Neblina nas Terras de Tibiriçá

Neblina nas Terras de Tibiriçá

Na minha infância (anos 50), morando a meio quilômetro da Estação de Santo André - SP, eu me encantava com a densa neblina matinal. Logo cedo mal se enxergava metros adiante. Eu aguardava ansioso o momento de acompanhar meu pai até a fábrica da Rhodia, “do outro lado da Linha do Trem”. Era um exercício matinal criado por meu pai, para induzir hábitos saudáveis aos meus irmãos mais velhos. Estes torciam para amanhecer garoando, única forma de escapar ao “treinamento militar”, como eles diziam. Até 1953 eu era o caçula e tinha o privilégio de seguir montado nos ombros do meu pai ou irmãos, para não atrasar a marcha forçada. Seguíamos ligeiro pela Avenida XV de Novembro até as ruas Gal. Glicério e Bernardino de Campos, para cruzar a via férrea. Se as porteiras estivessem fechadas, usávamos a Passarela. Diziam que o material para construção da passarela tinha vindo da Inglaterra e eu ficava imaginando (fantasiando) o esforço para transportar peça por peça dos navios até o porto de Santos e depois até nossa cidade, subindo no “lombo das mulas” a Serra do Mar, pelas trilhas indígenas. Algumas vezes as composições se aproximavam justamente quando estávamos sobre a passarela e era possível assistir a locomotiva surgir no meio da névoa espessa, antecedida pelo estridente apito e fragor dos trilhos. Imagens inesquecíveis. Íamos até a Portaria da Rhodia, meu pai nos fazia algumas recomendações e ia trabalhar. Nós voltávamos comentando sobre o que havia sido dito no trajeto, pois meu pai sempre instigava meus irmãos, contando sobre as origens dos nomes das ruas, dos estabelecimentos comerciais da cidade. Na volta eu sempre dava uma escapada, entrando nas lojas, bares, açougues. As casas de ferragens me fascinavam. Meus irmãos tinham que me arrastar à força. Me recordo que, em alguns domingos, meu pai nos acordava logo cedinho, dizendo "- Hoje iremos dar um passeio na Europa." Então, nessas ocasiões não iríamos na Missa da Catedral do Carmo pela manhã. Meus irmãos mais velhos (sou o nono filho) se levantavam emburrados, antevendo a longa caminhada, passando pelo "Morro Vermelho", até chegar nos Altos da Rua Oratório (a Paróquia Senhor do Bonfim era nossa primeira parada), e o Cemitério do Camilópolis. Passando pelas ruas meu pai ia nos ensinado nos nomes dos países (apontava para as placas) e suas capitais, características de cada povo, folclores. Meu pai era uma verdadeira enciclopédia, nos ensinava algo e depois nos provocava, sorrindo, fazendo perguntas inerentes. Nessa caminhada ele ia alternando o roteiro, para pesquisar preços de terrenos, até chegar na Rua das Maravilhas, esquina com Av. Nevada, onde possuía alguns lotes contíguos, não murados e cobertos por denso matagal. Mas ali era baixada e ele pretendia vender os lotes para comprar outros em locais mais altos, à salvo de alagamentos. Algumas vezes, parava para conversar com moradores, perguntando sobre o valor dos terrenos, e nesses momentos nós aproveitávamos para saciar a sede. O retorno algumas vezes era pela Rua Laureano ou pela Rua Leonilda (Paróquia São Camilo De Léllis), Rua Sidney, em direção à Avenida Utinga (morro abaixo) até a Al. Vieira de Carvalho (em Santa Terezinha), para uma visita à nona Angelina Sasso e tios Emília e Emílio Sasso, que moravam na Rua Pedro Álvares Cabral. Dalí seguíamos até a Rua Oratório, passando pelo Clube da Rhodia, até cruzarmos novamente as Porteiras, em direção ao Bairro Jardim. Não consigo relembrar quantas horas durava aquele verdadeiro périplo, mas voltávamos sedentos e famintos. E eu, feliz da vida, ia pesquisar nos livros de geografia e história dos meus irmãos, para saber mais sobre os países e personagens históricos citados por meu pai, durante a caminhada. Minha atração maior era sobre as tribos indígenas e os colonizadores. Os feitos do Cacique Tibiriçá e de João Ramalho, dos bandeirantes e dos jesuítas, as contínuas divisões territoriais, o surgimento da nossa Villa de Santo André da Borda do Campo, a implantação da Villa de São Paulo de Piratininga, em uma aldeia do Cacique Tibiriçá, justamente onde hoje está o Pátio do Colégio. Antes mesmo de iniciar o curso Primário, eu já havia aprendido a ler e devorava os livros e cadernos escolares dos irmãos. E passei a chamar de TERRAS DO CACIQUE TIBIRIÇÁ todo o território hoje integrante da Região Metropolitana de São Paulo até a Ilha de São Vicente (originalmente Ilha de Goiaó).

(Juares de Marcos Jardim – “o Sacy Pererê do Grande ABC” - WebRepórter ABCD Rádio Livre – Escritor, historiador, percussionista)

Juares de Marcos Jardim
Enviado por Juares de Marcos Jardim em 07/09/2020
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