O trote

No período da graduação na faculdade, eu e pouquíssimas meninas nos permitimos pensar nossa autoestima, e fizemos a crítica a certas referências depreciativas que ouvíamos sobre nosso curso de Biologia. O modo escolhido foi o de dar um trote, ou melhor, um “contra trote”, uma zombaria, já que nós eramos as calouras, aos veteranos que saíam dos limites.

O comportamento de alguns rapazes era censurável, pois, nos cercavam todo final de aula, em grupos, e iniciavam cantadas ridículas. Nós detestávamos o modo como nos tratavam!

Naqueles tempos, décadas de 70 e 80, os cursos se caracterizavam por serem quase que totalmente femininos, como a Biologia, e, o oposto, frequentado quase que majoritariamente por homens, no caso das Medicinas Humana e Veterinária.

Vigoravam, infelizmente, na época as seguintes “máximas”:

1. As estudantes da Medicina eram o tempo todo desqualificadas como mulheres bonitas e desejáveis, pelos próprios colegas de curso. Uma vez estávamos no meio de uma aula logo na primeira semana do nosso primeiro semestre, e, adentraram na sala alguns alunos da Medicina com duas colegas calouras, e gritavam que tinham vindo trocá-las por uma de nós. “Duas por uma da Bio”, gritavam eles, “pode vir qualquer uma que valerá a troca”. Enquanto muitas colegas riam e se sentiam lindas, eu e as poucas que comentei acima passávamos mal.

2. A Biologia era um curso pensado para “servir a Medicina”; a Biologia era um curso “espera marido”! Nós ouvimos isso dentro da faculdade!

Ficamos muito indignadas, revoltadas mesmo. Aliás, uma dessas colegas mais conscientes tinha tido a maior nota no vestibular do ano, e se quisesse, poderia estar no curso de Medicina, e soubemos disso porque uma professora contou a toda classe. Muitas outras escolheram essa profissão, por vocação! E eu, escolhi a Bio desde o ensino médio, por conta das aulas magistrais de meu professor autodidata da escola pública.

Se os dias não eram fáceis, nós revidaríamos. Sem exatamente combinarmos, eu e a colega externamos a vontade de dar um chega pra lá nos estudantes bobocas.

Numa tarde, saindo para o intervalo da aula prática de insetos, nos deparamos com os tais e eles vieram até nós com o mesmo discurso capenga.

Minha colega disse sorrindo: “Que aula linda de dissecção de barata!”

E eu continuei: “Que bicho lindo não? Eu esqueci as luvas, mas já não preciso delas.”

E eles atentos ao nosso diálogo e arregalando os olhos.

Levei em seguida propositadamente meu dedo à boca, e ela exclamou: “você pôs o dedo na boca, desinfetou as mãos?”

E eu respondi, “Puxa! Esqueci-me de lavar as mãos”. E eles fizeram aquela cara de nojo, simularam aquela expulsão vigorosa do conteúdo estomacal, e sumiram para sempre. Sentimo-nos vitoriosas, rimos muito.

Noutro dia vieram outros. Mesma abordagem chula, sem conversar.

Minha colega dessa vez disse olhando o relógio:

“Que horas são hein? Será que a Agronomia vai demorar a sair?”

Eu a animei: “Logo chegarão.” E ela, séria, olhando alternadamente o corredor e o relógio, se voltou para os rapazes e entre aflita e ansiosa falou: “Esperando a Agro sair”. “Ah aqueles homens, de bota, de boné, que estremecem o corredor quando passam”, e eu ia ajudando: “do mato, sujos de terra, a gente gosta de terra”. O nosso desempenho com direito a suspiros foi nota 10. E de novo rimos muito. Dessa vez estes também sumiram para nunca mais voltar! Exploramos a rivalidade que alguns tinham de outros.

É claro que muitos outros colegas admiravam nosso curso, tinham o maior respeito por nós e estes são os que faziam coro contra preconceitos e vulgaridades. Então não estamos generalizando, claro.

Mesmo tendo professoras e professores em todos os cursos, existem aqueles que se equivocam sobre o fato de que vocação nada tem a ver com gênero. Espaços na sociedade têm sido conquistados por mulheres em profissões ocupadas antes majoritariamente por homens, e, da mesma forma, homens ocupam profissões onde se via prevalência da presença feminina. Em nossa classe, em 1975, havia três homens e trinta e sete mulheres.

O diálogo acima envolvendo as baratas (Insecta: Dyctioptera, Blattodea, Periplaneta americana) é real, elas são belas. Estudamos nas Zoologias todos os bichos, suas relações evolutivas, fisiologia, biologia geral e reprodutiva, ecologia. No caso da barata há harmonia de formas e variações de cores nos órgãos quando acessamos sua anatomia interna, de modo que podemos dizer que é um ser muito bonito aos olhos humanos. As baratas são aparentadas dos camarões, ambos são artrópodes, e, também se assemelham quanto a onivoria, uns nos mares, e para as baratas no ambiente terrestre. Apenas algumas espécies associam-se a ambientes urbanos, a maioria das baratas habita florestas. Então é estranho termos nojo de um e nos deliciarmos com o outro, como se contrários absolutos fossem.

As baratas que chegam para a aula são mantidas em laboratório e aos alunos faculta-se o uso de luvas. Em casa, se elas aparecem, as pego com as mãos, identifico o sexo por costume, e as devolvo ao ambiente. Nunca me esqueço de lavar as mãos. A afirmação do descuido ao colocar dedos na boca acima fez parte de uma brincadeira, um “contra trote” aplicado há 45 anos.