Meus Tempos de Criança

Pulávamos as cercas e corríamos os becos estreitos da pequena e pacata cidade de Lavras da Mangabeira – CE, na década de 80. Sol escaldante, lugar longínquo. Lavras da Mangabeira é uma alusão à atividade que foi exercida no local, a mineração, e o nome da árvore abundante na região, a mangabeira. Íamos à busca de intensas aventuras nas proximidades da Vila dos Bancários. Éramos coletores de esperança, pois, bulíamos nos lixos a céu aberto e, colhíamos brinquedos seminovos de crianças riquinhas e mal agradecidas... Levávamos molas-coloridas, vai-vem, bate-bate, amoeba,aquaplay, jogo de pescaria, fofão, moranguinho,mini-game, super- Nintendo, lousa mágica, maquininha de escrever, cubo de Rubik, microfone da Xuxa, Susi, Barbie Hair, pirocóptero, ioiô da coca-cola, comandos em ação, boneco He-Man,pega-vareta,boneca da Estrela sem braços, jogo da vida faltando peças, carrinhos sem pneu, bolas com pequenos furos, panelinhas sem tampas e uma infinidades de brinquedos jogados num canto do esquecimentos que encontrados por nós ganhavam VIDA! Levávamos para casa toda aquela sucata... para nós TESOURO... É como fôsseámos Ali-babá(pobre lenhador árabe) adentrando na caverna dos quarenta ladrões que é aberta por: - "Abre-te, Sésamo", e fechada com as palavras "Fecha-te, Sésamo". Quando os ladrões saíam, Ali Babá entrava na caverna, e levava parte do tesouro para casa. Assim íamos ao bairro abastado da terra seca em busca de brinquedos usados para distribuir para as crianças sem teto, sem comida e sem infância!

Tempos remotos... Saudades sem fim...

Saborosas tardes que se prolongavam durante todo o período de férias.

Chegávamos a minha casa molhadas de suor e com um forte e péssimo odor (“cheirinho de macaco” e “cara de mucura” ) mencionada por mamãe. Lavávamos nossos tesouros e depois de consertados ou diríamos “curados”... Estávamos prontas para visitar os mais necessitados... Aqueles que os pais estavam desempregados... Naquela época para não passar fome, o pai se retirava do Ceará e partia para São Paulo... Lugar onde havia comida em abundância.

Lembro-me quando meu pai chegou da cidade da garoa (SP)... Malas entupidas, pele alva, um jeito diferente de pronunciar as palavras que me encantava... Estilo paulista... Sentávamos aos seus pés e ouvíamos suas histórias miraculosas e suas mágicas tenebrosas... Meu pai era um gênio misterioso, mesmo sendo analfabeto. Porém, tinha um defeito, meu pai era muito ciumento. Ciúme doentio.

Nos finais de semanas íamos à missa, ouvir os longos sermões... Minha mãe vestia a melhor roupa e todos saíam a pé, conversando... As crianças partiam na frente, sorridentes e entusiasmadas, todas de mãos dadas, formando um enorme cordão, fechando a avenida principal. No momento do sermão fugíamos de nossas mães e íamos ao presídio na rua de cima, visitar os presos... Homens sujos e barbudos que causava em nós um sentimento de piedade e um certo pesar.

Em Lavras da mangabeira era assim, quando chovia virava festa, até o prefeito caía no aguaceiro! A alegria estampava na face dos 31 mil habitantes sedentos. E, quando a chuvarada caía de madrugada, era um Deus nos acuda! As mulheres saíam alvoroçadas em busca de potes, panelas, baldes, tambores e uma variedade de objetos que serviriam como reservatório. A água era escassa e vista como um bem precioso na nossa região nordeste. Aqui o clima é tropical quente e semiárido. As principais fontes de água fazem parte da bacia do rio Salgado. A atração da criançada era a chegada do caminhão pipa... Coisa semelhante à chegada de um circo! Os olhos de mamãe brilhavam... Não sabia direito o significado de seca, mas podia sentir a tristeza da natureza, o cinza da caatinga, a magreza do bode, da cabra, da ovelha e do jumento... A falta de alimento abalava os ânimos dos moradores e fome adentrava os lares. Maldição constante! Morte, dor, desidratação, sofrimento. Muitos lares eram desfeitos, pois pais quando partiam para as grandes cidades não retornavam... Ouvi dizer que alguns deles ficavam bandoleiros e esqueciam seus filhos e esposas. Sem expectativa de vida, as mulheres viraram “sendeiras”, isto é, mulheres separados do marido. Porém, em uma cidade pequena isso era motivo chacota e preconceito. Coitadas! Abandonadas, sofridas e agora excluídas por uma maioria cruel e perversa. Sociedade machista. Sendeira era mal vista aos olhos da beatas religiosas. Usavam uma expressão “mulher da vida” para esse tipo de pessoa. Não entendia muito bem, mas mesmo pequena, não concordava com a ideologia. Povo idólatra e cheiro de superstições. Certa manhã de domingo no ano 1981 ao acompanhar mamãe à missa, quase morri pisoteada por um bando de mulheres histérica em uma procissão, era um cortejo a frei Damião. Segundo os moradores era um santo. Minha mãe tentou pegar na orla de seu “vestido” e sem perceber soltou-me. Cai em meio à multidão, e, me pisotearam. Gritei... Por milagre, papai apareceu naquele fuzuê, e levantou-me. Suspirei profundo e disse que nunca mais pisaria naquele lugar. Dentro de mim uma voz suave e calma bradava... “O único Mediador entre Deus e os homens é Jesus Cristo, o justo.” Não podia contar isso para mamãe, pois, acredito que seria repreendida. Tradição romana e ponto final.

Entrei na escola pela primeira vez aos 7 anos, não sabia ler nem escrever. Usávamos uma saia de prega azul, meio branca até ao joelho, conga azul e blusa branca de botões.

Tínhamos muito medo de errar. A disciplina era rígida, decorávamos enormes questionários, não podíamos opinar e criar... Só reproduzir... Obedecer e ouvir... Educação bancária. Como se o aluno fosse um depósito vazio, sem conhecimento. Hoje as coisas mudaram em nossa cidade. Há mais construção e liberdade de expressão. Os alunos estão cheio de “querer” e quase não querem estudar. Infelizmente, eles não sabem aproveitar a democracia.

O ônibus de papai enchia nas férias. Íamos no sítio Curralinho, a três léguas de Lavras, na casa grande de vovó Emília Germano da Silva. Cheiro de domingo. Velhinha simpática que fumava um enorme cachimbo – fumo de rolo – e fazia cafuné como ninguém. Nas noites de lua cheia sentávamos no alpendre e nos pequenos tamboretes de madeira e ouvíamos ao som da sanfona, tio Geraldo e tio Bosco tocando melodia do rei do baião Luiz Gonzaga! Arrasta pé até o dia amanhecer... Ríamos das jovens matutas e acabrunhadas com seus cabelos mal repartidos e seus grandes laços vermelhos de fita. As luzes da lamparina observavam o forró nordestino familiar, todos dos arredores, primos, tios, parentes de primeiro, segundo e terceiro grau... melodia, alegria e por fim, dormíamos nas imensas redes armadas por vovó... E o pior de tudo era que tínhamos que dividir a rede com alguma prima...

Antes de o galo cantar, levantávamos e íamos às veredas no trajeto da cacimba com vovó em busca de água fresca. Cheirinho de café e bolinho frito! O quintal abarrotado de animais: pavão, pato, galinhas d´angola, cachorro, gato, marreco e outros mais. Vovô, encostado numa rede, observava tudo. As crianças após o café saiam em disparadas. Ganhávamos os quintais e íamos em busca de aventuras: subíamos em árvores, tirávamos leite da teta das cabras, corríamos dentro de uma grota seca, rio temporário, chupávamos cajá, seriguela, umbu, juá, mandacaru e perto do meio-dia andávamos no açude de uma saloba e escura. Éramos felizes.

Namorar naquela época era coisa séria. Havia romantismo e respeito. Namoravam para casar e construir uma família. Agora, a moda é namorar pelado, ficar... Hoje, em Lavra da Mangabeira, os bancos das praças viraram ponto de droga ou bordel. Ontem havia risos das crianças com suas brincadeiras de rodas e batins, na atualidade o que vemos são homens maltrapilhos com seus vícios e drogas malditas, aprisionados e sem vida.

Meire Cavalcante
Enviado por Meire Cavalcante em 08/10/2016
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