Parte 1 - por que?

Checralla Furtado

PARTE 1 - MARCAS PROFUNDAS

Seu nome é Jesus. Se bem me lembro, foi aos 6 ou 7 anos que ouvi esse nome ser pronunciado pela primeira vez. Foi nas reuniões de um Centro Espírita Kardecista o qual minha tia Mylene frequentava. Com as outras crianças, eu gostava muito de cantar as musiquinhas que falavam coisas sobre Ele. Tia Mylene nos levava, meu primo Matheus e eu, para uma espécie de catequese. Tinhamos quase a mesma idade e simpatizávamos pelo tal Jesus que as músicas diziam respeito. Cantávamos " quando ele passa tudo se transforma / a tristeza vai, a alegria vem". Gostava também de uma outra música que todo mundo sabia, menos eu. Essa eu ouvi na escola e foi a Tia Maura, professora da outra turma da 2a série do antigo Ensino Fundamental quem ensinou para a turma dela. Isso foi durante a apresentação das crianças na Escola Municipal França, por ocasião da comemoração do dia de ação de graças. Ouvia o coro infantil da outra turma proclamar: "É impossível não crer em ti / é impossível não te encontrar / é impossível não fazer de ti meu ideal". Não sabia de onde era aquela canção mas era muito bonita. Fazia sentir algo tão sublime que esse refrão ficou preservado nas minhas lembranças até a idade adulta. Na Cruzada Espírita Suburbana, que ficava na rua Gaspar Viana, eu cantava as músicas que aprendia nas manhãs de sábado. Depois de falar sobre o bondoso Jesus e sobre fazer o bem às pessoas, terminávamos o dia na mesa do lanche: biscoito salgadinho de conchinha e suco de caju. Depois, voltávamos para casa de tia Mylene. Ela morava na rua Graça Melo que, aos domingos, ficava fechada para lazer.

Era o dia inteiro de futebol, "MasterSystem", pés pretos, caras suadas. Thomas, ou o "Pingo", veio depois para completar o trio que brincava em frente ao número 78. Quando não ia pra lá, era para a casa do Tio Enemésio e da tia Ieda que íamos, eu e minha mãe. Almoçar frango e ouvir Raça Negra enquanto os adultos gargalhavam na mesa lotada de cascos de Kaiser e alguns poucos de Guaraná Taí. Tia Ieda fazia pastés, empadas e batatinhas calabresa. Eram sua marca registrada e Thomás era o maior fã dos pastéis oleosos de carne moída. A grande diversão dos primos eram os periquitos no viveiro enorme que, na verdade, não era assim tão enorme quanto eu achava quando era criança. No natal, a atenção era do presépio que tio Enemésio montava com muitos animaizinhos e pisca-piscas. Já na casa da minha avó Iena, era quase a mesma coisa: Cervejas pra elas e um quintal de terra enorme para nós. Eu chamava de "casa da tia Iza". Eu tinha um carinho especial por ela. Era uma segunda mãe pra todos. Muito carinhosa também com os pequenos da família. Foi ela quem me deu o primeiro banho. Ela quem cuidava de mim quando minha mãe trabalhava. Era ela quem molhava a minha chupeta na cerveja e me embalava no carrinho de bebê. Tia Gisele é a mãe das meninas, Blenda e Alana. Mais tarde viria o Ralph.

O dia não tinha limites para as beberronas e só íamos embora arrastados pelo meu pai, Ricardo, quando este se cansava de esperar e ia nos buscar. Ele não bebia e não se sentia muito a vontade no meio do papo. Sempre voava uma faísca ou outra. Vó iena não guardava sua opinião por nada. Meu pai, barril de pólvora, pavil curtíssimo, evitava sua presença por conta dos seus cometários duramente críticos. Não era mulher de indiretas. Por conveniência, ele preferia manter a distância segura de 2km e ficava em casa ou aproveitava pra visitar a mãe dele. Tio Celso, esposo da tia Mylene bem como o esposo da tia Gisele, que também se chamava Ricardo, agiam mais ou menos como o meu pai agia. Os homens da família se confraternizavamem em raras ocasiões, geralmente quando não havia escape. De fato, eram homens bem diferentes. Hábitos, pensamentos e atitudes diferentes. O Ricardo da tia Gisele e o tio Celso eram menos distantes. Meu pai era um homem de entendimento um pouco bruto e ideologia grosseira, mas não era mal educado nem deselegante.

Em casa, minha mãe fazia as tarefas e cuidava de mim. Eu gostava dos desenhos animados da manhã e de me divertir criativamente com bonecos. As vezes, em vez de lutar, eu os fazia jogar futebol. Montava uma baliza com os palitinhos do picolé Frutily, que se encaixavam. Uma bolinha de gude era a bola de futebol deles. Nosso relógio tinha seu próprio fuso horário. 13 horas da tarde era de manhã e o almoço era lá pelas 16h, 17h ou a hora que ficasse pronto. Não era a toa que meu pai me chamava as vezes de "monstro do biscoito". Refrigerante era que nem água, quando não era o famoso "Ki Suco".

Meu nome é Checralla e todos me chamam de "Chê". Só na escola me chamavam pelo nome completo. O primeiro dia de aula era sempre tenso por conta do estranhamento dos colegas e do trava-língua para as professoras novas. Eu era uma criança que, por razão óbvia, não tinha apelido. Era até um bom aluno. Poderia dizer de mim o mesmo que o Dr. Octopus disse de Peter Parker no filme Homem Aranha 2: " Genial, porém preguiçoso." Para mim valia mais a pena prestar atenção na aula do que ter que estudar em casa, o que eu só fazia quando obrigado. Só a minha mãe me obrigou a isso, e foram raras ocasiões. Aprendi pela dor que deveria fazer com que minhas notas não a fizessem me obrigar a estudar em casa. Me dava agonia ter que ficar diante de um caderno aberto quando poderia estar fazendo qualquer outra coisa. Isso significa que na escola eu era bem comportado. Contudo, minhas metas se resumiam em estar acima da média e passar de ano. S e eu era bom em alguma matéria, não era por esforço. Ou era porque eu achava divertido ou porque alguma coisa me cativava a prestar mais atenção. Minha mãe me vestia com o uniforme. Me calçava o kichute com o cadarço amarrado por baixo do pé, não nas canelas. Arrumava a lancheira com um Fandangos, um suco. Até a quarta série do Ensino Fundamental ela me levava até a porta todos os dias. Certa vez eu quis matar aula. Seria bom ficar em casa naquele horário da tarde. A rotina de casa era diferente nesse horário e estar em casa à tarde de vez em quando para experimentar a paz e o silêncio enquanto todo mundo cochilava depois do almoço era muito bom. Neste dia, ela me levou até a escada que dava para as salas de aula. Eu subi e logo desci dizendo que não teria aula pra mim. Ela desconfiou e foi perguntar a inspetora, Dona Margarida, que me desmentiu categoricamente. Um único olhar da minha mãe era suficiente para me ameaçar. Ela só me olhou. Além de respeita la muito, eu sabia exatamente o que ela me dizia com seus olhos. Se era pra eu ir ou ficar, para aceitar ou recusar algo oferecido a mim, se eu tinha feito besteira ou não, se eu ia sair ileso ou se eu ia morrer. De qualquer forma eu não gostava de decepcionar minha mãe mas o meu terror mesmo era que ela contasse para o Ricardo, seu esposo, meu pai desde que eu tinha dois anos de idade. De fato, meu único pai verdadeiro.

Minha avó Iena sempre me lembrava nas ocasiões festivas que ele não era meu pai. Culpa da cerveja que libertava em todos suas origens e passados da vida em Belém do Pará. Ela dizia que Ricardo era o que me criava e que eu tinha um pai em Belém. Isso me entristecia muito e me revoltava de certa forma. Minha mãe fazia o mesmo nas suas noites solitárias regadas a Schincariol. Era uma coisa que bastou me dizerem uma vez para eu nunca mais esquecer. Não queria ouvir suas verdades indigeríveis e constrangedoras. Mas eu não era o único da família que passava por essa realidade. Minha irmã Ralyme também não tinha o pai biológico presente, assim como Denise, filha da irmã da minha avó, a tia Iza. Nossos passados mal resolvidos estavam distantes, lá em Belém. Denise era mais revoltada em relação a ausência paterna. Pode se dizer que sentia ódio ao ouvir sobre isso. Ralyme apenas era indiferente ao pai dela e eu ao meu. Eu percebia como elas conviviam com aquela realidade em relação a paternidade ausente e eu absorvia aqueles sentimentos através das conversas que eu ouvia nas tardes na casa da tia Iza. Eu, como elas, também não faria questão de se importar com alguém que não está aqui, que me abandonou, que nunca se importou comigo. Além do mais, minha mãe me deu o Ricardo. Aqui, no Rio de Janeiro, eu vim conhecer a figura de um pai que não pude conhecer em Belém, até porque nós viemos embora. Até hoje não conheço nem Belém, nem meu biológico genitor. Ricardo me basta como pai. Cuidava de quem eu mais amava, que era a minha mãe, e de mim. Me irritava profundamente me dizerem sempre o que eu já sabia. Que ele não era meu genitor biológico. Mas era meu pai. Toda vez que uso a palavra "pai" me refiro este aque que me criou. Refiro me sempre ao Ricardo, fortão, de coração cascudo, de mãos grossas, de voz firme. Bruto e grosseiro. Porém, um amor de pessoa. O amor de pai na minha vida.

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A primeira casa que meu pai construiu foi no terreno da sua mãe, Dona Wanda. Mas me lembro de pouca coisa. Eu tinha uns 2 anos. Era no terreno ao fundo da casa da mãe dele. Bem, acho que a convivência não dava muito certo. Lembro de uma briga feia entre ele e a família dele. Lembro do meu pai tentando destruir a casa toda com uma enxada. A casa dele, que ele tinha construido com as próprio suor e suas próprias mãos, mas que estava plantada no terreno da dona Wanda, da mãe dele. Por conta da confusão, levaram me para a casa em frente, do outro lado da rua. Era a casa que tinha um Escort na calçada, o Escort do tio Celso, Pai do Matheus e esposo da irmã caçula da minha mãe, a tia Linda, a tia Mylene. Me deram água com açúcar. Para que eu não sei. Mas era gostoso. Tinha gosto de carinho, de consolo. Era isso que acalmava. Por isso, acho que água com açucar é tipo um placebo: Não é remédio, mas faz você se sentir medicado. Não tem consolo maior do que ver alguém tentar de tudo para te acalmar mesmo sem saber como. Pessoas boas de coração tomam esse tipo de atitude. Por conta dessa briga, moramos com a minha avó Iena até alugarmos nosso espaço.

Foi na rua Miguel Rangel, na casa que era um quarto e ponto. Com um banheiro e uma pia de cozinha. Não tinha nem espaço para uma pia no banheiro. Só cabia uma cama, um armário e uma estante. Era o espaço para nós quatro. Minha mãe, Ricardo, Ralyme e eu. Arrumamos um cachorro depois mas eu não me lembro em que ocasião a Lili morou com a gente. Branquinha e agitada. depois teve o Lucky e eu tive muita febre quando ele teve que ir embora por crescer demais. Mas esses eventos dos pets estão embaralhados cronologicamente na minha memória. Seguindo a linha do tempo, lembro me de nós quatro na quitinete. Algum tempo depois Ralyme iria embora.

Quando minha mãe se juntou com Ricardo, fomos morar na casa que ficava no terreno da dona Wanda. Aquela realidade já estava estabelecida quando eu me dei por consciente, diferentemente dela que já era quase uma pré-adolescente, iniciando a fase de agendas, diários, namoricos e etc. Mudar para a Miguel Rangel, para longe da casa da nossa avó, para longe da casa da tia Mylene, deve ter sido muito ruim para a Rá. Ricardo foi rédea curta para mim a vida inteira e imagino como era para a menina minha irmã. Ela não quis ficar. Foi uma confusão danada. Lembro de Flashes de um dia daqueles. Tio Celso ficou lá fora comigo pra não se envolver. Ele estava ali como motorista do Escort, por assim dizer. Tinha ido mais alguém...acho que era a minha avó, ou a tia Gisele. Foram buscá la. O modo de Ricardo criar os filhos da minha mãe era particular. Acho que não é todo homem que nasce com dom para pai, nem com dom para padrasto. Talvez o tempo ensinasse...talvez. Pela lógica, nos criaria com base na criação que teve, aplicando, segundo sua própria perspectiva, o que achava certo, importane. Ralyme foi embora para a casa da minha avó. Minha mãe ficou muito triste. Longe de todos, minha mãe me abraçou e disse: "agora somos só eu e você".

Minha mãe ficou um tempo sem falar com alguns dos parentes. Quando passávamos pela rua João Ribeiro, tinha uma Igreja Batista que pra mim significava: "vamos passar perto da casa da tia Mylene. Vão me largar lá para resolver as suas coisas mas eu vou brincar com Matheus". Mais ou menos isso que eu pensava. Mas, depois do ocorrido, não entravamos mais na casa dela. Eu sentia falta dos dias que eu ia pra lá só pra brincar. Lá era futebol o dia inteiro na garagem jogando gol-a-gol. Aos domingos, jogávamos golzinho no asfalto. Jogávamos até com os mais velhos, as vezes. O amoço era quase sempre frango grelhado, as vezes hambúrguer. O feijão da Tia Mylene não chegava a ser excepcional mas tinha identidade própria. Gostoso e diferente do feijão da tia Iza, da minha avó, ou mesmo da minha mãe. Eu gostava mais do da tia porque o da mãe eu comia todo dia. Sentávamos na mesa ou no sofá (ambos não tinham na minha casa por falta de espaço) com pilhas de quadrinhos da Turma da Mônica e Tio Patinhas. Tio Celso era um colecionador de quadrinhos desde a sua juventude e eu nunca vi tantos nem mesmo numa banca de jornal. Ele tinha desde o número 1, mas foram diminuindo com o tempo e o descuido das crianças. Tinha Chandele e Danette de sobremesa na geladeira e Biscoito recheado Tostines nos armários dacozinha. Depois do almoço era meia hora para descansar a comida. Depois era vídeo game ou mais bola.

A noite, quando tio Celso chegava do trabalho, Matheus saia correndo de onde estivesse. Eu o observava correr gritando "papai chegou" e pular nos seus braços. Eu o achava infantil. Talvez tivesse vontade de fazer o mesmo, mas pensava que seria ridículo imitá lo. Depois que Thomás nasceu era a mesma coisa em dose dúpla. Eu os observava brigar pra ver quem seria o primeiro a dar o abraço, quem pularia primeiro no colo e o perdedor dessa corrida caia em choro. No final, todo mundo ganhava abraço. Até mesmo o "Cheque" ganhava abraço. Foneticamente, esse era o som do apelido que tio Celso me chamava. As vezes eu dormia na casa deles. Torcia para isso acontecer. A noite eles não jantavam. Tio Celso preparava o lanche da rapaziada. Perguntava para cada um: "Vai querer o que no pão?" Era manteiga ou requeijão com queijo prato. As vezes presunto. Fazia um copo enorme de leite com Nescau. (Ele nos tratou assim até bem perto de ficarmos "burros-velhos" ou seja, até nossos 12, 14 anos). Depois do lanche, jogávamos video game até a hora do banho, depois cama. Na minha casa eu fazia o meu leite e comia geralmente biscoitos. Não costumava ficar a vontade na presença do meu pai. Ele logo me dava uma tarefa. Dizia ele: "Soldado na porta do quartel quer serviço!" Por isso, ficava longe dos olhos do meu amado Sargento. Na tia, de manhãzinha eu já despertava ligando o jogo. Os primos pulavam na cama dos pais até eles se levantarem. Também me sentia ridículo por pensar em fazer o mesmo. Fazem isso porque são mais infantis que eu, pensava comigo. Quando os tios se levantavam, os meninos se esparramavam na cama inteira e ficavam assistindo os desenhos da tv até o nescau com pão ficar pronto e ser servido para nós. Mesmo depois, eu não conseguia deitar na cama como eles. Sentia acanhado como se o calor nos lençois fosse a própria preseça deles a acolher os filhos. Eu seria um intruso no ninho.

As vezes, da casa da tia mylene íamos a casa da tia Fátima, irmã do tio Celso. Antes mesmo de popularizar esse hábito que virou gíria, eu já chamava quase todo mundo de tio e tia. Junior era o filho dela e do tio Jorge. Ele tinha toda sorte de brinquedos. Na tia Mylene me sentia como o Chaves na casa do Quico, mas na Casa da tia Fátima eu me sentia como o Chaves na casa do Nhonho, filho do Seu barriga. Junior tinha muitos brinquedos. Vários vídeo Games com muitos cartuchos. Muitos bonecos e quase a coleção completa dos Cavaleiros do Zodíaco. Era nosso desenho animado favorito. Brincavamos de cavaleiros e, de certa forma, os cavaleiros que escolhiamos refletiriam um pouco, ao meu ver, nossas personalidades. Tiramos meio que na sorte para sermos para sempre aqueles cavaleiros. Victor, primo mais velho de Matheus, era o Seya de pégasus. O protagonista do anime. Era o mais velho e, portanto o mais forte de nós; Junior era o Yoga de cisne. Branquelo tal qual o apersonagem nórdico. De uma realidade distante da nossa, fria porém bela aos meus olhos; Thomás era o Shun. Sacaneamos o moleque mais novo dando a ele um personagem que achavamos efeminado. Na verdade, ele era o mais doce e gentil de todos nós. Sempre generoso; Matheus era o Shyriu de dragão, que obtia a força dos ensinamentos de seu sábio mestre Ancião de Libra. Matheus, de fato, seguiria os passos do pai e até se tornaria depois professor como ele; Eu era o Ikki de Fênix. O que treinou no inferno e na dor, sobreviveria alimentando o ódio e se regeneraria com o florescer de um amor puro, capaz de brotar de uma terra seca. Até hoje busco renascer das cinzas do meu passado. Não há nada de belo em ser o Ikki. Eu queria ser qualquer outro personagem.

Quando não brincávamos de Cavaleiros, brincávamos de bonecos. Uma vez eu e Victor criamos um enredo gigantesco e glorioso com "Comandos em Ação". Foi uma saga sem igual que tinha os chefes no final para serem derrotados e muitos capangas. A história ficou tão grande que cansamos de brincar. Usamos todos os bonecos disponíveis, até os capengas e pernetas. Cansados, então, decidimos terminar a brincadeira pelo meio. Concluiríamos com a vitória dos vilões, já que não iriamos até o fim para derrotar os chefes. Isso nunca tinha sido feito antes no "mundo dos brinquedos", nem na nossa imaginação. Achamos essa ideia divertida. Nossos bonecos "morreram" na mão dos inimigos e fomos assistir aos "Cavaleiros do Zodíaco". Deixamos os brinquedos espalhados e decidimos voltar depois para fazer a "comemoração dos viões" e assim dar conclusão a brincadeira. Lembrar essa história é como ressuscitar os bonequinhos. Acabar com a festa do mal. E comemorar com os primos. É como ser novamente convocado por Atena, como no anime, para batalhar contra o mal que ameaça destruir tudo de mais precioso. Ir a casa da tia Mylene era como visitar outro mundo. A casa da tia era um lugar onde eu gostava de ficar. Mesmo assim, uma hora batia saudade da mãe. Ralyme estava morando com tia Mylene e eu me perguntava se a Rá não queria voltar pra casa. Meu pai não era um homem mau.

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Ricardo também teve em casa a presença de um pai adotivo. Recebia a atenção que sobrava. Tinha duas irmãs. Elas tinham um quarto e ele dormia num corredor, sobre um lençol fino estendido no chão. A minha realidade era diferente. Quando abri meus olhos não vi um pai, mas quando minha consciência despertou lá estava ele: Ricardão, meu paizão! Contudo, sempre soube da verdade. Na minha primeira memória de vida ele já estava alí e isso era uma coisa que facilitava. Eu podia chamá lo de pai e amá lo. Isso me bastava. Ele cuidava da minha mãe e de mim. Durante a infância ele me proibia me de andar com alguns dos garotos e de ir muito longe de casa ou longe de onde os vizinhos de sua confiança pudessem me ver. Ele dizia que tinha "olhos de tandera", como no desenho animado "ThunderCats". Para isso ele realmente tinha a" visão além do alcance". Sabia quem e onde estavam os que futuramente seriam envolvidos e tragados pelos vícios e pela marginalidade. Até onde sei, ele não errou os "palpites". Ele me afastava disso com braço forte. Eu nem sabia porque estava de castigo, ou proibido de falar com algum colega, ou de ir a algum lugar. Ele sabia e não dava explicações para mim. Só ordens. Sempre cobrava a minha mãe para não me deixar solto demais na rua mas também de não me manter muito agarrado a ela. Tinha um meio termo que acho que só ele entendia. A vantagem disso pra mim era que eu ganhei um videogame! O que eu sentia por ele era maior que respeito. Era um tipo de temor. Será que podemos amar a quem tememos? O medo é típico de quem se sente ameaçado e essa condição é própra dos refens. Obedecer por medo não é amar. Eu queria amá lo mais e amar significa conhecer, ter intimdade. O medo é contrário a isso. Sua voz firme era intimidadora. Sua face era séria e ele quase não sorria espontaneamente. Mas fazia vez ou outra uma brincadeira. Me lembro que uma vez ele jogou futebol comigo.

Foi quando nos mudamos para Nova Friburgo. Renascia nele a esperança de nos dar a nossa casa própria. Assim como a primeira casa, ele a levantou do chão fazendo a maior parte das obras com as próprias mãos. Não era um pedreiro abilidoso. Sequer era pedreiro. Mas tinha muita disposição e força de vontade. Foi no terreno da sua tia Geralda que meu pai construiu desta vez .Do zero, levantou uma casa no formato de chalé. Ficava no Parque Maria Tereza. Ficamos eu e minha mãe na casa da minha avó, no Rio, até ele concluir o essencial para que pudéssemos ir para lá. Talvez, ter nossa casa fosse algo que pesava muito na consciência do meu pai. De fato, era a coisa que minha avó mais criticava nele. Quando precisavamos da ajuda dela ela sempre acolhia de bom coração. Mas tinha que se preparar para ouvir. Isso devia ferir muito a hombridade do meu pai. A frustração com sua mãe, o desentendimento e a separação por conta disso também pesavam. Meu pai carregava o peso das suas próprias histórias, incusive da infância. Isso se refletia na sua vida adulta. Certamente minha mãe também. Mas quem poderia dizer lhes algo a respeito disso? O que lhes restava além de tentar outra vez mesmo correndo o risco de cometerem os mesmos erros?

Logo nos primeiros dias a gente entrou num bar pra tomar um refrigerante. Eu e ele. Eu adorava quando parávamos para fazer lanche, em qualquer ocasião. Ou jogar fliperama, que ele gostava. Lá eu vi penduradas em sacos as bolas "Dente de Leite". Não eram daquelas que voavam com o vento e pegavam um efeito igual aos chutes do lateral Roberto Carlos da seleção. Era daquela pesadona. Eu a chutava contra a parede e ela voltava. Eu fazia as minhas defesas como um goleiro profissional, como o Taffarel. Uma vez ele fez o papel da parede. Ficou chutando pra mim. Nunca levei tantos gols na minha carreira. Mesmo assim foi um dia que nunca esqueci. Foi literalmente único. Ele não era muito de gostar de futebol, eu sabia. Mas jogou comigo sem eu pedir. Eu não pediria sabendo que ele não gostava. Sobre futebol, ele apenas via os jogos do Brasil porque era a copa do mundo de 94 e todo mundo estava assistindo. Foi a primeira copa que eu assisti já que em 90 eu tinha apenas 4 anos. Vi as pessoas se emocionarem com a morte do Ayrton Senna, mas igual aquela disputa de pênaltis contra a Itália de Baggio não teve igual para mim. Foi a primeira, talvez a única vez, que vi minha mãe rezar. Ela repetia: "Santo Antônio, amarra os pés dos Italianos". (mas por que Santo Antônio?) Se bem me lembro, acho que eles tiveram câimbra. Muitos gritos e fogos no tetra campeonato do Brasil de Romário e Bebeto. Na final, meu pai estava trabalhando. Assistimos ao jogo só eu e minha mãe na casa da Dona Geralda.

Minha irmã foi morar lá em Nova friburgo com a gente um tempo. Ou será que eram só férias? Vi uma palavra num filme e perguntei a ela qual era o significado. Ela me respondeu que não poderia me explicar a diferença entre Hotel e Motel. Ralyme é um nome também árabe, mas eu a chamava como a minha mãe a chamava: Rá. Uma vez, indignado com ela por alguma razão, exclamei em reclamação: Pô, Rá! Não entendia o porquê das rizadas.

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Eu não entendia como Ralyme se sentia morando com a minha avó. Não sentia saudade da mamãe? De mim, tudo bem, mas e dela? Sei que EU tinha MEDO de ficar longe da MINHA mãe. As vezes ela me perguntava: SUA mãe está em casa? Ora, ela também não é sua? porque não pergunta como se deve? - Pensava calado antes de responder. Em Friburgo eu não tinha nenhum parente. Tinha a família do meu pai. Não me sentia em família com eles, a família do meu padrasto, que eu sempre chamei de pai, meu pai. Era engraçado, também, quando alguém desavisado nos encontrava na rua e perguntava:" Nossa! seu filho??? É a sua cara!" Não sei explicar o que sentia por dentro. Mas me sentia constrangido pela idiotice da pessoa. Meu rosto não se parecia com o dele. Mas o curioso era que todo mundo dizia o mesmo. Ou todo mundo era idiota, ou todo mundo mentia, ou eu parecia mesmo com ele. A última opção era muito agradável para mim. Eu o amava como pai. O esposo da minha mãe era de fato meu pai. Me lembro que me vestiam com roupas idênticas as dele no natal, que era a época de comprar roupas novas. Calça Jeans, camisa quadriculada, um cinto de fivela que parecia de boiadeiro. Seria a moda da época? Uma outra combinação tinha até uma mini pochete, igual a que ele usava.

Quando eu chegava da Escola Municipal Pastor Schulupp, em Friburgo, eu já descia a rua olhando para a janela da minha casa. Se estivesse aberta eu sabia que tinha alguém em casa. Se estivesse fechada, a minha respiração mudava e os olhos ficavam mornos. O clima frio de Nova Friburgo me fazia ter muitas crises de bronquite, mas nada me tirava mais o ar do que saber que a minha mãe não estava em casa. Isso acontecia muito e eu ficava sozinho sob o olhar da Daniela, filha da Dona Geralda, a dona do terreno e, portanto, dona da nossa casa. Era terrível saber que eu não tinha ninguém do meu sangue ali comigo. Dona Geralda era uma senhora de aparência muito bela e poderia muito bem ser uma daquelas senhoras jovens que ilustram os cartazes da propaganda do Rio Card sênior. Sua pele tinha um tom naturalmente moreno dourado, os olhos claros e dentes perfeitos. Seria dentadura? Como dizia o comediante Rodrigo Sant`Ana encarnando um de seus personagens: ela era" a cara da riqueza". Tinha mania de falar do falescido marido e de passar a cama a ferro antes de dormir por causa do frio. Quando eu confirmava a ausência da minha mãe, o meu mundo, eu abria logo o berreiro. Isso incomodava meu pai. Dava trabalho as pessoas e o constrangia. Comentavam que o Chê era uma criança mimada. Ele dizia aos meus coleguinhas: Você sabia que o Chê chora quando a mamãe dele sai? Menino grande desse e chorão. E eles zombavam de mim por isso. Eu acho que não me importava. Chorava porque sentia medo dela não voltar e isso me dava raiva. Mais raiva do que quando me falavam que ele não era meu pai. Por isso, decidi fugir de casa. Pensei: vou para a casa da minha avó. Que nem a minha irmã. Lá eu não vou ficar sozinho. Na minha inocência eu achava que poderia andar até a rodoviária, me esconder debaixo do ônibus e seguir viagem sem ninguém me ver, chegar no Rio e encontrar a casa da minha avó. Desci todo o Parque Maria Tereza chorando mas sem olhar pra trás. Fernando, Marido da prima de meu pai, Daniela, passou na sua Fiat Prêmio e me viu. Me botou dentro do carro e me levou pra casa. Quando chegaram os meus pais eu ouvi por detrás da porta ele prazerosamente cortar o riso da minha mãe dizendo: "Cuidado, heim. Você vai acabar perdendo o SEU filho".

Eu não estava na sala mas vi na minha mente a expressão de seu rosto triste e preocupado, como alguém que perde um pedaço do coração. Meu pai já ia tomar a sua atitude em relação ao que eu tinha feito mas ela não deixou. Mas não falou nada. Ela não me olhou nos olhos durante um tempo, nem falava comigo. Mas não senti nela raiva nem nada. Só não me deixava mais sair, só para ir a escola. Passou a me ignorar um tempo mas não era exatamente isso. Ela parecia inerte num espaço sideral contemplando coisas imensuráveis. Sua voz parecia de algodão: leve e frágil. Uma tristeza sem lágrimas. Aquele olhar indireto também me dizia alguma coisa a mais que decepção. Eu lia nos seus olhos as suas advertências em milésimos de segundo e não era preciso que ela me olhasse duas vezes. Nem usar palavras. Contudo, aquele olhar era diferente, nunca antes dito, e revelou uma coisa nova ou pelo menos disse de uma maneira diferente o que profundamente eu já sabia: Ela me amava mais que tudo. Um amor incondicional que se confundia com um amor inseguro pelo medo de perder pra sempre, medo de nunca mais encontrar um amor igual, certeza de não haver sentido na vida se não para viver por esse amor. Ela me amava mais do que amava a meu pai. Muito mais, infinitamente mais. Eu era o seu mundo. Mundo que, nesse dia, ela temeu o fim e se perguntou como seria o vazio, como seria viver sem chão, conviver com a dor da ausência. Talvez tivesse soluçado em silêncio à noite, ao travesseiro, as margens da incompreensão que avizinhava suas noites inquietas de sono, pensando no fim de tudo. Eu era o seu mundo e ela era o meu mundo. Longe da família, sem o elo com a vida, ela não suportaria ser quem era e talvez desejaria não ser nada. Eu não suportava essa ideia também. Perder meu mundo, meu tudo. Por isso eu chorava longe da sua ausência, sem a referência da minha avó, da minha tia Iza, da nossa casa de verdade. Naquele olhar ela me dizia isso: Ela se sentiu insegura diante desse amor que ameaçava ir embora e não voltar mais, sumir pra sempre no espaço e habitar eternamente no tempo da saudade, das lembranças, da dor que mantêm vivo alguém que se foi. Eu não sabia, mas esse mesmo sentimento, bem mais tarde, me invadiria o coração e moraria dentro de mim por quase duas décadas. Vagaria pelo espaço sideral de sofrimento, escuro e interminável, sem horizonte, procurando um coração, não igual mas semelhante. Procuraria um mundinho de terra sólida e habitável, com as mesmas condições de vida, que me oferecesse o mesmo ar, a mesma água, e um calor que espantasse o frio da saudade e a escuridão do vazio. Depois disso, não quis mais fugir. Ela ficou sem sair um tempo e sempre que eu chegava ela estava lá. Foi assim um bom tempo, até meu pai convence la de que era me tornaria um amamãezado. Por isso, eu passei a imaginar a outra face da moeda: E se EU perder a minha mãe pra sempre? Meu pai vai ficar comigo ou vai me entregar na casa da minha avó? Me deixaria e sumiria da minha vida? Como eu vou viver sem um mundo embaixo de meus pés?

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Lembro me de uma época em que eu me machucava muito e com facilidade. Ficava cheio de perebas. Uma vez, sentado no chão com um carrinho de brinquedo, ralei o nariz no chão. Sem peraltice, sem agitação, brincando quietinho ralei o meio da minha cara larga de paraense. Eu tinha um brinquedo favorito. Era uma réplica perfeita de um ônibus de viagem. Até o letreiro no para-brisa dianteiro era bem real e mudava o destino girando um botãozinho. Eu dizia que era o ônibus que levava a gente para Belém do Pará. Minha avó Iena fazia esse trajeto algumas vezes por ano. Belém - Rio de Janeiro. Trazia açaí, cupuaçu, chapéu feito de casca de árvore que dava a maior coceira na minha cabeça, mas que eu fazia questão de usar pra mostrar a ela que eu valorizava o carinho dela. Eu era o único que lhe tomava a benção. Alguém me ensinou que se faz isso, mas não me lembro quem. Só me lembro que achei apropriado realizar esse gesto em respeito a ela. Não beijava as mãos de mais ninguém. Eu me sentia melhor que todo mundo por isso, e me sentia o mais amado também. Eu não sabia o que era sentir ciúme de ninguém. Sentia me abastado de amores. Amado pela minha mãe, pela minha avó, pela tia Iza. Me sentia favorito, absoluto. Amor era uma coisa que eu tinha muito e podia dividir sem prejuízo.

Eu fazia esse trajeto no meu ônibus com as pessoas que mais me amavam. Eu levava no ônibus minha mãe e a tia Iza. Ia pelas estradas de concreto do quintal para buscar a minha avó e quando passava para a parte de terra do quintal significava que estávamos chegando no Pará. Tia Iza cuidava de mim quando minha mãe trabalhava no Polo I, em Madureira, quando morávamos lá na casa alugada da Barão do Bananal, no tereno da Dona Fernanda. Tia iza fazia limonada pra mim enquanto eu cutucava as dormideiras do quintalzão de terra e enterrava os bonecos que eu acidentalmente quebrava. Eu não sabia o que era ter medo nem sentie saudade. Tia iza estava lá. Por isso eu levava ela no meu ônibus. Ela e minha mãe. Assim como minha avó fazia na vida real, na minha ficção traziamos toda sorte de iguarias incompráveis aqui no Rio de Janeiro. Na verdade, açaí e cupuaçu era só o que eu me lembrava. Foi numa dessas idas e vindas empurrando meu ônibus pelo chão que houve um "acidente trágico" na estrada. Sei lá... eu caí por cima do brinquedo, de cara no chão.

Aconselhada por não-sei-quem, minha mãe me levou na casa de uma pessoa. Um lugar cheia de plantas lá no alto do Parque Maria Tereza. Ela rezou pelas minhas constantes crises de bronquite e dos machucados. Ela disse algo sobre a facilidade com a qual eu me machucava: Tem um primo que quer muito brincar com ele, mas está distante - disse ela. Quanto a bronquite, deu um xarope caseiro e sugeriu uma simpatia. Lembro o que minha mãe fez: Deixou um pedaço de bolo e um copo de refrigerante no pezinho de amora que tinha por perto da nossa casa. Depois disso me lembro de ter um santinho de gesso na minha casa: um menino com um peixinho. Minha mãe disse que seu nome era Pedrinho da Praia. Depois de um tempo isso foi caindo no esquecimento.

Das coisas doces que eu lembro de Friburgo, além da minha primeira bicicleta grande e dos pés de amora que davam uma dor de barriga danada, me lembro dos beijinhos. Não foram os primeiros, já que na Miguel Rangel eu já era um garanhão e tinha ganhado umas beijocas das filhas da Dona Carla. A mais velha era muito namoradeira. Outras meninas não se deixavam ficar para trás. Não posso dizer que eu era bonito. Tenho que dizer que SOU bonito até hoje, pra reavivar aquela auto estima despreocupada que nada tinha a ver com aparência. Começávamos brincando de escolinha e terminávamos no pique esconde. No meio disso aí, rolava os selinhos, estalinhos, beijinhos de criancinha. La em Friburgo, porém, eu tive foi três namoradas de uma vez! Namorico de criança.

Eu namorava a Caren e o Henrique, meu vizinho e melhor amigo, namorava a Diana. Entravamos por trás da igrejinha pelo meio das florestas de eucalipto para brincar de "salada mista" Só as meninas escolhiam salada mista, mas os meninos não eram proibidos. Com tudo arranjado, os pares se formavam. Eu era tão inocente que ficava de olhos fechados mesmo na hora de escolher: " É esta?". Henrique, alem de tirar a mão que me tampava os olhos, me cutucava o braço pra eu dizer: "É". Eu escolhia pêra, nao sei. Sei que ere a a fruta do beijinho no rosto. Na vez da Caren, Diana facilitava pra ela me escolher. "Salada Mista" dizia ela. Atras da árvore rolava o beijinho. Saiamos de lá risonhos e apaixonados. Meninas por um lado, meninos pelo outro. Minha mãe brigava comigo sério, porque eu ia pra longe de casa para brincar com elas e ela não gostava que eu decesse até a rua de baixo. Eu mentia dizendo que estava em outro lugar e ela ficava ainda mais brava. Ficava de castigo. Uma vez eu e Henrique estavamos jogando bola. Suados e sujos elas nos mandaram tomar banho. Henrique, que ficava sozinho em casa durante a maior parte do dia, foi se emperequetar. Saiu cheiroso como um campo florido. Eu tive que pedir pra minha mãe pra tomar banho e ela não deixou. Era pra tomar banho só mais tarde, disse ela. "E agora? "-pensei. Me lavei no tanque e botei a camisa que estava no varal. Não, isso não virou um hábito.

Fomos brincar num velho caminhão reboque abandonado no meio do mato. Ficávamos deitados no banco, com a cabeças no colo delas e elas alisando nossos cabelos. Um vez eu disse que parecíamos com meus pais quando minha mãe ficava tirando caspas da cabeça do meu pai. Rimos muito quando falei isso. Só íamos embora quando a noite caia e a mãe delas dava um grito de longe mas que devia ecoar em seus ouvidos. Saiam desesperadas de dentro do mato e nos corríamos pelo outro lado para não sermos vistos. Depois ficávamos nos gabando. Quando Diana se cansou de Henrique eles brigaram e a Caren falou que eu tinha que namorar com a Diana também porque elas eram primas e estavam sempre juntas. Eu achei justo, né. Coitadinha dela. Quando apareceu outra prima, a Mariana, foi a mesma coisa. Mas eu achava Mariana esquisitona e eu não a quis por muito tempo. Também fiquei triste porque Henrique ficava afastado e brincando sozinho. Tomei minha atitude e... foi assim que fiquei sem ninguém. Mas foi melhor assim. Eu e Henrique voltamos a ser amigos e a imitar Zetti e Taffarel no terreno onde amarramos um varal de roupa nas árvores que serviam de baliza. Depois, é claro, de elas me darem o troco tentando namorar as três com ele.

Eramos vizinhos muito próximos e estavamos quase sempre brincando juntos. Henrique já tinha sua bicicleta grande e no dia que eu ganhei a minha pedalamos o dia inteiro. O Parque Maria Tereza era totalmente em declive, uma ladeira interminável que serpenteava uma floresta de eucalipto. A exceção era uma praça circular onde tinha um ponto de ônibus, uma mercearia e uma igreja católica. A minha bike não tinha marchas mas eu acompanhava Henrique na subida. Andar na descida era mais perigoso. No fim da tarde descemos e eu quis ir em cima da bicicleta. Os freios novos eram muito duros e eu não consegui parar. Pegando velocidade na ladeira de paralelepípedos, procurei manter a calma. Tentei dar a volta na pracinha circular mas a forca centrífuga me levou de cara na parede ao lado do bar. Empenou as duas rodas e eu perdi a bombinha de encher pneu que ficava presa no garfo dianteiro. Num desespero quase cômico, as pessoas saíram da mercearia esperando o pior. Foi uma pancada realmente violenta. Eu não senti nada. Nem me machuquei. Só lamentei a bicicleta. O desespero veio depois. "Meu pai vai brigar comigo!" - pensava. Mas ficou tudo bem. Logo meu pai concertou. Ele era ciclista na sua juventude. Sabia montar e desmontar bicicletas de olhos fechados. Pouco tempo depois eu voltei a pedalar na pracinha circular. E então, quando desceu um ônibus da FAOL que ia para o centro de Friburgo, eu estava dando voltas na contra-mão. Desviei pela direita. Vinha descendo um carro e me jogou para o alto, em frente a Igreja. Eu voei por cima do caput do carro numa cambalhota cinematográfica e caí no chão enquanto olhava a cara de espanto do motorista bigodudo e de olhos arregalados. Só ralei a unha do pé. Nossa! Aquele dia tinha um anjo de plantão alí. A bicicleta mais uma vez toda empenada e eu intacto. Os coleguinhas que faziam primeira comunhão disseram todos: Você viu? Ele não morreu porque estava em frente a igreja! Se fosse um pouquinho mais pra lá, não sei não". As rodas viraram um "esse" . Quase um oito. Minha única preocupação era:" meu pai vai brigar". Mas não. Ele consertou de novo. Ele já tinha caído também muitas vezes. Acho também que, como era uma coisa que fazia parte do seu mundo desde a infância, a bicicleta, ele podia me compreender. De fato, isso é uma chave que abre meu entendimento para que eu compreendesse o meu pai. As coisas que eu fazia e que eu gostava na infância não se correlacionavam com as que ele fazia e gostava na infância. O futebol, os brinquedos, o carinho da mãe...essas coisas que eu tinha o incomodavam. Me faziam diferente dele. Evidenciava que eu era o filho da minha mãe, não o filho dele. Inconscientemente, ele julgava negativamente as coisas que não fizeram parte do mundo dele. Ele me deu a bicicleta grande igual a dele. Talvez na intenção inconsciente de que pudéssemos pedalar juntos, que ele pudesse me atrair para ele. Ele não sabia o quanto eu o admirava. E eu talvez nunca tenha sabido o quanto ele se esforçava para me amar como um filho legítimo. O meu medo disfarçado de respeito me impedia de dizer papai, de abraçar, de beijar aquela figura bruta e ignorante. Era só uma casca. Ricardo era um doce de pessoa. Por saber disso, meu coração o aceitava como pai, meu pai. Muito embora seja igualmente verdade as coisas que eu não gostaria: Tudo o que eu queria era poder exercer o meu direito de chamar alguém de pai. Queria agir diferente da Denise, da Ralyme. Queria agir mais ou menos como o Ricardo. Ele considerava o padrasto como pai e o chamava de papai. Eu era refém do medo e mascarava esse sentimento num respeito exemplar. Queria ser obediente como forma de gratidão por ele estar alí para ser aquilo que eu não tinha. Aceitava tudo como um escravo, eu parecia ter mais do que merecia. Como um refém, entregava o controle de tudo até o limite. Quase todos os meus sentimentos estavam sobre seu domínio. Onde vou encontrar outro alguém pra chamar verdadeiramente de pai? Tudo parece valer a pena quando se vive afogado numa necessidade de ser amado.

Ele participava de eventos ciclísticos, corridas, passeios, trilhas de mountain bike. Haviam muitos desses eventos em Friburgo. Ele ia me levar num passeio uma vez. Eu acordei sozinho assim que o sol raiou. Quando ei ia chamar ele minha mãe disse que ele tinha chegado muito tarde do trabalho, quase de manha. Era melhor deixa lo descansar. Infelizmente, não tivemos outra oportunidade de pedalar pai e filho. Ele já tinha ido do Rio de Janeiro a Petrópolis pedalando algumas vezes. Eu via as fotos dele com a bicicleta sobre a cabeça com o "Dedo de Deus" ao fundo. Fotos nas placas da estrada ao lado de seu primo Fabinho, filho do seu Tio Antônio. Tinha fotos muito velhas dele também com uma Caloi 10 subindo a Múcio Teixeira, em Cavalcante, e fotos das bicicletas dele na garagem. Quando eu contava a alguém sempre achavam que era mentira. As vezes eu mostrava as fotos que ficavam secretas na pasta azul embaixo da estante. Era um álbum separado das fotos do caratê. Além de ciclista ele era fã do Bruce Lee e tinha até um poster do ator com um Tchaco. Tinha uma foto do meu pai manuseando um, tinha outra dele dando uma voadora no braço de um bigodudo com cabelo de argentino e uma outra dele fazendo paralelas na praia com uma camiseta do Cazuza. Ele me ensinou a me defender. Talvez tenha sido esta mais uma oportunidade de eu fazer algo que se relacionasse com as coisas do mundo do meu papai. Mas nunca tive nenhum traço de agressividade, embora tivesse habilidade física para todo e qualquer esporte. Se dizem que o que vale é a intensão, meu pai não soube me dar um bom motivo pra aprender caratê. Ele me deu o motivo que era dele. Me dizia para aprender a bater pois se eu apanhasse de alguém na rua, apanharia em casa. Meu pai me bateu uma só vez na vida e não foi por isso. Eu era inteligente e resolvi a questão não brigando com ninguém. Na verdade aconteceram alguns raros episódios. Ele me ensinou a dar rasteiras e a dar soco de mão fechada bem no meio da cara. Mas eu não era brigão, e a primeira vez que aconteceu uma luta foi contra o meu melhor amigo, Henrique. Arranhamos o carro de uma pessoa com pedras e fomos descobertos. Minha mãe sabia que eu ia morrer nas mãos do meu pai e ela não poderia fazer nada. Eu era culpado. Então, ela me mandou botar a culpa nele que era mais velho, dizendo que ele me obrigou. Eu o fiz. Não deixei de apanhar com o cinto de fivela mas acredito que a situação do Henrique era pior. Da varanda da sua casa, que era subindo mais a rua, ele batia o punho contra a palma da mão me ameaçando. Ele era mais velho e eu tinha medo de brigar com ele. Quando ele me cercava na rua eu pegava pedras no chão e ele recuava. Um dia fiquei tomado de coragem e lá debaixo eu fiz o mesmo gesto que ele. Já tinha cansado de correr. Ele desceu para o portão. Eu saí e subi até lá. Ele me acertou um soco na cara, no osso zigomático. Eu agarrei no cabelo dele até ele arriar no chão mas não bati nele. Acho que não queria também. A força bruta e o seu poder não me causavam nenhum tipo de prazer nem mesmo admiração. Minha mãe viu de longe e subiu voando como que se tivesse numa vassoura alada. Deu uns tapas nele como quem bate num filho malcriado. Ficou por isso mesmo. Meu pai perguntou como tinha sido a briga. Falei que a cara estava doendo e esse era o único resultado. Henrique não me importunou mais e a vida seguiu até voltarmos a ser amigos, pouco antes de eu me mudar novamente para o Rio.

Mais tarde, Voltamos a morar na Miguel Rangel. Mais uma vez por desentendimentos do meu pai com sua família. Na Rangel as crianças eram mais brigonas e eu tinha que me defender algumas vezes, quando não havia nenhuma alternativa. As vezes era inevitável. Como eu ganhava para não"perder em casa", eu fiquei um pouco marrento. Então pela primeira vez eu iniciei uma briga com um garoto que eu sabia que seria fácil vencer. Ele estava sempre brigando mas sempre apanhava. Ele me importunou e eu provoquei briga. Muito confiante, levei foi uma banda. Uma moça passou e me viu brigando e falou que ia contar para o meu pai. Envergonhado da minha atitude e também pela rasteira, nunca mais briguei na vida. Bem, mais ou menos...

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Quando voltamos a morar na Miguel Rangel, já não era na mesma quitinete. Era agora na vila de baixo que morávamos, mas as condições de acomodação eram as mesmas. Os colegas eram os mesmos da outra época. Eu gostava de uma menininha de cabelinhos cacheados, a jovem loirinha oxigenada que se chamava Carlinha. Era a prima do Marcelo, um Garoto grandão e abrutalhado que gostava de Mortal Kombat, brincar de lutas, expremer lagartixas, explodir baratas com bombinhas e chamar nomes de espíritos ruins. Ótima companhia. Vivia incentivando os pequenos a se embolarem em brigas. Mas era o meu melhor amigo. Era o único que podia entrar na minha casa. Meus pais o viam como mais velho e responsável e não sabia que ele nos mostrava filmes pornográficos que ele tinha em casa e nos influenciava demais por conta do seu palavreado chulo quando não estava na frente dos adultos. Ele ja tinha uns 14 ou 15 e os outros uma média de 9 ou 10 anos. Sempre tive amizade com crianças mais velhas mas em vez de ficar mais esperto, eu permanecia trouxa.

Minha mãe me zoava dizendo que a Carlinha tinha a boca torta e ficava imitando, fazendo uma careta engraçada. Até que parecia mesmo, mas a menina não tinha boca torta não. Meu pai disse para eu convidá la para tomar sorvete e me deu uns trocados. "Um Barão", como ele chamava o dinheiro que, na época, já era o Cruzeiro Real, eu acho. Eu convidei. Quando a vi ela descia com a mãe para ir a feira. Fomos a padaria juntos, eu ela e a mãe. Eu esperava que a bruxa velha macumbeira fosse embora. Pedi o sorvete com a bendita da mãe dela na porta da padaria. Dei um sorvete pra Carlinha. Ela pegou e se despediu. Eu pensei:" bem, acho que deu tudo certo, né? Sua bruaca!" Decidi não contar a ninguém. Nem ao meu pai. De fato, melhor assim. Descobri depois que ela gostava do Wellington. Era capoeirista como o pai dele, que era mestre. Se dava muito com Marcelo por conta dos treinos de capoeira. Só eu não gostava daquela dança. Gostava de jogar bola. E eu era bom. No máximo eu era o segundo a ser escolhido, quando não era o primeiro. Eu nem escolhia o time por causa disso. Sabia que não me deixariam de fora. Armávamos o gol com os chinelos no asfalto meio em declive e botávamos a "Dente de Leite" pra rolar até ser furada pelos espinhos de alguma planta ou por algum vizinho intolerante as algazarras pueris. Contudo, Carlinha gostava de Capoeiristas. E eu, de jogar bola até perder a cabeça do dedão que vivia enrolado com esparadrapos. Era uma ferida incurável pois antes de sarar eu já machucava de novo, que nem coração de menino bobo apaixonado, jovem bobo apaixonado, adolescente, adulto...

As pessoas que moravam próximos a nós eram predominantemente espiritualistas. Minha mãe não era muito de ficar na porta de casa. Tomava suas cervejinhas em casa vendo novela ou me assistindo jogar o "Sonic Hedgehog". Ouvia o "Good Times 98" e eu não me esquecia da voz que dizia "...mande suas cartas para Rua do Russel, quatro-três-quatro, Glória". Ela viajava nas canções. Eu ia de carona. Ela adorava também o famosíssimo José Augusto, que cantava a música de abertura da novela "Barriga de Aluguel". No refrão que dizia "agora aguêenta coraçãaaao!!" a cerveja batia lá no último neurônio sóbrio da minha mãe que começava a me contar as histórias que eu já tinha ouvido dezenas de vezes. Como ela não se dava com as fofoqueiras e mal educadas das vizinhas, eu era sua companhia. Não falava sobre o meu genitor paraense, mas falava da sua paixonite pelo médico que fez meu parto, de um namorado que meu pai tinha ciúme que se chamava Tuninho. Falava também do tempo da juventude da tia Iza, tia Nazaré e Vó Iena, das dificuldades que lá enfrentaram e o porquê de virmos parar neste bendito e abençoado lugar chamado São Sebastião do Rio de Janeiro. Falava de tudo um pouco, mas quase nada do meu genitor. Pouco me importava. Importava, mas pouco. O que ela não falava nadica de nada era sobre Deus. Mas eu também não perguntava. Não tinha essa noção. Sobre religião e Deus eu ouvia na rua, os casos que os filhos das moças do Centro de Macumba contavam. Marcelo ficava zombando, imitando uma pessoa incorporada e ficava chamando as vezes nomes ruins e dando rizadas iguaizinhas. As vezes eu ouvia umas gritarias lá perto da casa dele e não entendia. Parecia briga. Eu não gostava de brigas. Esporadicamente tinha confusões na vila e por vezes pessoas começavam a girar e outras gritavam "O sangue de Jesus tem poder!!!" repetidas vezes. Me causava espanto. Tinha um livrinho num armário onde minha mãe guardava suas relíquias e as pastas de fotos do meu pai. Na pastinha dela haviam fotos do meu primeiro aniversário, fotos de quando eu era bebê e outras coisas velhas. Tinha uma foto do meu genitor comigo no colo: Negro, nariz de batata, com entradas na testa e cabelo tipo aquelas perucas de carnaval. Tinha uma foto da minha mãe também com uma cara horrível que eu não sei se o culpado era o fotógrafo ou era ressaca antecipada. Nenhuma com os dois juntos, nem proximos. Até a data das fotos era distante. Quando longe dos seus olhos, eu mexia nessas coisas. Fiz isso mil vezes. O livrinho eram os quatro evangelhos e o livro dos salmos, provérbios e apocalipse. Pegava mas não lia. Marcelo tinha tias por todo o bairro. Família grande que tinha. Todos eles, de alguma forma eram do centro, ativos, esporadicamente ativos ou afastados. Era dificil ver uma pessoa de igreja ali. A gente corria as vezes pelo terreno do centro para pegar manga e jamelão. Eu achava escuro e assustador. Marcelo me amedrontava. Ficava me falando sobre a marca da besta, o 666, que a lua ia ficar cor de sangue. Disse também que estava escrito na bíblia que o mundo ia acabar no ano 2000. Fiquei aterrorizado pois havia uma novela chamada "o fim do mundo" que passava quando a gente morava ainda em Nova Friburgo. No último episódio a terra explodia de uma maneira ridícula. tipo: BUM. acabou! Fernando me importunava dizendo que ia acabar mesmo.Achava engraçado me ver desesperado e chorando.

Fernando estava sempre me diminuindo de alguma forma. Fazendo brincadeiras que me constrangiam. Ele tinha um filho de um outro casamento, Jônata. Era nem mais velho que eu e facilmente me tirava de trouxa. Parecia que Fernadno tirava onda com meu pai, exaltando Jônata e me diminuindo. "O filho dele era Homem e eu era um mariquinha". Acredito que essa palhaçada competitiva incomodava o ignorante do meu pai. Bem, no fundo eu compreendo essas prisões sem grades, que é a ignorância espiritual, não apenas a intelectual. Meu pai era sábio naquilo que lhe foi ensinado: Trabalhar e não baixar a cabeça pra ninguém. Ele não admitia baixar a cabeça para aquele igualmente idiota do Fernando e seu filho precocemente amalandrado pela ausência do pai que "casou" com outra mulher mais bela e mais jovem que a mãe pobre e abandonada do filho dele. Pra Fernando era conveniente que o filho se criasse sozinho e fosse espertalhão porque ele era um promiscuo e irresponsável, um garotão de 40 anos com um bigode ridículo molhado de café e com futum de cigarro. Decerto que sua memória mereça menos insultos do que estes que, pela primeira vez, agora liberto de mim. Eu nunca mais me esqueci dessa ideia do fim do mundo. Obrigado por isso, Fernando.

Naquele cômodo apertado da Miguel Rangel, eu dormia deitado no chão, ao lado da cama dos meus pais, imaginando como seria o fim. Não conseguia conceber o vazio, a inexistência, o nada. O fim do mundo e a ausência da minha mãe. Duas coisas que se misturavam num só semtimento. Solidão. Como será quando isso acontecer? Eu tentava entender o que era sentir isso e não conseguia. Me causava angústia. Mas então... antes de sair das fraudas, já pensava: ficará tudo preto como a tela da TV no fim da novela ou ficará tudo branco? O que é o nada? quem estaria lá pra ver o vazio e confirmar que ele existe? Seria possível isso? Eu soluçava e incomodava meu pai que mandava eu dormir e deixar de ser mariquinha. Eu não dizia o que estava pensando. Na verdade, ninguém me perguntava a razão dos meus soluços e quando eu assim mesmo falei, me mandaram parar de bobeira. Eu corria pra mãe mas o pai dizia a ela para não me criar" amamãezado". Até a posição de usar o papel higiênico meu pai criticava. Disse que mulher é que limpa a bunda com a mão por trás. Homem puxa as bolas e limpa pela frente. Depois dessa aula de higiene pessoal eu passei a preferir sujar me inteiro do que deixar ele me ver no banheiro. Se ele não compreendia estas coisas frívolas, como poderia me explicar as coisas de Deus? Como poderia criar em mim um amor que me fisesse conter o vazio e ser maior que o medo que me engolia? De fato, ele pôde me dar até coisas que que ele mesmo não teve. Só não pode me ensinar a ser o que ele não era. Não era jogador de futebol e não era religioso. Hoje, gostaria de te lo aqui e amá lo com o que sou. Ainda que eu não pudesse transformá lo, o amor que Deus me deu eu poderia dar a ele. E ele seria mais feliz. A minha mãe e eu também. E poderiamos fazer isso durante um passeio de bicicleta, tirando fotos e guardando as em álbuns.

Mas, naquele ponto do tempo, minha mãe era a única garantia de que o mundo não acabaria, e o mundo não acabar era a única maneira de eu ter a minha mãe. Eu não queria ter uma marca com números no meu braço. Queria ter sempre um abrigo para não ver a lua ficar vermelha de sangue. Se chegasse o ano 2000, tudo bem. Eu estaria com ela e iria com ela aonde quer que ela fosse. Eu me sentia sombrio. Tinha medo de escuro e de ficar sozinho. Minha infância ficou marcada de medo, medo de perder a minha mãe. Medo do mundo acabar. Um medo estranho que me fazia cair em um pranto desesperador quando ela saia com meu pai e me deixava com alguém que eu mal conhecia. E meu pai repreendia muito isso e direcionava minha mãe a não me mimar de forma alguma. Talvez por isso, não me lembro de sequer um abraço da minha mãe. Só sei que aconteceu. Me lembro de ter abraçado ele, meu pai, uma única vez. Também aconteceu mais vezes, eu sei. Mas só me lembro de um. Foi por ocasião do aniversário dele. Seu abraço era duro. Sua pele era fria. Pensava se meu pai ficaria comigo ou se ele me entregaria para a minha avó caso a minha mãe morresse. Minha irmã morava com ela e eu não a via muito. Na minha cabeça, eu amava a minha mãe mais do que a minha irmã, porque ela tinha ido embora e minha e eu ficava alí suportando tudo para ela não ficar sozinha.

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Eu queria ter uma máquina do tempo, como o "Delorean" do "Doctor Brown" do filme "De volta Para o Futuro". Precisava me compreender, conversando comigo mesmo:

"A infinitude de algo que existe é mais plausível do que a limitação da inexistência. O imensurável é mais desafiador a razão, já que o "nada" só existe da perspectiva de algo que exista. Sendo assim, o mínimo que possa se compreender de existência é suficiente para conter em si a existência de um "vazio Inexistente". Para que o vazio exista é necessário algo que o contenha e, ao mesmo tempo, não o permita ser pleno. Em outras palavras, o TUDO é capaz de gerar e conter o NADA; a EXISTÊNCIA é capaz de e criar e conter o INEXISTENTE; a CRIAÇÂO é envolvida pelo INCRÍVEL. A incredulidade nada cria. O vazio não se gera por si só, pois não está contido em si mesmo. Além do tato, do paladar, do olfato, da visão, da audição, existem incontáveis sentidos de percepção. Além das trevas existe a luz, e uma razão para as duas. Como exemplo, podemos representar o NADA, o VAZIO. Em uma folha completamente preta ou completamente branca. Tanto faz a cor. Vamos escolher a folha branca. O branco total da folha representa o NADA. Sintetizando, o NADA é representado pela "cor branca" e o que possibilita isso é o papel, a celulose . Sem o papel não existe a incidência da cor branca e o nada não existe. A partir de algo que existe (a celulose, o papel) existe a cor branca (o NADA). Porém, sua EXISTÊNCIA não é absoluta. A cor branca não pode ser maior que o papel e nem do mesmo tamanho. Logo, o Nada fatalmente existe mas não é absoluto. Sendo assim, a existência de TUDO tem uma razão e um sentido mesmo que não possamos compreender. Se há limites para o TUDO, nunca o conheceremos porque estamos contidos nele.

Tanto a física moderna quanto os poetas dizem que somos "poeira de estrelas". De fato, somos matéria. Somos formados basicamente de CHON: Carbono, Hidrogênio, Oxigênio e Hidrogênio. Somos nós o fruto do acaso de uma explosão? Nossos corpos sim. São pó, poeira. De fato, houve um Big Bang. O mundo físico é fruto do caos que movimentou o universo estático e gerou as dimensões, as galáxias, os planetas, as substâncias, os corpos, os seres. Contudo, o caos não se gera. O CAOS só existe a partir da ORDEM. A ordem seria o ESTÁTICO, o universo denso. A Explosão que desorganiza é o princípio do movimento de reorganização. Assim sendo, a ORDEM é o caos para o CAOS.

O universo seria simples de ser entendido, se não fosse a presença da vida nele. A vida no universo é a única coisa incompreensível pela ciência. Toda teoria deixa uma brecha, uma rachadura. A razão da vida é o limite do entendimento. Por isso a ciência é o NADA. A ciência está contida em algo maior, inexplicável. As interações dentro da matéria viva, orgânica, apontam para algo além, não necessariamente exterior. Como diria Santo Agostinho, "poucos se arriscam na aventura de um passeio interior". Diga se de passagem que, o ser humano, de maneira geral, não compreende o amor. Amor para nós é uma palavra de múltiplos sentidos e que, na realidade, não consegue expressar aquilo que gostaria. Por falta de palavras (e de entendimento) posso definir AMOR apenas como sendo a partícula mínima de existência, mas capaz de conter e envolver todo o universo, incluindo o vazio crítico que só a nossa mente é capaz de criar. Por ser mínima partícula, cabe no coração dos homens que estão contidos no mesmo amor (plenitude). Filosóficamente, tentamos materializar o inimaginável. Mais ou menos como a idéia de Platão, concebemos na contramão do nosso mundo, o mundo das ideias. Tentando encontrar o lugar físico para o céu e o inferno quando, na verdade, nós os contemos nos nossos corações e somos contidos neles dada a escuridão da nossa mente. Esse AMOR que "tudo contém e se deixa conter" é o principio da ORDEM que se liberta do estado ESTÁTICO pelo CAOS e, em seguida, causa o caos no CAOS ao se mover em REORGANIZAÇÃO. Assim, podemos imaginar o universo se movimentando como no movimento de um ABRAÇO: Se falta um planeta, ele explode e tenta abraçar de novo até que venham todos. Exatamente como a "parábola das 99 ovelhas". o "Bom Pastor" deixa as 99 para ir atrás daquela que se perdeu. Um sentimento pode desequilibrar a alma e fazê la iniciar o processo de reorganização atravéz da menor partícula possivel, a centelha divina no coração dos homens, o AMOR INCONDICIONAL. Isso só pode ser obra de um Deus Onipotente, Onipresente e Onisciente. Infinitamente amoroso, infinitamente compreensível e misericordioso."

Desde pequeno eu sabia que seria louco, mas não imaginava que isso era sede de Deus.

Isso é o que o "GRAÇA DE DEUS" teria dito ao "Chê", num bate papo ao volante do "Delorean"

Mas haviam etapas no caminho e isso só aconteceria muitos anos depois.

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Meu pai começou a construir uma casa num terreno em Cavalcante. Seria a primeira vez que teríamos nossa casa num terreno também nosso. Era um loteamento de uma antiga pedreira desativada na rua Visconde de Sabóia. Era interessante porque era um lugar sem rosto, sem personalidade. Todos construindo. Havia umas 4 casas no máximo com famílias morando. Ainda não havia luz, água nem esgoto regularizados. Os próprios vizinhos iam se ajudando batendo as lajes debaixo do sol de janeiro a janeiro. Iamos para lá na impecável Brazilia azul do meu pai, cavar os buracos para a fundação. O carro tinha um adesivo no parabrisa da frente: "Highlander Som". Era o nome da sua equipe de som que ele alugava para festas de aniversário, 15 anos, casamento, funeral e qualquer coisa que contratassem. Fazia até cerimonial de 15 anos, o que eu acho impressionante na sua história como "um cara trabalhador e criativo". Alugava a cadeira para a debutante que minha mãe enfeitava com as cores da festa. Por vezes eu era também "alugado" como cavalheiro de honra. Eu levava o sapatinho para que o Príncipe trocasse na cerimônia. Ele falava assim: Agora, o cavalheiro "Che" entrega o sapatinho que simboliza o "blá blá blá" regado a lágrimas dos pais e convidados. Me encabulava que ele falasse meu apelido. Eu preferiria que me desse um pseudônimo. Mas tudo bem. Eu recebia meus 10 R$ por festa. O primeiro emprego a gente nunca esquece. Bem...até agora eu tinha me esquecido disso...

A Highlander Som era o projeto que surgui depois da "Vulcan Sound". Esta era a equipe da sociedade entre ele e o Fernando quando morávamos em Nova Friburgo. Fernando, que ficava me importunando dizendo que o mundo ia acabar. A Highlander era só do meu pai. Com ela que ele comprou a Brazilia que carregaria as duas caixas de som que pareciam duas geladeiras e toda a parafernália de amplificadores, mixer, e etc. Carro guerreiro essa tal de Brazilia que levava tanta coisa e a gente dentro com cadeira da debutante, cavalheiro, jogo de luz estroboscópicas. Foi dela que veio o terreno, os vergalhões, os tijolos e a laje. a geladeira, o fogão e a Tv.

Não seria mais necessário morar no terreno da família dele e nem na minha avó e, de todas, essa últina parecia a pior situação para ele. Minha avó não tinha mesmo papas na língua e meu pai odiava ouvir desaforos em silêncio. Para mim era conveniente estar perto da Tia Mylene e poder brincar todos os dias com os primos Matheus e Thomás, podermos ir de novo cantar as músicas de Jesus aos sábados. Mas agora ia ser melhor que tudo. Eu ia até ter o meu quarto, minha cama, uma TV só para o meu Super Nintendo. Se não estava próximo dos parentes por parte de mãe, acho que me sentia melhor sozinho. Melhor do que na companhia dos "estranhos" da família do meu pai. Quando chegava o natal eu sempre pedia um videogame igual ao do Matheus. Ele tinha muitas fitas e podia me emprestar, quanddo eu o visitava. Pasei a ficar mais a vontade nas situações que antes me incomodavam. Quando eu chegava da escola e não tinha ninguém, eu agarrava um copo de refrigerante, um pacote de biscoito e sentava na cama em frente ao video game. Quando meu pai não estava em casa eu me senta a vontade até pra ficar deitado, largado na frente da tv.

As obras das nossas casas nunca foram 100% concluídas. Acho que a primeira casa foi a que chegou mais perto disso. A segunda, o chalé, era bem grande mas a parte pronta era só a sala e a terceira e última ficou só na cozinha, no banheiro e o meu quarto. Mas Pudemos ter dois cachorros. O primeiro era o Joe. Depois arranjamos uma namoradinha para ele, a Capitu. Os cães acabam por se identificar com algum ente da família, o "chefe" ou o mais influente. Em outros casos, ele se apega a "criança" da casa, como um lobo que defende os indefesos do bando. Joe respeitava muito meu pai. Tinha medo terrível dele. Nisso, se parecia muito comigo. Além disso, tinha outras características nele que chamam a atenção. Quando a casa na pedreira estava em construção, deixamos ele lá para tomar conta. Quando chegávamos la para trabalhar na obra, meu pai, minha mãe e eu, ele fazia maior festa. Quando iamos embora e deixávamos ele lá sozinho, ele fazia um escândalo. Ouvia se o latido dele a muitos, muitos muitos metros de distância. Por vezes ele escapava e ia correndo atrás do carro. Uma vez ele pulou a janela que estava tampada com uma madeira grossa e escoras. Tipo ninja, ou Missão Impossível. Parecia chorar por ficar sozinho, com medo que ningém fosse mais voltar. Eu tinha pena de deixá lo lá. Era eu quem ia lá colocar comida e água para ele quando não iamos para trabalhar. Me espantava porque ele parecia crescer mais rápido longe dos meus olhos. Ele abanava o rabo e arfava com a língua para fora. Parecia angustiado. Vivendo sozinho, preso, no escuro, na incerteza se voltariamos para buscá lo ou não. Como é possível que mesmo vivendo assim, um ser aparentemente irracional, seja incapaz de deixar de amar? Bastaria um tapa da vida para eu me revoltar contra tudo e todos e terminar por "morder o próprio rabo".

A "pedreira", como era conhecido o local, trazia gente de todo lugar. Uma oportunidade de fazer amigos. A última estação da infância. Quando chegamos já estavam lá Julinho e Jardel, filhos do Seu Julio, o Elton e Elielton, filhos do Seu Elias, o Anderson "Play" e a Renatinha, Filhos do seu Waldecir, e o Roni, filho de uma mulher que não saia de casa. Depois Chegou o Jorge Willy, filho da dona Maria, Mezenga, Tiago e Kiel, filhos do Seu Geraldo. Também o Nêm, o Ezequiel e a Alinne, o Xande e a Alessandra, a Luana e o Ruizinho, e por aí afora. Choramos juntos a copa de 98. E, muito mais unidos, comemoramos a de 2002. Passamos madrugadas dentro do Passat do pai do Xande esperando os jogos, ou bebendo vinho escondidos nos altos churrascos na casa do Seu Renato. Nesse novo ambiente eu fiquei um pouco mais solto. Foi o lugar onde eu brinquei das coisas que eu nunca aprendi e não aprenderia. Rodar pião, bola de gude, soltar pipa. Eu só quera jogar bola e ficava indignado quando alguém deixava de completar o time para ficar no sol escaldante olhando para o céu cortando os dedos e enrolando linha. Eu gostava de correr atras das pipas voadas. Colecionava porque não sabia colocar no alto. Consegui umas duas vezes na vida. Na primeira foi graças a uma ventania que até eu quase voei. Mas veio uma outra pipa para o cruzo. Meu pai pegou a linha da minha mão e foi cortado. Da outra, também graças a um forte vento. Mas eu esqueci de amarrar a linha na lata e ela foi embora e me deixou olhando pro alto vendo ela cair lá no topo da pedreira. Foi o lugar do pique esconde, da fogueira de batata doce e até batata inglesa. Jogávamos ping pong e batíamos pique-esconde. Fora isso, zoávamos uns aos outros. Willy e eu tínhamos uma rizada tão escandalosa que minha mãe diversas vezes saiu de casa pra me dar bronca na rua, muito longe. De lá ela ouvia. O mundo inteiro ouvia. Será que era o eco nas pedras? Era um paredão de pedra, um morro literalmente cortado ao meio. Dentro dessa cavidade eram os lotes. Uma rua descia serpenteando como um rio até chegar lá em baixo na entrada. A pedreira inteira era o numero 54 da Visconde de Sabóia. Quando chovia víamos cachoeiras se formarem nas pedras e um rio descer a rua até lá em baixo. Por vezes rolavam algumas pedrinhas de muitas toneladas que assustavam um pouquinho ms nenhuma casa era atingida. O terreno que foi doado para área de lazer era o mais perigoso. Nós capinamos, tiramos pedras e vidros pois era uma antiga área de reciclagem de vidro que fazia parte da pedreira. Aplanamos e construímos traves de perna de 3. Compramos bola e redes. Fizemos um campeonato. Se eu disser que eu era muito bom de bola, vão dizer que é porque o livro é meu. Só pra constar, vou dizer que eu era só bom. Jogávamos contra o time da travessa Crichanas, contra a Escolinha do Dodé, na Graga Melo, contra o time do Nordeste, que era o time "dos paraíbas" que moravam na outra entrada da pedreira, e contra o time da Panela. O time da panela era o mais divertido.

Eram os caras mais velhos que se juntavam para confraternizar a amizade e a família em seus churrascos regados a cerveja. Montavam seu time de pinguços mamados e desafiavam os mias jovens. Que divertido! Eles ganhavam da gente a maioria das vezes mesmo estando quase cegos e sem cordeação motora. E a gente não facilitava. Eram malandros também. Jogavam até que estivessem na frente e paravam enquanto estavam com a vantagem. Rob, Naldo, Chiquinho, Cristiano..Time da Panela. Naldo é lembrado pelos seus conselhos. Ele era casado com uma mulher que tinha a silhueta de uma árvore lendária da amazônia. No temperamento, era tão grossa quanto a sua silhueta. Ele estava se separando. Ele já tinha uma outra pessoa. Talvez ele estivesse meio deprê com a situação. Um dia, ele chegou daquele jeito, trocando as pernas e, como quem adiasse entrar em casa e enfrentar a realidade, passou algum tempo nos dando seus conselhos, que eram coisas que ele estava talvez estivesse repetindo para sí mesmo. Disse ele com essas palavras: " Cara, você pode ser um zé ninguém, solteiro ou casado...mas chega um momento onde todas as mulheres querem ficar com você. Começa a chover oportunidades". Neste dia, nós jovens cheios de hormônio, instituímos o "Dia Do Naldo" e passamos a esperar por essa bênção para que pudêssemos arranjar uma namorada. "Tomara que chegue logo o meu "Dia do Naldo". Sabe o que eu acho? Que esse tal "Dia do Naldo" é de fato, verdade. Vivi esses dias em certos períodos da vida. Umas vezes aguardava ansioso. Outras outras vezes cometi erros infantis por causa dele. "Não vou deixar passar! Chegou o dia do Naldo! - pensava mesmo quando já era um adulto em idade. Quanta imaturidade...

A Carlinha ficou pra trás. Agora, eu gostava da Renatinha. Naldo me zombou de mim demais. Bêbado e rindo de mim quando os colegas disseram a ele: "Che é apaixonado pela Renatinha". Ele apontou o dedo para a minha cara, abraçou a barriga com a outra mão, curvou os joelhos, levantou o pescoço e abriu a boca cheia de dentes brancos, soltando uma gargalhada profunda que encheram seus olhos de lágrimas. Parecia dizer: "que otáaaario!". Bem, todo mundo sabia que eu gostava dela. E não só porque eu tinha escrito com tinta num muro, por razões que não pude até hoje compreender. "Natinha, Te amo, Che". Que imbecil! Não foi a única vez que eu joguei no vento as coisas que ela ignorava. Cedi a modinha dos pichadores de muros. Eramos crianças e não tínhamos uma rotina muito criativa. Tudo o que aparecia para fazer era novidade.

Dona Dalva era uma Cristã Assembleiana que construiu uma igreja no seu terreno. Convidou as crianças porque ninguém mais ia. Acho que as pessoas achavam ela meio doida. De fato, isso meio que se confirmaria mais tarde. Eu ia na igrejinha da Dona Dalva por causa dela, da Renatinha. Era magrinha, magrinha mas eu gostava dela do jeito que ela era. Jardel gostava da Aline. Play e Willy eram os que animavam as zoações. Iamos pra brincar, mas liamos a palavra de Deus e cantávamos. Play tocava Pandeiro. Gostamos da harpa cristã. Cada um pegava uma e acompanhávamos a mesma batida do pandeiro para todas as músicas. "Tá tá táaa! Tum Tuuum!" repetidamente. "Jesus, ó filho de Davi / tem compaixão de mim, Senhor". " Jesus eu quero hoje ver...." É bom ver aquela cena infantil na memória, como se fosse uma foto.

Eu era muito tímido. Escrevia cartinhas pra ela. Mandei uma caixa de bombom da Garoto que, pra mim, era uma fortuna. Deixei de jogar Fliperama durante um tempão pra guardar as moedinhas do troco do pão. Ela comeu os bombons sozinha. Tudo bem, né. Acho que é isso! Um dia ela dividiu um biscoito comigo, um biscoito. Pra mim foi o máximo! Lembro de ter comprado um cartão pra dar a ela. Eu fiquei sabendo depois que quando ele abria tocava uma musiquinha robótica como a de caixinha de musica, com o tema do Titanic". Ela nunca correspondeu mas nunca perdi a esperança. Iamos na igrejinha e quando acabava ia as meninas cochichar de um lado e os meninos se zoarem do outro. Jardel era mais esperto que eu e já estava adiantado com a Aline. Ela, pra ajudar, descobriu no armário de Renata uma carta que repetia linha por linha "che, eu te amo" até o final. Contrariando, Aline pegou a carta na marra e me entregou. Renata muito envergonhada e tímida não admitiu o sentimento. Uma vez demos um beijo estalinho na porta da casa dela mas ela virou o rosto. Tempo depois eu a vi beijando outro colega nosso. Bruaca! Cheia de vergonhazinha comigo, depois tava disputando com o outro pra ver quem engolia quem. Foi horrível na hora, hoje é uma maravilha recordar. Eu queria marar o Xande, mas só quando os via juntos. Fora isso, a gente jogava junto, zoava junto, bebia vinho escondido junto lá na padaria da Laurindo Filho. Quando eu sabia que eles terminavam eu ficava com esperança. Porém ela começava outro namoro. Foi o Marcelinho, foi o Jardel e até o Julinho. Eu pensava de mim: "Nascido pra ser trouxa!". Era parecido com o que meu pai falava pra mim as vezes. Ele dizia: " ...Nasceu burro, não aprendeu nada e ainda esqueceu a metade". Eu só baixava a cabeça.

Eu gostava de ficar perto do meu pai vendo ele mexer no carro ou no som. Acho que ele se incomodava tal qual o Seu Madruga quando era estorvado pelo Chaves. Ele me mandava logo fazer alguma coisa mas, como eu era muito distraído, acho que ele perdia a paciência. A ferramenta estava na minha cara e eu não via. Depois de um tempo eu nem queria ficar mais perto pra ele não me mandar fazer nada, pra ele não ter que me chamar de burro. Ele chamava também de inteligente quando eu tinha umas ideias que ele gostava. Aí ele dizia que eu não era burro, mas me fazia de burro. Em suma, ele dizia que para umas coisas eu era inteligente ,mas para outras eu era um tapado. Eu queria perguntar sobre aquele lance do sorvete, se era daquele jeito mesmo, mas deixei quieto. Sobre a caixa de bombom e tal... Quis perguntar pra minha mãe, mas fiquei com medo dela apontar defeitos físicos nesta também. De fato, isso aconteceu. mesmo sem eu falar ela sabia das coisas. Aline, minha mãe, era uma mulher de uma intuição espantadora. Eu presenciava isso nas paranóias dela com o meu pai que, na verdade, de paranóias não tinham nada. Meu pai teve um celular Motorola StarTac por conta dos anúncios do aluguel de som. Logo, ligações estranhas eram rastreadas e irregularidades levavam a abertura de inquérito. A solução foi vender o StarTac. A alternativa foi a minha mãe ter um telefone celular. Então, compraram o Nokia 8260 que tinha o joguinho da cobrinha. O recorde era meu até algum desocupado bate lo. Minha mãe disse para eu dar o número para a Renatinha, afinal, eu nunca vi aquele telefone em vida com crédito. Não sei como a ATL não cortava a linha. Ela disse que ia me ligar do telefone do pai dela. Eu fui pra casa e fiquei esperando. Quando o telefone chamou minha mãe atendeu. Ela reconheceu a voz da minha mãe de desligou sem dizer nada. A Agente Especial Aline do FBI já começava a levantar hipóteses e se dirigia para interrogar as testemunhas e colher provas que incriminassem seu inocente marido quando eu disse que esperava uma ligação da Renatinha. Ela, esvaziando se do ódio e voltando a sanidade, teve a brilhante ideia de retornar a ligação ela mesma. Renata atendeu e minha mãe disse com uma voz de apresentadora de programa infantil: "oi! Pode ligar pro meu filho, viu! Não tem problema não." Gente, o que as mães de meninos têm na cabeça? Que vergonha. Outra vez, ela discutia com seu Julio quem era o namorado da Luana, a menina mais bonitinha do pedaço. Seu Julio falava que era o Jardel. Minha mãe dizia que era eu. Cara, o que é isso? Eu já tinha tentado e até conseguido uns beijinhos, já que a Renata nessa época estava namorando o Xande. Mas águas já tinham rolado e Jardel, de fato, estava tendo os olhares dela. Minha ontade era perguntar: "cês não têm vergonha não? Fofocando da menina!" Fiquei com tanta vergonha que me deu raiva e eu desabafei quebrando um walkman. Não era um AIWA, mas era onde eu ouvia as fitas k7 do Legião Urbana. Tia Mylene tinha todos os Cds e nós estavamos começando a ouvir rock. Willy estudava no Visconde de Cairú, no Meier. Lá todo mundo ouvia rock, andava de skate e tinha namorada. Meu pai tinha na sua pasta de CDs, patrimônio da Highlander Som, o CD "que país é esse". Era o que eu tinha de rock. depois, a Radio Cidade viria dar uma força.

Eu Terminei a 8a série em recuperação em Geografia. Foi a primeira vez que fiquei de recuperação. achei que dar a noticia pra minha mãe seria o fim da vida e o início de um castigo eterno. Contudo, nada de mais. Nem um olharzinho mortal. No primeiro ano repeti por falta. O PlayStation 1 era a companhia da madrugada. Biscoito e refrigerante alimentavam a vigília. Só dava sono na hora de ir pra escola. Eu até queria ir, depois de um tempo. Mas não conseguia acordar na hora. Raramente minha mãe me acordava, muito irada e com a cara amassada. Me socava e dizia: SEIS E QUINZEEEE!Meu pai disse que se eu não estudasse que eu iria começar a trabalhar. Não sustentaria vagabundo. Eu até queria uma certa independência dele. Mas achei melhor estudar, ou fingir estudar. Era assim que ele me ensinava o que era ter dignidade, ser homem: trabalhar e ser livre. Era garçom de profissão e conheceu a minha mãe no "Tem Tudo" de Madureira onde ela era caixa. Porém,preferia trabalhar para sí, ser seu próprio patrão: trabalhava mais e ganhava mais. gostava disso. Gostava da noite e isso talvez deixasse minha mãe incomodada, enciumada talvez. Ele era musculoso e forte. Essa era a outra coisa que envolvia ser homem, segundo ele: Pegar mulher. " Se te der mole, passa o "rodo" ". Não era rodo a palavra.

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Quando meu pai estava em casa eu procurava não ficar muito perto deles. Era como um gato ou um cão que se sente acoado e só se aproxima com o rabo entre as pernas na hora da comida ou quando é chamado com carinho e doçura. Na pedreira eu era mais livre disso. Podia ficar lá fora esperando eles acabarem de brigar a vontade. Minha vontade era de estar sempre do lado da minha mãe, mas as vezes dava razão ao meu pai e queria que ela parasse de beber. Na verdade, sempre achei que essa seria a solução das nossas vidas: minha mãe parar de beber. Uma vez ele chegou em casa e viu ela muito bêbada. Então, jogou uma colher de açúcar no copo dela. A cerveja espumou e ela fez uma cara muito engraçada de quem não estava entendendo nada. Eu corri pro quarto e comecei a rir daquilo. pouco depois eu presenciei a pior das brigas deles. Penso eu que poderiam fazer tudo a ela, menos mexer com a sua cerveja. Digo isso por conta de uma ocasião. Uma vez ela me mandou comprar 3 cervejas na Dona Maria. Era sempre eu. Ia de 3 a 4 vezes na rua comprar para ela cerveja ou cigarros. Fui de tanta má vontade por ter sido tirado do videogame que coloquei as garrafas na geladeira com brutalidade e uma delas bateu numa garrafa dágua e quebrou. Éla só ouviu o barulho e já veio pra cima de mim gritando. até que ela viu que o que havia quebrado fora a garrafa dágua e não a de cerveja. Passou a sua raiva instantaneamente sem mesmo dar tempo de eu engolir o susto. Ela disse: ah...tá...não...deixa aí que eu limpo. Vai lá!

Isso era meio que rotina. Meu pai ia trabalhar e minha mãe bebia suas cervejas. Ele voltava tarde e desentendimentos eram frequentes. Meu dia a dia. Será que ele vai brigar com ela quando chegar e ver que ela está bebendo? As vezes sim, as vezes não. Os motivos pareciam ser sempre os mesmos. Ou por causa de ciúmes, de ambas as partes, ou por causa de dinheiro. Era assim desde que eu era pequeno. Era assim em Friburgo, na Miguel Rangel, na Pedreira. No final eles se entendiam.

Bem, eles eram um casal. Eram marido e mulher. Sabiam se entender fazer as pazes como um casal. Eu sempre dormi próximo. Mesmo na pedreira, onde eu tinha meu quarto. Nesta casa eles dormiam na cozinha, que era o único cômodo pronto além do banheiro e meu quarto. Me precavia para não surpreendê los. Mas quando em Friburgo, quando eu era mais novo e inocente, não tinha essa consciência. Quando, durantre a noite, perguntava sobre o que ouvira a noite, as vezes a resposta era rápida: Cala a boca, vai dormir. Nunca fui sonâmbulo e nunca fui de falar dormindo mas acho que eles achavam que sim. Quando um pouco mais velho eu infelizmente vi uma cena e corri. Me perguntaram depois, como que eu fosse inocente, se eu vira quem tinha mexido na porta horas atras. Eu disse que não sabia. Eram coisas que vagavam sem direção pelo meu inconsciente, mas que se ancoraram na memória de alguma forma assim como as panelas que voavam as vezes e acertavam as paredes e o quadro de São Jorge do meu pai. A tatuagem que ele tinha no braço era parecida, mas as cores já tinham se misturado num tom de verde. Os objetos atirados ao chão, as janelas quebradas, os gritos e a fragilidade da minha mãe. Eu nunca sabia o real motivo das discussões porque não ouvia as suas conversas. Eu me escondia em algum lugar ainda que tivesse que fugir pra dentro da minha mente. Essas coisas não se refletiriam nas minhas ações no futuro, pois a imagem dos seus rostos eram sobretudo de angústia e eu associei as brigas com coisas ruins que eu não gostaria de viver no futuro e, de fato, nunca as repeti. Porém, a cena explicita que eu acidentalmente presenciei marcou em mim instantaneamente como uma coisa boa. Uma coisa observada na infância estava começando a fazer sentido na adolescência. mas quem poderia me ajudar a ajustar essas memórias e os sentimentos novos? Ao contrário das brigas, do desentendimento e desunião frequentes que me envolviam, a expressão no rosto da minha mãe indicava uma coisa muito boa. Não vi o rosto do meu pai porque ele estava deitado a baixo da linha da cintura dela procurando alguma coisa, provavelmente. Pensei que gostaria que eles fossem assim sempre, pra sempre. Não naquela cena porque me encabulava e me fez correr envergonhado. Mas era melhor que vê los tentar se matar, cuspindo ódio e atirando ofensas. Aquela expressão física me dizia que aquele sentimento que meu pai dava a ela naquele momento, daquela forma, naquela posição, era a forma de cuidar de alguém que ama como namorada, como esposa. Deve ser bom e prazeroso fazer alguém sentir se amada e aquele era uma maneira que eu descobri, acidentalmente, na vida dos meus pais. São esses poucos fatos que ficaram no meu consciente mas, associando aos reflexos disso na minha vida adulta, no meu comportamento afetivo, imagino meu subconsciente como uma árvore de casca grossa onde ursos, tigres e leões afiaram suas garras: cheias dessas marcas. Algumas delas passaram a casca e marcaram minha personalidade. Quanto as brigas, eu fugia delas e não queria aprender a brigar como ele brigava com ela. Na minha mente, todas as ações partiam dele. A esse sentimento eu reagia fugindo, me isolando, esquecendo, fingindo que nada aconteceu. Os bonecos Power Rangers, os Videogames, e a bola "dente de Leite" chutada contra a parede eram os abrigos anti-guerra que acontecia na minha mente. Quanto a afetividade, essas marcas fariam diferença. Algumas coisas seriam distorcidas, outras imaturas. De fato, tudo é mais fácil cicatrizar na infância: machucados, sentimentos...Quanto mais tarde, mais difícil.

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Elielton foi um amigo que semeou um diferencial na minha vida. Trouxe de volta um sentimento que estava caindo no esquecimento: As músicas que falavam do tal Jesus. Agora elas pareciam mais íntimas Dele, pois falavam Dele com muita propriedade. Convidavam a ir mais perto também. Eu já tinha aqueles sentimentos dentro de mim, só não sabia por quem eu sentia aquilo. Não era pela Renatinha, não era nem pela minha mãe. Quando proclamávamos em uníssono, na "paradinha da bateria", que era quando o ministério de música deixava só a assembléia se declarar a Jesus: "distante de Ti, Senhor, não posso viver, não vale a pena existir / Escuta o meu clamor / mais que o ar que eu respiro, preciso de Ti". Eu sentia me acolhido e muita vontade de deixar desabar as lágrimas que estavam represadas. Meus pais brigavam com frequência por causas diversas. Mas eu sempre imaginei como sendo o álcool como a droga que causava todo o desentendimento e discórdia da minha casa. Só que não era tão simples assim. O álcool era uma infeliz alternativa da minha mãe para suportar Também os seus dilemas particulares. Nunca me passou pela cabeça, mas ela tinha uma vida além do meu pai e além de mim: Tinha uma história só sua. Tinha as suas crises existenciais, as suas frustrações, as suas melancolias, suas raivas, seus medos, suas tristezas. Meu pai também tinha a história particular dele. Eles não eram apenas o meu mundo, os coadjuvantes da MINHA história. Eles eram tabbém protagonistas das príprias vidas. Histórias dentro de histórias, vidas dentro de vidas, como mundos ou dimensões paralelas. O ser humano é algo muito além das aparências e muito além dos horizontes da nossa possessividade e egocentrismo. O mundo não gira ao meu redor. Meu pai devia ter também as maneiras dele de se aliviar, destressar. Só não eram na cerveja. O que poderia se compreenderia como "O vicio destrutivo" no universo de Ricardo? O da minha mãe, do meu ponto de vista, era o álcool. Qual seria o equivalente no "meu universo"? Decerto que, como as anestesias não curam as dores, uma hora as feridas purulentas explodiam. De fato, aquilo que era usado como válvula de escape se tornava, muitas das vezes, o combustível na fogueira de discórdias, de desentendimentos, de ira, de revolta. As vezes a gente briga com algo do lado de fora porque não consegue lutar com algo que está por dentro. Numa das brigas deles, onde eles projetaram um no outro suas frustrações consigo mesmos, fui para a casa de Elielton, mas não me lembro como nem porquê. Grande amigo, Elielton. Além de tudo, foi um "Cirineu" na minha vida.

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Elielton tinha 17 anos e frequentava a Primeira Igreja Batista de Inhaúma desde novo. Era uma igreja muito avivada sob a direção do Pastor Alexandre. Ele tinha uma expressão séria e intimidadora e eu pensava que os espíritos maus deviam ter medo daquele olhar sério e sólido dele. Jorge Willy e eu visitávamos a sua igreja as vezes de carona com os pais de Elielton. Eles sempre nos convidavam para ir a igreja. Aquela família cristã naquela foi uma benção de Deus naqele lugar, sobretudo para mim. As cosias que Elielton contava sobre a igreja e retiros que fazia, sobre os muitos jovens (meninas e namoro santo, inclusive) acabavam nos enchendo os olhos. Outro fato era que para nós sair de casa por sí só já seria um evento marcante. Ver pessoas diferentes e em outro bairro. Nossas vidas sociais de jovens se resumia na vizinhança e na escola. E eu era o único que não estudava na Escola Municipal Jaime Costa. Era o único que estudava de manhã. Quando todo mundo estava saindo pra aula ou pra cabular no Norte Shopping, eu tinha que ir pra casa. Eu matava aula pra dormir na pracinha de Cavalcante, geralmente até a hora da minha mãe ir trabalhar. como meu pai estava sempre na rua a trabalho, eu ficava de boa, jogando Playstation 1. Ir a igreja com Elielton compensava o que eu perdia.

Lá na PIB de Inhaúma as pessoas eram mais bem arrumadas. Era um choque mas eu me sentia bem por conta de ser uma coisa nova. Ganhei a minha primeira bíblia e eu tirava tempo do vídeo game pra lê-la com cuidado de procurar entender alguma coisa. Não sabia se devia começar pelo começo, o Gênesis. Talvez alguma outra parte. Só não queria nem abrir no Apocalipse. Nos reuníamos por vezes na casa de Elielton para jogar videogame e outras vezes só pra passar um tempo. Ele nos ensinou Xadrez e seu irmão mais velho, Elton, nos influenciava a dançar pra impressionar as meninas. Dançava hip-hop e lambaeróbica. Rebolar como eles estava muito fora das minhas habilidades motoras e psicológicas. Morria de vergonha. Dançar foi um tipo de experiência tão frustrante que lembro pouco e o pouco que lembro faço questão de esquecer. Me interessei mais pelo teclado que Elielton estudava com afinco. ele fazia parte do ministério de música na igreja e eu arrisquei me melhor com os dedos do que com o corpo todo na dança. Me inscrevi na aula gratuita no Colégio Estadual Souza da Silveira, que era ao lado do França. Não fui muito encorajado lá. Não ter um teclado próprio não ajudaria a aprender, disse me o professor. Jorge Willy estudava no Méier e conhecia uma rapaziada diferenciada, que tinha acesso a coisas que nós não tínhamos. Willy nos trouxe o skate, violão . Passamos a ouvir a Rádio Cidade no fim da tarde antes de sair pelas ruas esburacadas que nos levavam ao estacionamento do Supermercado ABC de cascadura. De calças largas e tênis furados, íamos pelas ruas tentando manobras radicais de maneira desengonçada. Muitos se aventuraram no SK8, inclusive e Elielton e Jardel, por influencia do Jorge que tinha a mim e ao Play como adeptos assumidos.

Elielton me consolou pela aula de teclado e me ensinou o contrabaixo no violão para que eu o acompanhasse no teclado. Ele próprio passou a aprender violão pra interagir conosco. ". Ainda temia mas já não pensava tanto do fim do mundo mesmo que o profeta NOSTRADAMUS tivesse aparecido com sua profecia de que o mundo acabaria no dia 11 de agosto de 1999. Cara, era o dia do meu aniversário. Isso é verídico. Isso é uma piada interna na minha história. O terror da minha vida estava profetizado para acontecer no dia do meu nascimento. Mas como ninguém se preocupou eu mantive a calma. Na alma sabia que não era esse tipo de catástrofe que eu temia. Talvez algo maior ou menor. Não deste tipo. Eu ia gostando mais e mais da igreja, logo eu senti o desejo de levantar a mão quando o pastor perguntava a todos depois da pregação: "Quem quer aceitar Jesus como seu salvador?" Demorei alguns domingos para ter coragem mesmo querendo. Willy, quase sempre conosco, saia do culto quase sempre com as mesmas indagações que eu e conversavamos sobre isso. Depois, voltávamos a tentar aprender as músicas da banda Nirvana que tinham de dois a quatro acodes. Meu interesse pessoal me levou a conhecer o Legião Urbana. Tia mylene tinha todos os Cds e eu ia lá pra gravar numa fita K7. Eu gostei de aprender os acordes e treinar a pestana, embora fosse difícil tocar naquele violão empenado que o Play me emprestava. Sentindo dificuldade, voltava para os Power acordes ou acordes de guitarra com apenas dois dedos. Além disso, fazia mais sucesso entre os colegas essas músicas internacionais. Enfim, depois de tentar sem sucesso levantar a mão, consegui e fui lá na frente dizer a assembléia que eu queria ser desse Jesus aí que eles estavam falando. Só falavam, coisas boas do cara e mesmo sendo eu um questionador nato como revelara a minha pequena experiência no Kardecismo, eu só perguntava como e não por quê. Além do mais, eu queria muito aquilo que estavam me oferecendo: " Recebe a cura/ recebe a unção/ unção de ousadia/ unção de conquista/ unção de multiplicação". Aquela música me lavava. Naquele dia acho que o Willy se espantou com a minha atitude mas acho que tinha o mesmo desejo. Sem dúvida , eu sei que sim. Fui batizado nas águas embora já fosse batizado na Igreja de Santo Antônio em Belém do Pará logo no primeiro ano de vida e também na Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, também em belém. Sim, duas vezes. história curiosa que tem uma explicação que vai ficar pra depois. Quando aceitei Jesus lá eu ainda não compreendia o pecado. Achava que ao levantar a mão eu seria instantaneamente Santo. Adolescente, a vida começava a revelar seus prazeres como o álcool e a masturbação. Quando na igreja, não conseguia suportar saber as coisas que eu fazia escondido.

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Saíamos em bando, Alexandre, namorado de Renata, Willy, Mezenga e eu para comprar uma garrafinha de Cantina da Serra na padaria. Dava um copo de 200ml para cada e era o auge, "o" porre, "a" embriaguez. Eu tinha aversão a cigarros. Tinha uma vaga ideia do que seria maconha. Eles como tinham mais liberdade que eu já tinham estado perto em algumas situações. Menos o Mezenga, que era da igreja. Os outros saíam escondido para o baile funk. Ninguém nunca nem me chamou porque sabiam que eu gostava de rock. Eles iam ao "Castelo das Pedras" e as vezes nos bailes do morro da Primavera ou do Morro do Urubu. Lá faziam amizades diferentes, de outras realidades diferentes daquela da Pedreira que, até então, permanecia preservada. Sei que alguns deles provavelmente chegaram a experimentar algum outro tipo de tóxico nessa época. Os que de fato experimentaram não chegam a ser citados aqui devido a distância que tinhamos na infância. Não chegaram a ser tão influentes nesse momento da minha história. O que vale apena registrar é o fato de que eramos inocentes e protegidos na pedreira. O mundo do lado de fora era de um mistério sedutor. O baile que eles iam é apenas um dos muitos exemplos de "mundo externo" (poderia ser um pagode, ou uma danceteria, um bar etc...) que favorecia a "sedução pelo novo" na nossa "saída em descoberta da sexualidade" que alimentava a nossa "falsa sensação de liberdade" refletida na bebida e, mais tarde também nos cigarros, nas drogas. é claro que a sexualidade era o impulso pra tudo isso. No primeiro momento, meninas e mulheres rebolando seminuas era tudo que um estudante caseiro que não podia ir até a esquina sem avisar, sonhava. No "mundo externo" muitas jovens "amadurecidas" precocemente nos vislumbravam. Não é exagero nem preconceito dizer que no "mundo externo"era fácil encontrar jovens de 14 anos que já tinham experiências sexuais que mulheres de 30 não tinham nem em número nem em intensidade. Mas o que é importante dizer é que, nós, cafés-com-leite, caímos de para-quedas naquela realidade que não era nossa. Fomos seduzidos pelos prazeres que não tinhamos no nosso mundinho da pedreira, que nem na história do "Pinóquio". Ficar com uma menina que sabia pintar e bordar com a gente de cima a baixo nos fazia sentir ser "O cara". Para que isso acontecesse, evidentemente, tinhamos que "dançar conforme a música". O que era atrativo para uma menina naquele mundo senão a autoconfiança, personalidade e falsa independência. Não é mentira se eu disser que a maioria delas se sentia atraída pelos que, ao menos aparentemente, tinham um "estilo marginalzinho juvenil". É o que se destaca entre os "deslocados". Meninas que gostavam de moto, de armas, de bebidas faziam aqueles que tinham outros tipos de personalidade se enquadrarem. Elas, por sua vez, sabiam que garotos "legais" gostavam de meninas liberais, de roupas curtas, sem frescuras. em suma, a sexualidade movia os mundos e a afetividade era contaminada pelo prnográfico. Para nós, que já gostavávamos de um copinho de vinho, passamos para o nível "garrafão de 5 litros". Vivendo e aprendendo o que é "ostentação", no sentido "popular" da palavra.

Meu pai guardava em casa coisas que ele não precisava ter: Revistas no banheiro e Fitas VHS no Videocassete. Eu achava que era malandro botando depois no mesmo lugar exatamente como encontrei. De fato, estavam alí para que eu as encontrasse. Mas agora estava cada vez mais próximo de "abandonar a covardia de fazer JUSTIÇA com as próprias mãos". Eu não curti o baile funk (que acabei indo uma vez e me espantei com a quantidade de armas que eu não via nem nos meus jogos de video game mais violentos) mas curtiria ir ao Garage, bar de roqueiros. Por uma lei natural, as curiosidades foram nos levando pouco a pouco ao mundo exterior, nos deformando e conformando segundo o mundo que visitávamos de acordo com as possibilidades. Sendo assim, eu demoraria um pouco mais para me aventurar. Pelo menos até os 18 eu ficaria só nesse habito do copinho de vinho. De qualquer forma, acabaria trilhando o mesmo caminho, seduzido pelas mesmas facilidades e descobrindo pela curiosidade os prazeres mais perigosos.

Ser virgem sempre foi um absurdo para os adolescentes. A Sexualidade sempre teve e sempre terá os seus tabus. Há pessoas (psicólogos e sexólogos, inclusive) que incentivam a masturbação ao defender conceitos que, segundo eles, quebram "tabus" da sociedade quanto a sexualidade. Obviamente, a consequência disso é a iniciação sexual precoce na juventude. De fato, nem é necessário "apoio" de psicólogos e teóricos para que isso aconteça. A banalização de muitos conceitos na sociedade já faz isso com maestria. Acho que eles só acompanham a moda popular para estarem "por dentro". O que mais se ouve nos rádios dos carros, nas baladas, nas festinhas de família, nos fones dos estudantes é o "senta, senta, senta!" Não é exclusividade do funk. É propriedade de tudo que é POPULAR. E não é só música. Isto é de fato uma filosofia. As novelas pouco a pouco traduzem essa cultura na dramaturgia e alimenta o populismo do "que se dane a afetividade como ponto crucial da formação do jovem como ser humano". Mas não é culpa da televisão: Apensas tiram proveito duma fragilidade do ser humano: a necessidade de "autoafirmação como indivíduo". A incitação sexual na juventude cessa o amadurecimento afetivo já que deveria representar a maturidade de todos os sentidos humanos. Quem descobre o prazer e a independência dificilmente reconhece suas fragilidades e fraquezas: Jovem não sabe dizer "não sei, não entendo, não quero". Só sabe dizer "sei de tudo", "vamos nessa".

Se é questão de opinião ou não, nada muda o fato de que ficamos marcados no inconsciente por aquelas imagens, sons, ideias e conceitos que, de fato, passamos a procurá las no mundo real. Quando não a encontramos prontas, as produzimos. Aprendemos a nos relacionar como "objetos" e passamos a entender que transar era a coisa mais importante da juventude e pessoas de carne e osso poderiam se usar como utensílios e o corpo é um "parque de diversões". Distorcemos o conceito de relacionamento e fomos doutrinados a acreditar que sexo é um "bem de consumo": quantidade seria melhor que qualidade, variedade seria melhor que estabilidade, oportunidades não deveriam ser desperdiçadas...e por aí a fora. O desenvolvimento irregular da sexualidade não depende de cometer o ato sexual. Uma ideologia liberal consolidada no pensamento já é ocasião para interromper o amadurecimento afetivo correto e necessário para a saúde mental.

Por serem coisas inevitáveis da vida, as relações afetivas, carregamos marcas desse tipo. Podem ser tratadas ou podem ser agravadas e transformadas em lesões definitivas, como um osso que calcifica no lugar errado. Entram aí, então, outras particularidades da vida. Eu tinha as minhas marcas como todo mundo. Poderiam ser agravadas ou não. Podem gerar transtornos que geram desequilíbrios, que geram vícios, que geram transtornos obcessivos-compulsivos e evoluem para doenças que destróem diversas áreas da vida. Disturbios na AFETIVIDADE são piores que um câncer destruidor e invasivo. São portas de entrada para uma "doença crônica, progressiva e incurável que destói o indivíduo, seus planos e sonhos, suas relações familiares e sociais, e que mata desmoralizando". É uma "droga".

De todos os meus colegas jovens, mesmo os da igreja, nenhum era bem esclarecido quanto a sexualidade. Todos nós recebíamos a mesma influência externa que sofre todo e qualquer jovem, de qualquer idade, de qualquer lugar, de qualquer religião: Todo mundo quer descobrir o mistério do amor, de ter uma namorada, de fazer as coisas que a gente ainda nem sabe o que é, mas quer fazer.

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Meu pai já não conseguia tanto dinheiro alugando o seu som para as festas de casamento, aniversário e quinze anos. Foi trabalhar de DJ noma boate na Rua Ceará onde logo deixou de ser empregado para sócio, já que o equipamento de som era dele. Sua intensão era não ser passado para trás. Se ele tinha o som, tinha 50%.

Bem próximo, havia o até então famoso Garage, onde tinha os bares de roqueiros, motoqueiros, skatistas e toda classe de jovens e adultos que se vestiam de preto e usavam correntes, piercings, brincos, tinham bandas e tantos etcéteras que vai terminar nos piores adjetivos para pessoas que frequentam as madrugadas. Sem dúvida, era um lugar onde eu não poderia ir mas gostaria de ir. Por diversas vezes meu pai me perguntara se eu gostaria de ir com ele fazer "amizade" com alguma dama lá onde ele trabalhava. Eu queria mas dizia que não. Crescia o desejo em mim pela adolescência em sí, os amigos e conversas, mas também pelos incentivos de meu pai, as coisas que ele dizia sobre as mulheres, sobre como deveriam ser os homens em relação a elas. Eu ouvia timidamente mas quando sozinho com aquelas revistas e vídeos eu me descobria a vontade. De fato eu recusava a oferta do meu pai por vergonha do meu corpo. Eu era peso pena, braços finos e tinha receio de como uma mulher daquela vê veria sem a proteção das minhas roupas.

Quando saía com meu pai ele sempre falava coisas sobre como homens devem ser unidos aos homens e não aliado das mulheres. Afirmava que papo de homem pra homem não era para eu contar para a minha mãe, que todo homem tem que ter suas "plebéias" na rua. Não nessas palavras. Ele encontrava se com uma mulher que eu não sabia quem era, mas ele dizia que estava a ajudando e que ela trabalhava na boate. Disse que se ela marcasse bobeira eu deveria fazer o que ele sugeriu: "Homem age dessa forma. Não rejeita mulher. Encapa o garotinho e seja feliz" Ela sempre que me via fazia brincadeiras de me agarrar e passar a mão no meu corpo. Eu evitava passar por ela para não ter que correr. Seria cômico se não fosse trágico. Ela me chamava sempre para entrar na casa dela e tomar guaraná. Isso ficou martelando tanto a minha cabeça que me cansei e juntando com a minha natureza de adolescente em "fase de crescimento", eu decidi aproveitar a oportunidade e deixar de ser virgem. Perguntei quando ela me convidaria de novo para tomar "aquele guaraná". Ela falou: "agora!". Entrei e deixei ela conduzir a situação, já que eu não sabia o que fazer. Me deu o guaraná. Se sentou de frente pra mim e me mostrou uma coisa que eu nunca tinha visto. Depois procurou algo que eu não não tinha mostrado a ninguém. Num tom de voz diferente (insegurança???), ela perguntou se eu já tinha feito aquilo. Eu disse que não. Mas eu vi a minha coragem sair pela porta e gritar meu nome lá de fora. Lembrei da série "Carga Pesada", onde o amigo de Bino tinha o seguinte bordão: "Corre Bino! É uma cilada!" Antes que as coisas entrassem em um nível mais profundo, Fui embora. Depois o adolescente arrependeu se e sentiu se covarde, lamentando a incapacidade de ter ficado ali e fazer o que deveria ter feito. Não contei nada a meu pai. Sabia que ela fofocaria pra ele.

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Lembro me da época minha avó Iena faleceu. Era diabética e cardíaca. Ela tinha uma cicatriz no peito mas nem por isso cuidava da sua saúde. Quando cuidavam por ela, ela descuidava por trás. Foi isso que revelou uma lata de leite condensado escondida no seu armário. Eu não fui ao sepultamento dela. Minha mãe me disse: Tudo bem. Não é a sua mãe, é a minha. Mesmo quando ela estava hospitalizada eu não me preocupava em estar junto da minha mãe nem dela. Eu achava que tudo sempre iria acabar bem. Minha mãe superou bem. Ao menos aparentemente. Afinal, existe possibilidade de se perder uma mãe e ficar bem? Eu não saberia, mas não tinha essa consciência. Só acredito que minha mãe tenha aceitado bem porque não se sentia sozinha. Ainda tinha as irmãs e principalmente a tia Iza. Existia ainda uma base sólida, um chão firme, um porto seguro para quando ela se se separava do marido.

Eu tinha os olhos virados apenas para o meu umbigo, e isso incluia o cordão umbilical que me ligava a minha mãe. Já não a via como pessoa singular mas como uma extensão de quem eu era, como uma parte de mim mesmo. Surgiu o amor egoísta. foi o que revelou essa falta de tato que eu tive quando minha mãe perdeu a sua. Enquanto isso acontecia, eu andava de skate. Eu, Willy, Play e muitos dos outros assumimos o estilo "jovens excluídos, rebeldes, roqueiros, skatistas e bebedores de Cantina da Serra" mas eu não tinha liberdade para ir na esquina comprar um garrafão de vinho sem ser escondido. Muito menos ir a um show de rock de bandas famosas. Não tinha grana nem para o ônibus. Ir a bares de Rock nem passava pela cabeça pedir permissão para ir. Um belo dia, marcaram de ir ao Garage. A rua Ceará abrigava não apenas as casas que formavam a famosa "Vila Mimosa", VM para os mais íntimos. Lá tinham os "bares mais sujos, mais feios mais escuros" (Isso é elogio para quem é adepto ao estilo de vida trash, grunge, metal, punk, gotic, skinhead, hard core...). Eu não me enquadrava perfeitamente em nada. principalmente no estilo de me vestir. Eu ainda usava roupas de criança. Uma vez me contaram que me viram num bar bebendo e jogando sinuca feito um adulto de meia idade com dor de cotovelo. Porém, (riram) vestido que nem um molecote. Faltava só o bonezinho com a hélice de helicóptero.

Para ir ao Garage, foi necessário uma mentira infalível como os planos do Cebolinha da turma da Mônica. Disse ir a minha mãe que ia a um lugar e fui ao outro. Genio! Que criatividade! Devido a proximidade da boate e do Garage, um dos garotos que trabalhava com o meu pai me reconheceu. A boate que ele trabalhava era nesta tal "Vila Mimosa". Não deve ter sido difícil me reconhecer já que eu era o único de camisa colorida e cabelo curto no meio da multidão de cabeludos com correntes e camisas pretas de banda estrangeira. Marcelinho me prometeu que não contaria a meu pai que eu estava ali. Dez minutos depois ele voltaria com aquela mulher pra me buscar: Seu pai tá te chamando lá - disse ele. Meu pai era amigo de muitos jovens onde a gente morava. Acho que pela sua aparência de fortão e de "cara legal". Muitos já estavam em idade de trabalhar e meu pai os ajudava a não ficar à toa. Eles ajudavam meu pai a mexer no carro, a ir montar o som em alguma festa. Estavam sempre em volta dele. Talvez eu quisesse ficar daquele jeito, envolta dele, ajudando em tudo, andando de carro pra cima e para baixo. Talvez ele também me quisesse ali com ele como filho DELE, não o filho da Aline. É possível que existisse uma barreira entre nós que nos impedisse de ter relações de pai e filho. Talvez essa barreira fosse a minha própria mãe. Talvez ela não quisesse que eu me tornasse igual a ele, como quando usávamos roupas iguais. É possível que existissem coisas que ela aceitava nele que, ainda assim, ela não queria para mim. Esses "talvez" são como um pano de seda sobre a verdade reluzente. Ricardo tinha o desejo real de ter um filho legítimo. Depois do meu nascimento, minha mãe realizou o procedimento de laqueadura. Lembro me vagamente de uma das poucas conversas que eu ouvi deles sobre a ideia que ele tentava que minha mãe concordasse: que procurassem juntos uma possibilidade de cirurgia de reversão. Aline, talvez por remorso, talvez por arrependimento, temia. Seu medo era sofrer (segundo o seu entendimento) uma punição de Deus ao conceber. Os dois permaneciam intransigentes segundo seus desejos e medos particulares. Isso é um detalhe fatal: Ele nunca teria o filho que desejava porque eu não o poderia ser e eu não teria o pai que eu queria porque ele não poderia ser.

Escoltado pelo Marcelinho, Subi a escada escura que cheirava a monumento do Centro da Cidade. Passei pelas luzes que dançavam com as meninas no meio da fumaça de glicerina e de cigarro. Saindo de trás da mesa de som, meu pai com o semblante sério, estendeu a mão num gesto informal de cumprimento. Perguntou me se eu queria um copo de vinho e eu estanhei. Ele não me deixava beber. Onde está a câmera? Cadê o Ivo Holanda? É pegadinha não é? Por receio, recusei com firmeza, dizendo que não bebia. Que mentira. Eu já estava alto. Então, ele me deixou a vontade "contemplando o ambiente". Fui ao banheiro urinar e enquanto urinava contei 13 baratas diferentes que se agitavam pela parede e fiz força pra sair logo. Não deu pra terminar de contar. Quando saí ele me apresentou uma garota magrela que estava até bem vestida para uma piriguete. Pelo menos estava vestida. Ela me pegou pelo braço e me chamou de "namorado". Me levou para o quarto.

Eu queria que aquele momento fosse com outra pessoa e desde que entrei pela porta daquele quarto úmido e apertado eu tentei me concentrar no que estava acontecendo. Uma parte do meu corpo instintivamente reagia aos estímulos visuais e táteis mas algo em mim não estava de acordo. Minha mente tinha uma marca, uma memória. Uma imagem que correlacionava duas coisas completamente distintas e que naquele momento (e durante muito tempo) seriam indissociáveis: Amor e sexo. Sem precisar migrar do inconsciente para o consciênte, a trágica e traumática cena da infância não permitiu que eu atingisse o ápice do prazer. Não que eu estivesse pensando na cena dos meus pais. Não estava. Mas aquilo já tinha ganhado outra forma no meu entendimento: Como não tinha uma relação sentimental com aquela garota de programa, o ato físico não era confortável ao meu psicológico. Não estou falando de algo poético, lindo. Muito pelo contrário. Estou falando de algo doentio, que se tornaria mais tarde um vício. Não era o amor que eu tinha relacionado com o sexo. Era o Sexo que eu achava que era amor. Como eu não a amava (sequer a conhecia) não havia sentido naquilo, mesmo eu conscientemente quisesse concluir aquela sujeira. Da adolescência pra frente eu só saberia expressar amor atraves do ato sexual. E se não houvesse sexo, não me sentiria amado pela minha namorada. Naquele momento, porém, tentei manipular a minha mente maginando uma outra pessoa, uma pessoa que eu gostava, que eu poderia pensar depois sem culpa ou remorso. Quando eu mais quis mentir pra mim mesmo eu não consegui me enganar. Me senti desleal e sujo por pensar na Renatinha enquanto uma desconhecida me espetava nas partes baixas por causa dos seus pelos pubianos. Tomei coragem para desistir daquela situação constrangedora. Ela fez uma pergunta tola quando eu a pedi pra parar e eu respondi que sim, afastando a para que eu pudesse me levantar e me vestir. Lá fora, meu pai, olhando para ela, me perguntou como tinha sido. A garota me lançou um olhar como quem pergunta: "você quer mentir meu bem?" e se calou. Eu dei uma resposta qualquer com os lábios mas minha expressão dizia claramente: Isso não foi legal!

Fiquei ainda um tempo lá sem entender o que estava sentindo. Imaturo e inexperiênte, não não entendia o que eu estava sentindo. Por que aquela sensação de vergonha? de fracasso? Por outro lado, era uma experiência "excitante". Pensei em tentar outra vez. Com alguém que eu escolhesse desta vez. Por que ele me escolheu aquela magrela fria, robótica e sem alma? Comecei a olhar uma outra que sentou se ao meu lado. Sentou se por sentar e começou a falar comigo por falar. Sem nenhum interesse em "trabalhar", como um funcionário que descansa na hora do intervalo e pouco se importa se há clientes querendo algo (no caso, querendo alguém). Tinha um belo corpo e a aparência mais iluminada. A simpatia que eu enxergava nela era um diferencial que me encorajava. Era diferente da outra, defunta. Era mais natural e com um sorriso menos forçado. Comparei as duas como alguém inexperiente que nada sabia das misérias e sofrimentos que estão sujeitas o corpo e a alma das mulheres que se degradam no desespero da prostituição. Alí, eu só me preocupava apenas com o inferno dos meus pensamentos e desejos conflitantes. Fui tomando coragem pra chamá la ao quarto como quem bebe uma caixa dágua de canudinho. Resolvi deixar pra lá. Ia acabar sendo a mesma coisa fria ou pior. Isso talvez pareça um fato irrelevante, só que não. Nunca consegui desenvolver um relacionamento com uma menina que eu escolhesse, que eu me apaixonasse por primeiro e tomasse a atitude. Os relacionamentos que duraram foram os que a menina se encantava por mim e tomava a atitude de se aproximar ou deixar o caminho escancaradamente claro para que eu a abordasse. Nesses relacionamentos eu era quase sempre passivo emocionalmente. Pra ficar mais claro, eu era o trouxa da relação que estava sempre aos seus pés, sem gerar quase nenhum desafio. Abria mão de mim e das minhas coisas para agradar. Os que eu tomei a iniciativa duraram no máximo algumas semanas, logo perdia a paciência. Terminavam sem razão aparente e algumas vezes por algum tipo de auto sabotagem. No fim, o que restava era a frustração de não conseguir ter alguém.

Fui embora da "zona de conforto dos homens egoístas, preguiçosos e impaciêntes". Cheguei em casa de manhã. Minha mãe me esperava com sede de me dar uma surra violentíssima pela noite em claro de preocupação intensa. Quando eu virei a esquina bem longe eu pude vê la no alto de braços cruzados. Ela me enxergou por trás dos óculos e eu vi aquele reflexo de luz na lente como nos desenhos animados. Virou se e entrou pra preparar seu sermão. Quando entrei ela já tinha decido pela pena máxima: Vou contar pro seu pai! Fingi estar preocupado depois fui dormir tranquilo pois ele sabia onde estava e ia me acobertar. Meu pai foi parceiro hoje. Acho que isso vai ficar só entre nós. Papo de homem. Será o nosso segredo. De pai e filho. Mas fui traído. Quando acordei ele estava em casa. Minha mãe me olhou como quem diz: "Corre, filho da mãe, corre! porque ele vai te pegar, vai te estraçalhar. E eu vou bem deixar! HAHAHA! ". Então, ela disse a ele a que horas eu tinha chegado da festinha de aniversário que inventei. Ele tranquilamente disse a ela: Eu sei, o que ele fez. Ele foi lá na zona. Pegou até uma "princesa" lá. Não foi essa palavra que ele usou. Minha mãe olhou pra mim com um olhar que não dá pra descrever. Senti vergonha de olhar pra ela, senti vergonha de mim, senti vergonha de ser pecador, me senti hipócrita. Mas o pior era vê la decepcionada comigo.

Não quis mais ir pra igreja. Não sabia dar nome aos sentimentos que me assaltaram e achava que era culpa por fazer algo de errado. Ouvia as críticas das pessoas em meu pensamento, mas a que falava mais alto era a voz que eu achava ser Deus me julgando: "Você é um jovem depravado e maaal! As pessoas na igreja vão saber o que você feeeeez! Tsc, tsc, tsc! Estou decepcionado com vocêeeee!" Bem, era apenas eu me culpando por não saber a quem recorrer quando sentia coisas que não conseguia compreender. Sendo assim, cedi ao outro lado. Cobrando menos da moral que eu pouco tinha, passei a buscar meu sentido nas músicas que eu ouvia. Desenvolver habilidade para esconder as minhas fraquezas e dúvidas era uma maneira bem funcional. Aprender a tocar rock no violão era como criar esse sentido em que não existia em mim: Ser outra coisa para não ser aquele "eu" fraco. Misturar à minha personalidade as coisas que eu admirava no "mundo exterior": Tornar real o mundo falso que me faz mais forte, mais independente, mais seguro, menos vulnerável, menos incompreendido. Disse a mim mesmo" Eu sou roqueiro" para que eu pudesse experimentar a sensação de autoafirmação. Roqueiro é sempre revoltado com alguma coisa, qualquer coisa. Contudo, o que eu queria expressar não saia. Eu era revoltado contra mim mesmo, porque não conseguia entender o que sentia e não sabia explicar. O resultado era um blem, blém, blém que quaria dizer alguma coisa e não dizia nada. Eu tinha que assumir a voz de alguém, usurpar a personalidade de alguém, de algum amigo, de algum artista.. mas talvez fosse exatamente isso que eu calava e o instrumento traduzia. Como não havia movimento de dentro pra fora, os sentimentos das músicas que eu ouvia começaram a me invadir. A SENSIBILIDADE me fazia sentir tudo aqulio que eu ouvia. Eu alimentei um personagem que vivia da minha personalidade. Naquela época surgia no Rock uma variante chamada EMO CORE. A grosso modo, pode se dizer que é um estilo derivado do punk, ou do HARD CORE, mas com letras de amor melancólico. Nós fugiamos desse estilo porque era próprio dos "Playboys da Barra da Tijuca", "mauricinhos e patricinhas". Não nos adequavamos a eles. Nos restavam as bandas rotuladas como "isso é música de revoltados sem causa", "perdidos no próprio mundinho", "sem identidade", "Deslocado social", "jovem de futuro incerto" "vítima da sociedade", "alma perdida" "potencialmente suicida". Diga se de passagem que sou eu mesmo quem estou dando essas rotulações e definições baseando me na reflexão daquilo que me lembro. Era isso que elas alimentavam em mim. Observo agora que esses rótulos dariam ótimos nomes de banda para os anos 90. Seria, no mínimo, criativo e bem coerente. A rapaziada ia curtir.

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O clima na minha casa pesava o quando eu já estava próximo aos quinze anos. Quando a sós com a minha mãe ela me exigia uma série de respostas a respeito do meu pai que eu não sabia dar. Eu era pouco observador. Com que roupa ele saiu, a que horas chegou? Eu não sabia nem o que tinha almoçado, não sabia sequer a cor da camisa que e uestava vestido. Tinha que abaixar o queixo para ver. É sério! Depois de muito tempo era a primeira vez que passava pela minha cabeça que eles pudessem realmente estar se separando. Mesmo assim, eu não acreditava nisso, afinal, eles brigavam frequentemente e por inúmeras vezes fomos morar com a minha avó, eu e ela, de mala e cúia. Não passavam duas horas e lá estava ele para nos buscar. Todo mundo sabia. Era menos surpreendente que as novelas do SBT. A novela deles colocava "Maria do Bairro", "A usurpadora", todas no chinelo! Até eu já estava me cansando de assistir. Uma vez disse a minha mãe: Se a senhora voltar, vai sozinha! Vou ficar com a minha avó também. Ah...palhaçada. Naquela vez tinha sido muito feia a briga e ele tinha empurrado ela, ou dado um soco no braço, não me lembro perfeitamente porque foi traumático. Estava tudo revirado e ele jogou a geladeira no chão. Eu estava perto, às suas costas e botei as mãos nele. Levei um choque tocando nele. Nunca esqueci disso. Pensava se o choque teria sido elétrico mas não tenho certeza. Eu estava lá. Eu vi e senti. Uma corrente estranha passando por mim quando eu toquei nele naquele estado extremo de fúria. Lá fomos nós para a vovó. Sem delongas, ela voltou. E eu...não preciso dizer.

Depois de um tempo comecei a me sentir encurralado. Percebia mudanças no relacionamento dos meus pais. Meu pai me passava ideias estranhas. Eu entendia muito bem o que ele dizia nas entrelinhas. Suas atitudes e postura revelavam que ele planejava sair de casa. Ele preparava o terreno para deixar minha mãe bem. Não era nada ainda declarado. Eu sentia isso. Mas ao mesmo tempo acreditava que era apenas mais uma das suas inúmeras crises em seu longa e conturbada história de amor, repleta de idas e vindas. Ele insistiu que ela voltasse a trabalhar e ela cedeu. Os ânimos permaneceram estáveis, escondidos sob uma névoa de incertezas e insegurança. Uma vez sumiu um aparelho de som da minha casa e meu pai disse a minha mãe que eu tinha esquecido do lado de fora de casa. Alguém teria levado. Me culpou e me insultou. tempos depois, em outra ocasião, minha mãe o seguiu e achou a casa da tal mulher. Ela me contava as coisas, eu era realmente um "Tonho da Lua", não sacava nadica de nada. Ela disse que rodou a baiana lá. Entrou e quebrou tudo, menos o tal do som, que estava lá. Foi ele que levou pra casa da "outra" e pôs a culpa em mim. Mais uma vez eu fui usado de "bucha". Me senti traído. O medo me fez continuar a ser leal. Não era medo dele que eu tinha, nem medo deles se separarem. Tinha medo do que EU poderia perder. Eu era escravo, refém da minha carência de amor de pai. Eu achava que meu medo era só de perder a minha mãe. Não sabia que tinha medo de perdê lo também. Nunca nem passou pela minha cabeça admtir essa verdade. As minhas atitudes de rendição, submissão, omissão...eram provenientes do meu egoísmo. Eles eram uma extensão do meu próprio ser. É quase possível para mim agora enxergar da maneira inversa: Eu os escravizava com a minha grande força: a minha fragilidade, a minha dependência. Eu os mantinha amarrados a mim porque eram o chão que eu pisava. Mesmo quando tudo começou a desmoronar, eu permanecia sobre os últimos cacos do seu relacionamento. Temia a vida em sí sem esse chão. Temia o mundo lá de fora, tão grande que me faria dissolver como poeira num piscar de olhos. Viver fora da caverna,ser liberto do cativeiro dessas emoções seria doloroso. Exigiria maturidade, além de esforço. Meu mundo era pequenino e todas as minhas alegrias e dilemas eram "confortáveis". Vivia num "B 612", como um "príncipe", mas sem nenhuma imaginação criativa. Minha vida pouco passava da margem da minha casa, meus problemas eram os ânimos do relacionamento dos meus pais. Eu não tinha consciência da vida, nem das minhas responsabilidades, não tinha atitude e acreditava num amor que eu não conhecia e, portanto, o confundia com sentimentos vaidosos e possessivos. Se as meninas esperam um "príncipe salvador num cavalo branco", eu esperava uma "princesa perdida numa égua branca". Como que acreditasse que esta seria a única salvação, agiria da mesma maneira em meus relacionamentos futuros: submisso, omisso, frágil. Relacionamentos seriam casos de obsessão. O amor seria um sentimento corrompido pelo meu egoísmo.

Me senti traído. Pelo caso da mulher que me assediava quando na verdade ela era amante do meu pai. Eu quase deitei com ela! Que horror! Me senti traído! Por ele ter dito a minha mãe que eu perdi a virgindade com uma prostituta. Me senti traído! Por ele ter me coagir a mentir pra minha mãe em relação ao seu proceder. E também senti vontade de responsabilizar a minha mãe por tudo isso: já que era assim, por que não largava dele então? E diria mais: Ela me traiu não me permitindo conhecer meu verdadeiro pai. O afastamento foi decisão única dela. Ela não deu o direito a paternidade legítima de Alcindo (acho que é esse o nome dele), não lhe permitiu digerir os fatos nem assumir a responsabilidade de ao menos me dar um nome. Hoje minha identidade tem um espaço vazio no lugar do "nome do pai". Ela me traiu não me dando esse direito.Tomou sua decisão de forma passional e irresponsável. Ela me traiu não me deixando saber quem eu era. Me traiu não me deixando ser alguém. Se Ricardo era a referência que ela escolheu para mim, por que não me deixava ser como ele? Por que não me deixava logo absorver todo aquele conhecimento torpe e vão que ele tinha sobre a madrugada, sobre a malandragem, sobre as prostitutas e os viciados? Eu tinha que engolir tudo isso para ter um pai e uma mãe que morassem no meu coração.

Por coisas assim é que podemos ter noção do porquê dos TRAUMAS na nossa vida. Eles não apagam os fatos nem as verdades. Eles tiram da frente dos nossos olhos aquilo que é insuportável e indigerível, dada a nossa inexperiência, imaturidade, e falta de luz no entendimento. MAs levam as coisas boas também: queimam o trigo junto com o joio. Mas quando chegam ao limite, eles explodem como uma "caixa de Pandora", libertando todos os nossos demônios interiores que corróem o nosso coração e atiram a nossa felicidade longe. Os problemas voltam a existir também do lado de fora da nossa mente, diante dos nossos olhos para que possamos enfrentá los. Em um epsódio de "Os Simpsons", Ned Flanders, um cristão fervoroso, vai a casa de Homer, que é declaradamente alcóolatra no sentido próprio da palavra (amante do álcool). Ned bate a porta com naturalidade e, sorrindo, diz: "vim expulsar os seus demônios". Homer sarcasticamente responde: "Eu e meus demônios nunca fomos tão amigos". É bem verdade que não enfrentar os traumas (ou demônios internos) é uma situação cômoda, confortável: coabitar com eles durante muito tempo dá a sensação de que eles fazem parte de quem somos. Assumimos os medos e traumas como se fossem parte da nossa personalidade. De fato, a presença deles encobre as nossas fragilidades: É a uma força da revolta. Como essa força de certa forma nos favorece, defendemos aquilo que nos "defende". Há utilidade nessa casca grossa que sobrepoe as nossas feridas: Dizemos : "eu sou assim mesmo!". Somos capazes de ir mais além e dizer: "sempre fui assim, sempre serei assim", ou "não vou mudar, as pessoas não mudam". Enfrentar os demônios internos da nossa história requer energia, esforço e, sobretudo, ajuda. Enclausurados pela timidez, prepotência, autossuficiência, vergonha, e raiva, decidimos no automático coabitar no nosso corpo com algo invasivo e destruidor. Decerto que esses medos e traumas que contaminam a nossa mente também evoluem e se consolidam com o tempo, tendo cada vez mais controle da nossa vida do que nós mesmos. Um sentimento gera um desconforto, que gera um trauma, que se transforma numa "substância" que contamina a nossa personalidade. Gera um vício comportamental, que evolui para um pecado sólido que nos afasta da verdadeira essência de quem realmente somos. No fim dessa linha evolutiva somos mais pecado do que pessoa. E tudo começou num sentimento, uma semente que veio de fora. Não existe dor no nosso coração. Ela foi plantada nele por circunstâncias externas. Contudo, somos nós quem a abrigamos, regamos e favorecemos para que ela cresça como erva daninha e tome toda nosso pensamento, personalidade, vida. O que favorece esse "ciclo de vida" (que deveriamos chamar aqui de ciclo de morte) é o egoísmo que temos. Gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça, vaidade: São coisas grandes demais para enfrentarmos. A vida vai nos ensinar pela experiência que essas "grandes árvores" foram um dia pequenas sementes. Foram sentimentos infantis. Potencialmente perigosos. Realmente é inútil cortar pedaço por pedaço do de cada pecado capital. A solução é simples, porém requer ciência: cortar o mal pela raiz. O grande erro desaba por inteiro. Para achar a raíz é preciso cavar fundo na história. Fizemos questão de soterrar as nossas dores na esperança de nunca mais nos deparar com elas. No fim, ela brota na superfície da nossa vida: um pequenino broto, bonito. Alguns têm até flor. Mas os frutos são amargos, venenosos. Nada cresce em seu redor porque esse pequeno mal tem raízes profundas. Ele suga toda a esperança e fé que alimentaria os sonhos que nunca se tornaram realidade na sua vida: a profissão que não se alcança, o casamento que não dá certo, o filho que não vem, a estabilidade que nunca se alcança, o equilíbrio distante... só cresce a doença, o stress, o desânimo, a depressão, a crise existencial.

De fato, um pequeno esforço em direção ao bem já desfaz todo esse mal. Mas as coisas mudam tanto que, ao voltar a ser nós mesmos, achamos estranho: Não nos reconhecemos quando todas as mentiras caem por terra. Quando a casca da ferida cai, a pele nova é sensível e fica uma cicatriz que destoa da pele velha. As vezes isso nos envergonha. O corpo inteiro deveria ser ferido para ficar tudo como pele nova. A alma por inteiro precisa ser renovada. abraçamos os nossos rancores porque eles se tornaram a maior parte daquilo que reconhecemos como "nós mesmos". A melancolia mantêm vivo em nós o prazer de sermos sofredores porque tudo que temos é a nossa história. Somos um livro. Gostariamos de arrancar muitas páginas mal escritas. mas então, o que seríamos? Trechos incompletos, superficiais e sem identidade. Cortamos parte do nosso passado e não conseguimos ir em frente sem travar em algum ponto onde nos perguntamos: "Poxa, o que há de errado? Não consigo ir em frente! A vida é injusta!" O perdão, a reconciliação com a própria história é uma etapa crucial da existência humana para que esta atinja a plenitude da liberdade emocional. Cada nó de um caule é vital para uma flor.

Esses sentimentos a respeito dos meus pais estavam em mim e não neles. Foi no meu coração que eles foram plantados pelas circunstâncias, não no deles. A circunstância criou em mim o trauma. A "afetividade imatura" não permitiu me a habilidade de "ordenar os meus afetos", ou seja, não soube "gerenciar as coisas que afetam o meu psicológico". Sendo assim, decidi me inconscientemente por coabitar com eles e o resultado foi destruidor: desencanto com a vida, rebeldia, vazio existencial. A revolta é um mecanismo que alimenta essa realidade, fortifica as prisões e nos mantêm frios e "mortos" espiritualmente. O "Che" não sabia lhe dar com isso sozinho. Ninguém podia lhe abrir o coração. Só havia uma chave. ninguém podia pegar pra ele. Ele teria de crescer mais um pouco até alcançá la. Isso se tivesse "sorte". Se "alguém lá em cima" gostasse dele muito dele. Ele acreditava que isso era verdade mas, ainda assim, ele teria de "crescer" muito. Teria que se tornar o "Tchê"? O trauma alí, até a fase adulta, olhando para a minha cara e, eu desviando o olhar.

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Minha vida era um silêncio ensurdecedor. Passado um tempo, as coisas se acalmaram mas permanecia aquele clima estranho. Comecei a sentir vontade de ser independente, já que meu pai me falava que queria me levar para ajudá lo na boate. Minha mãe não deixava de jeito nenhum. Ele dizia que eu receberia uma certa quantia por semana que para mim seria o princípio da riqueza. Poderia comprar em uma semana o tênis de Skate mais caro e na outra semana peças de skate e na outra o que eu quisesse. Isso nunca aconteceu. Eles passaram a discutir muito, mas não era como uma briga. Eu não interagia muito com os dois juntos, só com a minha mãe e por vezes com meu pai.

Eu perdia muitas noites de sono no videogame e repeti o primeiro ano por faltas. Conheci a professora de filosofia no primeiro dia da recuperação. Só tinha um amigo no Colégio Estadual Maria de Nazaré Cavalcante Silva. Ele era também um excluído social. Eu ainda era menos porque era muito bom goleiro nessa época. Na verdade eu jogo em qualquer posição. Afinal, foi só disso que eu aprendi a brincar coletivamente. Era uma coisa que realmente não me importava nem um pouquinho se eu ganhava ou perdia: eu queria jogar. Correr. Sempre fazia o meu golaço e ficava lembrando depois. Era reconhecidamente bom de bola. Meu pai me viu jogando uma vez. Disse que eu parecia um coelho. Não foi um elogio. Mas a respeito disso, tanto faz o que dizia quem quer que fosse. Minha vaidade não era atingida, meu ego não se enchia a ponto de explodir, porque tudo o que eu queria era esperar a bola, descobrir o ponto fraco do defensor, usar as vantagens que tinha como a velocidade e o corpo leve. Chutar a gol na oportunidade que o acaso trazia a bola redondinha que sobrava de um rebote, ou aquela bola espirrada que vinha na minha direção. Ela me procurava e eu estava sempre a esperando. No lugar certo, na hora certa. Ela sempre vinha mesmo que tardasse. A oportunidade. Eu era tão fominha que se tivesse uma vaga absoluta de goleiro eu aceitava também. ninguém gostava de ficar no gol e levar boladas. Eu me candidatava só para estar la dentro. Embora eu fosse bom, sempre tinham as "panelinhas" e nesse caso eu ficava de fora. Nessa ocasião, eu entrava como o bucha que se candidatava a tomar as boladas. Só pela boa vontade de estar no gol já ganhava vaga. Com um pouco de habilidade, já era um destaque. Então lá estava eu no time de dentro. Esperando o chute do melhor adversário. Me atirava atras da bola como um gato. fazia todas as firulas cinematográficas de um goleiro exibido. Não para me mostrar vaidosamente, mas porque desfrutava da liberdade de me sentir pleno. Era absoluto, Requerido, disputado pelos times. Bastava eu estar lá e era escolhido. Fora do futebol, a realidade era inversamente proporcional.

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Fui invadido por um sentimento muito estranho. eu já perdia muitas aulas aulas e caminhava para uma nova reprovação. Recebebi um bilhetinho em baixo do meu caderno: era de uma menina dizendo que me achava bonitinho e que estava afim de mim. Dizia também, para se identificar sem dizer o nome, que ela tinha um estojo de canetas coloridas. Ela me admirava onde? Na aula de educação física que, na verdade, não era aula! Era só futebol. Nem deixavamos as meninas usarem a quadra. Elas passavam de ano fazendo relatórios sobre a aula que se resumia nos meninos jogando futebol. Fiquei curioso para saber quem mandou o bilhetinho mas só procurei no mesmo dia. Eu aparecia esporadicamente na escola, geralmente no dia de bola. Passava as noites em claro ou jogando video game até o sol raiar. Quando dava a hora de ir a aula, eu saía. Dava a volta no bairro pra dar tempo da minha mãe sair para o trabalho. Depois voltava para casa para dormir até a tarde. Quantas vezes bati de frente com ela, quando ela saia atrasada, ou com o meu pai em casa. Uma namoradinha já não suficiênte para me dar ânimo, principalmente para ir a escola.

Quando dormia a noite, tinha sonhos com meus pais. Voavam sobre a minha cama como fantasmas. Eu tinha medo destas coisas: Espíritos, fantasmas e tudo isso. Aquele sentimento de solidão e abandono da infância estava voltando mais maduro. A vontade de fugir de casa se transformou na vontade de arrumar um trabalho e não dever satisfação de nada a ninguém. Nem mãe, nem pai, nem ninguém. Mas principalmente a eles, que eram meu tudo. Contudo, isso era algo muito desafiador e embora eu estivesse cheio de uma revoltosa coragem, não me sentia capaz de me libertar daquela realidade. Estaria sempre preso a minha mãe, ela sempre presa ao meu pai, ele sempre preso a ela e ela sempre presa a mim. Incapaz de ser livre, tive pela primeira vez o desejo de morrer. Não era vontade de suicídio ainda. Eu ainda não era tão covarde a ponto de desprezar a lei da vida, mas desejava deixar de existir. Me jogar no vazio do espaço e do tempo, sem receber influência, interferência dos sentimentos deturpados, distorcidos dessa realidade irreal. Queria acabar com aquele sentimento de incompletude, incompreensão, solidão. Queria matar a tristeza, a falta de abraço, a falta de beijo, de carinho. Queria parar de sentir aquele troço no peito que mexia na minha cabeça. Exterminar o verme que não saia pelos meus olhos, queria expelir o vômito que não saia de jeito nenhum pela minha boca. Não queria mais existir. Não sabia falar, não sabia chorar, não sabia pedir, não sabia negar. Me sentia um objeto de barro que qualquer um pegava e moldava a sua própria vontade. Eu era como meus colegas quando estava com eles, eu era como os meus pais quando estava com eles, eu era como os cristãos quando eu estava na igreja, eu era como os bons alunos quando estava na escola, eu era fantástico quando estava na quadra.

E quando estava sozinho eu era vazio e sem forma. Não existir seria ótimo - pensava eu deitado na cama, me lembrando dos sonhos com os fantasmas dos meus pais voando sobre minha cabeça. Não havia horizonte na minha vida. Não havia em mim nenhuma expectativa para o meu futuro. Eu rezava o "pai nosso" antes de dormir. Não lembro o porquê e nem como, mas tentei algumas vezes rezar a "Ave Maria". Em alguma ocasião minha mãe me disse como era, mas essa lembrança é muito fraca. Eu não sabia a ordem, nem sabia o que significava chamar Maria de Santa e nem de "mãe de Deus". Pegava na bíblia empoeirada. Lia um trecho. Aumentava as minhas dúvidas. Preferia ficar sozinho que ir a igreja e isso me fez evitar a companhia do Elielton. E, enquanto eu boiava numa crise existencial, aconteceu o fim do mundo. O apocalipse da minha vida era real.

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O "Anjo da Morte" passou na minha casa. Meus pais não estavam. E não voltaram mais. Eu percebi depois que naquele instante eu havia perdido todo o tempo do mundo quando deixei de aproveitar sua presença. Num dia comum, minha mãe saiu para trabalhar. Meu pai em seguida, saiu sem dizer aonde ia como de costume. Era 23 de julho, duas semanas antes do meu aniversário. Eu estava de férias e passei o dia todo na rua com os colegas. Ao cair da noite, quado munha mãe costumava chegar do trabalho, meu pai chegou. Disse que ia buscá la e sairiam para resolver problemas. Algo a respeito do salário dela, que estava atrasado. O patrão da minha mãe tinha uma loja de eletrônicos em Cascadura e estava meio que abrindo falência, dando calote na praça. Meu pai tomou a frente dela na hora de cobrar os seus atrasados. Me disse que iria levá la para receber, pois ele mesmo já tinha resolvido o caso com o patrão dela, resolvido de homem para homem. A meia noite, duas horas depois do que o de costume, fui para casa com medo de ser repreendido por estar na rua depois do horário. Fui pra casa antes que chegassem. Por volta de 1 da mahã, uma vizinha que costumava receber telefonemas de recado de toda a vizinhança bateu a minha porta. Eu disse que não havia ninguém em casa alem de mim. Receosa, ela me disse que meu pai havia sofrido um acidente de moto. Ela dava a noticia meio sem jeito, pois a informação completa continha um detalhe. Meu pai estava acompanhado de uma mulher sem identificação. Ela devia saber pelas fofocas. Meu pai tinha outra mulher e imaginava que possivelmente seria a amante que estaria com ele. Quando eu falei que era minha mãe estava com ele, ela congelou. Desci até a casa dela onde esperei até o namorado de Denise ir me buscar, pois era madrugada. Depois de sermos abordados no caminho por policiais que examinaram nossos narizes, chegamos a casa da tia Iza. Todo mundo já sabia da realidade. Eu não. Quando chegamos soube que meu pai morrera no local do "acidente". Minha mãe estava no hospital. Enquanto eu aguardava noticias dela, imaginava como seria a nossa vida. Apesar de tudo, não conseguia imaginar a vida da minha mãe sem o meu pai. Quão triste seria a vida para ela e como eu ficaria nessa situação. Logo que amanheceu, tio Celso chegou do hospital. Foram 5 segundos de eterno e engasgado silêncio até que este se rompesse contra a sua vontade. Disse com lágrimas represadas: "Ela não resistiu!" Eu apenas chorei. Chorei por chorar. Não estava entendendo o que aquilo significava. Era impossível crer. A incalcuável perda num só dia. O que tinha, o que não tinha, e o que haveria de ter e não teria. Foram anos resolvendo essa equação. Quando me abraçaram eu só lembro de perguntar ao meu tio: E agora? Ele, com o coração demolido de comoção, me respondeu: "Você está com a gente agora". Aquilo me causou um certo conforto. Eu gostava muito da casa deles, dos primos, da tia.

Pela primeira vez fui a um velório. evitei o da minha avó e agora iria em dois de uma vez. Pela primeira vez tive de olhar uma pessoa morta sem poder desviar o rosto. Só tinha visto uma foto dos corpos dos "Mamonas Assassinas" e chorei. Outra vez um atropelado pelo trem na passarela de Cavalcante. Desta vez eu tinha que olhá los. Seria a última vez que os veria. Marcou me a expressão de dor no seus rostos. Minha mãe estava mais machucada. Quase não deixaram o seu caixão ficar aberto. Na verdade, o "acidente" se chamava assassinato a tiros. Brutal e covarde. Meus pais morreram numa calcada. Vi a foto no jornal. O corpo do meu pai coberto por um plástico preto com as pernas de fora. A manchete relatava uma mentira revoltante e absurda . Dizia que ele havia sido confundido com um ladrão de motocicletas. Soubemos que tudo era parte da trama para encobrir o assassino. O local, as testemunhas e até os falsos policiais que nos fizeram perguntas no sepultamento. Tudo era planejado. Nada respondemos pois já sabíamos do perigo. Naquele dia quem veio me abraçar foi Renatinha. Foi o abraço mais apertado que eu recebi naquele dia. Não fazia a menor diferença, nada tinha sentido. Vi os dois me deixarem pra sempre e aquilo que o meu pai dizia pra mim ganharia sentido. Quando el o ajudava e ele me mandava pegar uma ferramenta que estava na minha cara e eu não via, ele dizia: "nasceu burro, não aprendeu nada, e esqueceu a metade". Eu ficava constrangido. Mas agora ganhava sentido. Era uma metáfora. Sei que era porque ele me considerava muito inteligente e criativo. Elogiava por eu não dar trabalho com a escola. O significado real disso era " Nasceu sem conhecer a Deus, quase nada aprendeu de Deus e agora, metade se perderia". A sabedoria habita onde quer.

Voltando do sepultamento, sentado no banco carona da Blazer roxa do meu tio, eu olhava pelo vidro com olhos de peixe. Foi ótimo ser acolhido por eles, mas eu não encontrava significado em mim. Não sabia quem eu era, não sabia o que queria e em o que querer.

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Finalmente eu comecei a experimentar aquilo que aos 8 anos eu buscava compreender. O fim, o nada, o vazio. Ali estava o "Chê": Suspenso. Tudo o que mantinha minha vida no eixo até então entrava em colapso com a existência. Meus pais se foram como estrelas que se chocam com uma supernova. Lá está o Chê: presente físicamente mas sua alma está a beira de um "horizonte de eventos". Este é o "fim do mundo". Algo que suga toda a luz. Nada escapa. Todas as emoções, sem excessão, são sequestradas pelo campo gravitacional do TRAUMA PSICOLÓGICO. Só resta a fria e densa escuridão. Nascem as "nebulosas": depressões e comportamentos obsessivos compulsivos, agravando toda sorte de transtornos e tendências que usurpam o brilho da nossa personalidade.

Esse é o "vazio" e a pior parte do fim era estar alí para vê lo, para sentí lo. A pior parte era ser incapaz de alterar algo, não poder dizer o que não havia dito, não poder fazer o que não se tinha feito, nem poder mais tocar, sentir, ver...porque nada existe no vazio. Ninguém me avisou que não haveria um amanhã para nós e eu não pude amá los no último dia. E esse vazio só existia porque eu estava ali para interagir com ele. Eu era a única testemunha do fim do meu mundo egocêntrico, o fim do meu tudo, a "minha primeira morte". Desejei não existir também para que eu não o sentisse isso. De tudo que eu imaginava que faria se um dia eu perdesse a minha mãe, se um dia o mundo acabasse, eu nada fiz. Nada. Não soquei as paredes, não corri pela rua, não bati a cabeça. Apenas vagava com os olhos pelo espaço, interminável, sem mundo, sem chão, sem vida, sem ar, sem água, sem calor. Só saudade, incredulidade e dúvida. Nem motivo para o desespero eu tinha porque não acreditava em nada daquilo. Só sentia o frio que alguém deixou ao partir. E eu, fiquei. Atado, acorrentado, aprisionado, enclausurado aos fatos. Não podia me ausentar, nem esquecer. Nem deixar pra lá.

Quanto tempo e de que maneira eu teria de conviver com essa marca até que pudesse encontrar o sentido de tudo e ser livre? Estava cheio de dor e dúvida: Mudo, surdo, cego, imobilizado. Só os olhos sem brilho se mexiam acompanhando a calçada que passava pelo vidro do carro. Totalmente vulnerável, fui sequestrado pelos meus sentimentos. Refém na escuridão. Preso no meu próprio coração que diminuía e me comprimia insuportavelmente, até me fazer cair para o lado defora. Lá estava eu. Sem saber quem sou, para onde vou e por quê. Inerte na vida ampla e vaga. Sem identidade própria, viveria não a minha vida, mas a vida dos meus pais. Reiniciando o ciclo que eles começaram acrescentando a ele os meus próprios passos, meus próprios erros, meus medos, meus pecados.

Não era a morte dos pais em sí o meu "fim do mundo", mas o o vazio existencial consumado. Um "buraco negro" engolia toda a luz, todo e qualquer sentimento da infância foi engolido junto com o trauma e transportado para outra dimensão. Eu viveria num "vácuo quantico" dentro da minha mente. A centelha de fogo que restara e permanecia no coração era puramente o sopro de vida inicial. Todo o resto me deixou. As experiências todas não seriam alicerce da minha adolecência. O choque corompeu tudo. O trauma engoliu as canções de Jesus, as alegrias da casa da tia, dos primos. Engiliu o dilema do amor de pai que já não era nada. O medo de perder a mãe fez falta e deixou maior o vazio maior. As namoradinhas já não eram memórias alegres nem frustrantes: não eram nada. " Eu era um lobisomem juvenil" e "mesmo se eu cantásse todas as canções" ... Não conseguia alcançar no meu entendimento Aquele que era o Dono da centelha restante, daquele pavio que ainda fumegava solitário, o Dono do meu coração. Viver era inevitável e era por isso que eu,então, viveria para ver o "Tchê"

Oliveir Allarcehc
Enviado por Oliveir Allarcehc em 13/09/2020
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