundo, não tinha vontade, não sentia nenhuma virtude que o levasse a acreditar que encontraria ali algo senão um emaranhado de pretextos evasivos, contratempos que no fim se revelariam apenas uma pura e simples ilusão. Contudo, para se entreter, para se associar, teria de seguir certos preceitos. Raramente fazia isso, mas precisava. Era um contraste necessário com sua verdadeira essência, do contrário, a sua vida, cheia de um amor ardendo expressões solitárias e incalculadas, desordenadas quanto à interação com outras pessoas, não teria razão de ser nem uma nem outra coisa, mas apenas um estúpido vazio.

Existia nestas situações algo de comovente, algo de repente mais significativo do que uma porção de pontas de cigarros e garrafas vazias, espalhadas negligentemente na solidão da casa. Foi ao bar e pediu conhaque. Sentou, escorou os braços no balcão e entrecruzou os dedos. Observou o ambiente e seus anúncios intrigantes e instáveis, tendo de admitir que seu estado de espírito, destituído de Júlia desde que ali entrara, não condizia com o lugar, tornando nula a sua presença. Resolveu tomar o conhaque e sair o mais rápido que pudesse. Resmungou consigo o fato de haver gasto oito reais em vão: cinco para entrar, três pelo conhaque.

Cumpriu a obrigação de equiparar sua vida com as de outrem, mas não chegou a nenhuma nova conclusão.

Esse isolamento, os sonhos idos e os recém-nascidos, a melancolia mundana, as lembranças, essa própria narrativa, à exceção da vida alheia, continuavam como antes, prontos para atravessar a noite com a mais profunda insatisfação. O coração era um cálice se esvaziando pouco a pouco, e que a princípio, pelos meios convencionais, não tornaria a ser preenchido. Doses sagradas que em algum lugar vinham sendo derramadas e perdidas, lastimando e apontando para o peito a lâmina do tempo.

Voltou para casa triste como havia de ser, mas recebeu a dádiva de uma garrafa de vinho pela metade esperando os últimos goles sobre a mesa. E mais: lembrou que havia guardado um baseado na gaveta da escrivaninha. O fato parecia se projetar de dentro do coração do mundo, resplandecente. Triste, mas excitado, pegou a garrafa, buscou o baseado e foi para a varanda. Concerto divino. Cada gole e cada tragada compreendiam compassos de uma melodia cordial que não sugeria diretamente ao sentido, mas daquela maneira na qual a vida se dilata autêntica, mais lógica do que todas as outras que possam existir. De instante a instante atravessava o próprio íntimo e via a si mesmo exercendo tarefas providenciais. Entregou o coração, assentiu à contemplação sofrendo seus efeitos bem-aventurados. Mas foi por pouco tempo. Logo a bebida e o baseado acabaram. Continuou sob os efeitos por pouco mais de uma hora, depois restou apenas a sensação de sonho interpelado pela realidade fatal. Permaneceu na varanda, simplesmente olhando para o outro lado da rua cada vez mais escura e esquecida. Ficou mais alguns minutos, apreciando o que ainda pôde apreciar. Tempo e espírito em vão. Desistiu e foi para a cama, refletindo nos pensamentos palavras com pouca expressão. O bem-estar conquistado, suspenso de repente. Nesse meio tempo as paredes permaneceram pacíficas. A penumbra do quarto não amedrontava. É possível que sempre tenha sido assim.

DonnieDarko
Enviado por DonnieDarko em 17/07/2007
Código do texto: T568457