Cancelaram a cultura do cancelamento?

Na era da informação e da dinamicidade das redes, a cultura do cancelamento simboliza uma violência de ordem que transcende o meio virtual, gerando impactos na atuação e no prestígio de grupos e corporações, e afetando diretamente a autoestima de muitos produtores de conteúdo e de personalidades públicas. Pode-se identificar que a falácia do ataque à pessoalidade, é em muitos casos, um mecanismo que impede um questionamento efetivo acerca dos argumentos emitidos, e configura-se como uma justificativa utilizada por aqueles que não somente passam a ignorar as vozes públicas, mas também contribuem com a disseminação do ódio em um ambiente no qual predomina o diálogo mínimo.

O pensador francês Guy Debord, propôs uma explicação que estabelece uma forte relação entre a cultura do cancelamento e o contexto de espetacularização da sociedade. A análise feita por ele, pressupõe um viés de idealização e endeusamento daquele que está se expressando. Tal fenômeno ocorre, segundo o pensador, pois depreende-se que há um desejo de que a realidade surja no espetáculo e alimente ilusões de forma satisfatória, considerando-se a figura pública, como o modelo mais indicado a ser seguido e imitado. Tanto em suas atitudes, quanto em sua posição política (que deve obrigatoriamente existir, uma vez que a neutralidade não tem fama de IBOPE). O sujeito de voz passa então a ser, no espetáculo social, a tentativa do fantoche, cujas ideologias devem estar em consonância com o que os seguidores/apoiadores gostariam de ouvir. Caso contrário, nada feito, as cortinas se fecham e o que acontece com o final desse show? Não sabemos, pois feliz ou infelizmente ele foi cancelado.

Além disso, um dos fatores que merece atenção durante um discurso, é a clareza na fala e nas ideias, com a consequente coerência entre ambas, visto que a falta de esforço em prol de uma melhor e mais assertiva interpretação, associada às crenças e opiniões prévias do receptor, restringe a visão geral e imparcial da mensagem comunicada. A partir disso, é imprescindível frisar o abismo que existe entre discordar e cancelar, posto que o primeiro se caracteriza como um comportamento individual que sugere divergências de visão de mundo diante de um mesmo fato. Já o segundo termo, refere-se a um ato coletivo de represália pública, massificado pela mídia.

É imprescindível entender o contexto e a trajetória de vida da voz que está falando, evitando julgar falas isoladas sem um conhecimento sobre sua vida e suas origens. Por outro lado, é necessário reconhecer os princípios gerais que sustentam os preconceitos das mais diversas naturezas. Pode-se aplicar a teoria da “prioridade do justo sobre o bem”, defendida por John Rawls e inicialmente proposta por Immanuel Kant, na sociedade contemporânea, pois ela visa que as democracias criem um cenário favorável à pluralidade de opiniões, mas com a responsabilidade de garantir o andamento do processo legal frente a todos os ideais propagados. Ainda, Andy Warhol afirmou que no futuro próximo, todos teriam seus quinze minutos de fama. De fato, tal pensamento se concretizou com o potencial expansivo das mídias, mas para além disso, tal fama na atualidade também engloba o ato de se ver fora delas.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 17/06/2021
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