Sobre um dilema desnecessário da esquerda liberal: "representatividade" ou coerência??

Pela primeira vez na história da marca de jóias Tiffany, uma mulher negra foi escolhida para representá-la, a cantora estadunidense e multimilionária, Beyoncé.

Mas, esperem aí...

Não há motivo lógico para comemorar, se a marca demorou tanto tempo para tomar essa decisão, diga-se, trivial. Além do mais, congratulá-la poderia passar a ideia de que se está perdoando o seu longo histórico de racismo. Segundo que, uma mulher negra e muito rica, ostentando um produto que é inacessível para a grande maioria das pessoas, que simboliza as desigualdades absurdas do capitalismo, também não pode ser considerado uma "conquista" da causa "antirracista" ou da justiça social, ou deveria ser óbvio o porquê que não.

Para mim é óbvio. Mas, eu sei que, depois desse anúncio, muitos da esquerda liberal passaram a comemorar esse "acontecimento" como mais uma "vitória" da "representatividade" de minorias historicamente marginalizadas, com direito à chuva de elogios rasgados (de fãs) à rainha do pop, em redes sociais, como se tivesse feito muita coisa...

Pois se ela separasse uma boa parte do dinheiro que ganha para ajudar causas sociais diversas... mas, parece que não, porque ela só é mais uma "celebridade" que adora viver no luxo e usar pautas identitárias como escudo moral (desprezando completamente as pautas relacionadas aos problemas sociais e econômicos causados pelo capitalismo). Casos como o dela até me remete à famosa frase do Paulo Freire, de que "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor".

Aí, então, quando críticas começaram a ser feitas sobre a decisão de Beyoncé de aceitar o convite da Tiffany, os mesmos progressistas que comemoraram a parceria (especialmente os que se definem como "antirracistas") passaram a atacar quem a criticou, acusando-os de "racismo"...

Porque parece que, para muitos esquerdistas liberais e/ou identitários, devemos celebrar o "feito" e desprezar suas contradições, se o que mais importa para eles é a simbologia da representatividade e não a coerência com valores progressistas, por pura comodidade, já que almejam cooptar o capitalismo, a partir das pautas identitárias, para que sirva aos seus interesses de grupo.

Pois o que mais tem faltado às esquerdas é justamente a coerência, no discurso e na prática, do que pensam/defendem e do que fazem. E, a esquerda liberal, sem dúvidas, é a mais contraditória.

Outro exemplo de atuação típica desses supostos progressistas, que adoram o capitalismo, é o da cantora Madonna, de estrondoso sucesso nos anos 80, que foi uma das "celebridades" que mais lutou contra a homofobia, especialmente naquela época, quando começou a pandemia de AIDS, ao ter usado a sua imagem em prol dessa causa. Mas, também é verdade que ela não parece ter feito muito em relação à outras pautas igualmente importantes, desde que passou a ganhar muito dinheiro com a venda dos seus discos, sem falar que a sua influência tem feito mais mal do que bem à música pop, homogeneizando o gênero, criando um exército de réplicas mal clonadas de si mesma, de "divas" pop que, geralmente, são menos talentosas que ela. É complexo falar de Madonna, mas muito necessário falar de suas contradições, até como um exemplo de alguém que se diz "a favor da justiça social" mas que, enriqueceu muito com dinheiro capitalista, passando a usufruir de um padrão de vida luxuoso ou ecologicamente insustentável e limitando o seu ativismo no ataque ao "valores conservadores". Madonna também se tornou uma das maiores representantes da "feminista" liberal, que é a mulher "moderna" e bem sucedida, individualista, agressiva, materialista, classista, que despreza homens (e mulheres?) de classes inferiores, do tipo que não se importa com opinião alheia, nem se forem ponderadas, acomodadas e felizes no mundo de injustiças do capitalismo.

Não há como não acabarmos nos contaminando com a corrupção intrínseca desse sistema se não começarmos a praticar o oposto do que prega e sem ter que deixar de lado a subversão de valores torpes do conservadorismo.

E, por fim, não tem como apoiar acriticamente "celebridades", tal como essas duas, a partir da percepção de que têm feito pouco de realmente concreto em prol do outro, se estão mais preocupadas em usar algumas pautas importantes para a autopromoção, enquanto enriquecem de maneira significativa, contribuindo para dar legitimidade ao capitalismo.